"Querem roubar a pureza, a nacionalidade de um país, destruindo a sua cultura"

Por Eduardo Sá e Marcelo Salles

Mestre Azulão, um dos fundadores da Feira de São Cristóvão. Foto: Renan Oliveira.

Poeta desde os 7 anos de idade, José João dos Santos, mais conhecido como Mestre Azulão, é natural de Sapé, da Paraíba, e tem mais de 300 títulos de cordel publicados. Um dos fundadores da Feira de São Cristóvão, tradicional reduto nordestino, veio para o Rio há cinco décadas, onde mora atualmente em Engenheiro Pedreira, na Baixada Fluminense. Como os outros nordestinos, chegando ao Rio trabalhou na construção civil, mas cantava nos canteiros de obras para alegrar seus companheiros. Aos 78 anos, cantador profissional desde os 15, mantém a voz vigorosa e vive exclusivamente da venda de seus folhetos, palestras, oficinas e cantorias. É membro da Academia Brasileira de Literatura de Cordel, já foi chamado para apresentar seus trabalhos nos Estados Unidos e Europa, além das universidades em vários estados do Brasil. A seguir ele conta que a autenticidade da Feira está se perdendo e o artista popular enfrenta muitas dificuldades no país.
Você comentou que aqui no Brasil a nossa cultura não é valorizada, e que lá fora é muito mais reconhecida.
O brasileiro não quer nada disso, essa mocidade está desgraçada porque está alienada com tudo quanto não presta e vem da América do Norte e de outros países que têm o prazer de tirar o patriotismo do nosso povo para gostar do que é deles. Mas eles não têm culpa, a culpa é dos nossos governantes que abrem as pernas para os americanos tirarem o amor pátrio do nosso povo. Porque a cultura faz parte do nosso patriotismo.
E você acha que tem influência dos meios de comunicação nessa questão cultural que você apontou?
A Globo então não quer nem saber, vira as costas. Se por acaso a Globo passar aqui e filmar 30 segundos eles não botam nem 10 segundos no ar. Eles chegam aqui e eu falo: por mim você pode desligar a câmera, porque vocês não botam no ar então eu não vou perder meu tempo. Isso já aconteceu milhares de vezes, são incontáveis.
Azulão em sua barraca de cordel na Feira de São Cristóvão. Foto: Renan Oliveira.

Descaracteriza a própria identidade…
Então esse tempo dado para o internacional aqui, não dá chance na televisão nas horas mais apropriadas para os programas porque estão todas ocupadas com a cultura internacional.
Eles estão à favor do dinheiro, né?
Não é isso não, querem roubar a pureza, a nacionalidade de um país, destruindo a sua cultura. O brasileiro, ou qualquer outra nacionalidade, tem amor à sua pátria através também de sua cultura. E não tendo chance de apreciar e participar de sua cultura, é uma pessoa despatriada. Uma pessoa que não tem amor à pátria é que nem cocô na água, não sabe para aonde vai. A música brasileira é a mais bonita do mundo, porque vem de muitos países, principalmente da Europa. Mas na mídia eles só querem saber desses rebolados.
Você participou da fundação da feira, como está a situação hoje em relação às suas origens?
Não tem mais aquela feira, acabou-se. Estamos numa batalha para ver se sobrevive alguma coisa da cultura nordestina, porque por eles não tinha nada aqui. A cultura autêntica hoje não tem.
Por exemplo?
Porque antigamente se eu ligasse meu auto falante, ou começasse a cantar um folheto mesmo sem auto falante, começava a rodear isso aqui de gente. Todo mundo comprava os meus livros, aqueles que não tinham às vezes até tomavam emprestado. Eu cantando, porque a autenticidade no nordeste é vender a literatura de cordel cantada. Eu estou sobrevivendo aqui porque eles querem um pouco da literatura de cordel, tem dois seguranças que tomam conta de mim.
Algumas manifestações culturais nordestinas resistem às modificações na Feira de São Cristóvão. Foto Renan Oliveira.

Mestre, você acha que isso ficou pior depois que a feira ficou fechada?
Não, porque essa feira foi muito propagada depois que veio para cá. Agora, as pessoas que vêm do exterior, que são turistas, têm mais consideração, porque vêm na intenção de colher a cultura brasileira. Mas o povo daqui não tem nada disso. Se deixar, cada loja dessas eles faziam uma coisa qualquer da prostituição. E vai ter, talvez eu não alcance porque eu já estou com os meus 78 anos, mas vai se tornar isso aqui um reduto de prostituição e tudo o quanto é ruim, vagabundagem, venda de todo tipo de tóxico. Aliás, isso tem, debaixo de sete copos. Mas tem porque tem dinheiro, e onde tem dinheiro tem crime.
Você contou que antigamente os nordestinos chegavam aqui e cantavam em obras civis, onde concentrava muitos trabalhadores. Como você vê hoje o nordestino no mercado de trabalho carioca?
A construção no meu tempo, quando eu vim para cá, que eram grandes firmas, a Predial Corcovado, Brandão Magalhães, Ecisa, e outras, os nordestinos trabalhavam e moravam dentro da obra. Muitos que vinham para cá, só saiam da obra para comprar a passagem do pau de arara para voltar. Naquele tempo eles guardavam dinheiro, faziam cerão.
Isso para aumentar o ordenado?
É, porque o caboclo ficava um ano aqui e depois levava um bocadinho de dinheiro. Depois acabou esse negócio de gente dormindo na obra. Eu tenho até um poema intitulado “sofri mais do que bêbado em atoleiro”. Sabe o que é um bêbado num atoleiro? Quanto mais ele quer sair mais ele não sai, mais se atola.
O mote era esse, essa métrica são 10 sílabas em cada verso, numa estrofe de 10 versos são 6 sílabas métricas. Porque eu dou aula de literatura popular brasileira nas faculdades. Tem de sextilha, setilha, oitava, décima, tem o décima em martelo agalopado e o décimo em galope à beira mar, que são 11 sílabas em cada verso.
Conte sua passagem pela política
Eu não registrei Mestre Azulão, só o meu nome José João dos Santos, ninguém me conhecia assim. Eles fizeram isso na má intenção, eu não registrei o Azulão e o povo votou todo no Azulão. Com 3 mil votos eu seria eleito, eu tive 10.714 votos e não fui porque não registrei.
"A culpa é dos nossos governantes que abrem as pernas para os americanos tirarem o amor pátrio do nosso povo, porque a cultura faz parte do nosso patriotismo", critica Azulão. Foto: Renan Oliveira.

E como é que os votos não serviram para mim que sou o dono, e serviram para quem não tem voto? Isso aí é dinheiro, você pode me prender porque eu tenho as minhas mãos limpas. Me levaram mas não me prenderam. Ué, os votos são meus, se não serviram para mim deviam rasgá-los e jogar no lixo, mas despejaram na legenda e elegeram quatro vereadores com o meu voto que não tinham direito. Nunca mais eu quis ser político, e tenho raiva, ódio horroroso de político.
O senhor dá aula em diversos lugares, mas como é que o senhor aprendeu?
É porque eu sou poeta, escola nenhuma ensina a ser poeta. Essa rapaziada nova pensa que é poeta, faz essas bobagens sem métrica, não tem originalidade, não tem nada o que dizer. Lá em casa são 18 irmãos, mas os homens nenhum a não ser eu é poeta, de poesia não sabe nem pra onde vai. Não gostam e têm raiva de quem gosta.
Seus pais tinham isso?
Meu pais gostavam muito da poesia, os cantadores cantavam lá em casa. Meu pai tinha a idéia mas não sabia fazer, ele era analfabeto. Eu desde pequeno ouvi os catadores, decorei aquelas toalhas que são músicas, cantava folhetos. Chamava Azulão porque tinha um velho chamado Azulão, que eu aprendi a toada com ele, ele morreu e eu continuei com Azulão. Fui de uma escolazinha no mato até o terceiro ano primário, mas eu tenho escrito muita coisa e as pessoas pensam que eu tenho segundo grau.
Mas você é da Academia da Literatura de Cordel.
Mas Academia não ensina nada, ela quer para ela. O presidente da Academia dá a carteira de poeta a quem nunca soube de poesia, isso é uma coisa estúpida.
Eu tenho 12 romances de 32 páginas, mais de 5 pelegas, cordéis variados. Já fui em Nova York, Portugal e França. Eu sobrevivo com um salário mínimo de aposentado, o público está descaracterizado porque não tem nenhum meio que propague o poeta popular. No nordeste toda a semana na escola tem literatura popular, aqui não tem nada. Eu vendia muito meus livros nessas praças públicas com o meu auto falante, agora não pode mais porque os bandidos tomam o dinheiro da gente.
(*) Entrevista utilizada em reportagem na edição de agosto da revista Caros Amigos.

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