Reforma da polícia é fundamental para enfrentar a violência contra os jovens

jovensO Mapa da Violência 2014, divulgado no início de julho, mostra um crescimento de 13,4% nos registros de homicídios em comparação com 2002. As principais vítimas são jovens do sexo masculino e negros. Enquanto o número de assassinatos de brancos diminuiu, passando de 19.846, em 2002, para 14.928, em 2012, as vítimas negras aumentaram de 29.656 para 41.127, no mesmo período.
Nesta entrevista, o professor Marcelo Paixão fala sobre o crescimento da violência contra os jovens, especialmente os negros e aqueles que residem nas favelas e periferias, e analisa alguns dos problemas que tornam esses jovens mais vulneráveis a situações de vitimização. Na avaliação dele, para se enfrentar o problema, é necessário, entre outras coisas, repensar e transformar os sistemas policial e judiciário brasileiros.
Marcelo Paixão coordena o Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais (Laeser) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), principal centro de estudos acadêmicos das desigualdades raciais do país.
Rede Mobilizadores – Há 16 anos, os mapas da violência divulgados pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) apontavam os acidentes de trânsito, os homicídios e os suicídios como as principais causas de morte de jovens. O mapa de 2014 mostra o mesmo quadro, porém agravado. Por que esse cenário tem persistido? Quais as principais políticas públicas necessárias para reverter esse quadro?
R.: A violência aumenta no contexto da redução das desigualdades sociais e por isso é difícil fazer uma avaliação. Acredito que, apesar da redução das desigualdades, a juventude ainda não encontra muitos caminhos para se inserir de uma forma melhor na sociedade. Temos uma grande concentração de população nos centros urbanos, as famílias estão passando por mudanças profundas, o mercado de trabalho não está gerando oportunidades para grande massa da população, e os postos de trabalho que se abrem são para posições de menor remuneração. Tudo isso contribui para o agravamento da violência, fora o fato de que temos um verdadeiro câncer na sociedade brasileira, chamado sistema policial. A corrupção policial favorece a entrada das drogas e de armas e, na outra ponta, age, nas favelas e periferias, com uma violência que é absurda. Isso somado à falta de controle civil sobre o sistema policial ajuda a manter os níveis de violência muito elevados.
A nossa polícia foi criada por D. João VI, em 1808, e durante 80 anos se dedicou a perseguir escravos fugidos. Depois, durante o Estado Novo e a ditadura militar, passou a ser uma estrutura auxiliar do Estado repressivo. E perdemos a oportunidade histórica, na Constituição de 1988, de reformular o sistema policial do país.
Precisamos de uma reforma profunda desse sistema, de uma revisão da criminalização do uso de drogas, especialmente da maconha. Mas essas e outras questões são muitas penosas para a sociedade brasileira. As forças políticas do país precisam se reunir e apresentar propostas que sejam capazes de enfrentar grupos de interesse. Não se faz política pública sem esse enfrentamento.
Rede Mobilizadores – A psicanalista Maria Rita Kehl afirmava em 2004 que jovens de todas as classes sociais, mesmo aqueles que não têm como consumir todos os produtos, se identificam com a imagem do jovem consumidor difundida pela publicidade e televisão. Isso de alguma forma pode estar associado ao crescimento da violência cometida por jovens?
R.: Eu respeito o ponto de vista, mas particularmente não gosto dessas abordagens que relacionam a violência a determinados segmentos da sociedade. A sociedade brasileira é violenta como um todo. Evidentemente, se existem mercadorias para serem consumidas e não existe um poder de compra correspondente na população para que esse consumo ocorra, o país precisa repensar a maneira como está gerando seus empregos, como está gerando renda.
Rede Mobilizadores – O Mapa da Violência 2014 aponta uma acentuada tendência de queda no número de homicídios da população branca e de aumento no número de vítimas na população negra, tanto para o conjunto da população quanto para a população jovem. O que justifica esse crescimento da violência contra o jovem negro?
R.: A população negra, entre 15 e 17 anos, deveria estar na escola frequentando o ensino médio. Mas de acordo com a taxa de adequação ao sistema de ensino, não mais do que 15 % da população negra nessa faixa etária está estudando e na série correta. Essa defasagem escolar é um elemento de desalento que faz com que o jovem queira sair da escola. Esse é um dos fatores que contribuem para tornar essa parcela da população socialmente mais vulnerável a situações de vitimização.
Além disso, houve o deslocamento geográfico da violência, que tem diminuído no Sudeste e crescido no Nordeste. A população jovem dessa região é majoritariamente negra, principalmente em estados como Bahia e Maranhão. Esse processo do deslocamento da violência para uma região com uma composição racial tão assimetricamente negra, associado ao racismo que permeia a sociedade brasileira, contribui para o aumento da taxa de homicídios.
Rede Mobilizadores – Temos visto o discurso oficial associar moradores de favelas e periferias com tráfico de drogas, com a criminalidade, o que justificaria intervenções policiais agressivas, não raro com mortes. Na sua avaliação temos convivido com a “naturalização” e aceitação social da violência, especialmente contra os jovens negros das favelas e periferias? A que atribui essa naturalização e como reverter esse quadro?
R.: A sociedade brasileira sempre foi extremamente violenta: com os escravos, com os índios, no período pós Abolição, nos massacres de Canudos, nas repressões políticas no Estado Novo, na ditadura militar. A diferença, atualmente, é que a forma da violência mudou. Na ditadura era uma violência política e havia em paralelo uma violência civil contra a população mais pobre. Hoje, a violência política é bem menor, mas há uma violência muito grande, sobretudo em relação aos jovens das periferias.
As formas de interpretação do que ocorre podem ser as mais variadas, mas, sem querer fazer um discurso reducionista, eu acho que as técnicas de confronto que ocorrem nas favelas e periferias são técnicas de controle social visando manter a miséria e a pobreza “no seu lugar”.
Não é apenas nas favelas e periferias que se consomem tóxicos. Se a elite consome, ela é rebelde, se os pobres consomem, eles são bandidos. O que ocorre é uma assimetria no tratamento dado pelo Estado brasileiro a um mesmo ato social que é disseminado na sociedade. Grande parte da responsabilidade sobre a violência é do Estado, que não deveria responder dessa forma aos problemas sociais existentes.
Temos um país que às vezes parece caminhar de forma totalmente contraditória. Reduzimos fortemente as taxas de mortalidade infantil, mas, por outro lado, aumentamos a taxa de mortalidade na juventude por homicídios, acidentes de trânsito e suicídios. Nesse sentido, não tiro a responsabilidade do Estado pelo que está acontecendo. Essa responsabilidade pertence ao governo federal, principalmente, e também aos governos estaduais e municipais, ao poder Judiciário e ao poder Legislativo. Ela permeia o sistema político brasileiro, na medida em que as pessoas que tomam decisões políticas no Brasil respondem a um quadro de 55 mil homicídios por ano com técnicas estritamente repressivas.
Hoje, todos os partidos políticos no Brasil, da extrema esquerda à extrema direita, têm responsabilidade por esse quadro. Esse problema não aparece nos programas dos partidos políticos. É tratado como um não assunto. É um tema melindroso, no qual ninguém toca com medo de perder voto. Há, portanto, um grau de cumplicidade com o que está acontecendo.
Rede Mobilizadores – Têm sido frequentes os casos de justiça pelas próprias mãos, quando cidadãos agridem e/ou tentam linchar supostos infratores, em geral adolescentes e jovens. A que podemos atribuir esse crescimento da atuação de “justiceiros” em nossas cidades? Esse problema é decorrente da deficiência da segurança pública ou envolve outros fatores? Quais?
R.: Há uma falta generalizada de confiança por parte do conjunto dos segmentos sociais no Brasil em relação aos sistemas policial e judicial que nós temos. O que faz as pessoas praticarem a justiça com as próprias mãos é a falta de confiança nas instituições. Nossosistema policial e judiciário precisará, necessariamente, ser profundamente repensado e transformado.
Entrevista concedida a Eliane Araujo em 04/09/2014
Fonte: Rede Mobilizadores
http://www.mobilizadores.org.br/entrevistas/reformulacao-dos-sistemas-policial-e-judiciario-e-fundamental-para-enfrentar-violencia-contra-os-jovens/?eixo=

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