O voto dos argentinos: lições para o Brasil

Por Emir Sader

A campanha eleitoral argentina, assim como já se prenuncia a brasileira, será densa de argumentos e de dimensões distintas. Logros e sucessos do governo anterior e o do atual, acusações mútuas de corrupção, memoria positiva ou negativa dos lideres, entre tantos outros.

Mas, como votaram os argentinos ontem? Dá para tirar lições para o comportamento dos eleitores brasileiros no ano que vem?

Apesar das diferenças na estrutura social e no plano cultural, não há como não estabelecer enormes paralelos entre a história dos dois países. Peron e Getúlio, golpe de 1955 lá e suicídio do Getúlio aqui, Frondizi e JK, golpe de 1964 (com o fracasso do golpe argentino de 1966, se dão diferenças sobre o sentido de sucesso econômico aqui e de fracasso do ditadura argentina, surgida do golpe de 1976), Alfonsin e Sarney, Menem e FHC, governos dos Kirchner e do PT.

O retorno da direita lá se dá por eleições, que impõem uma derrota mais dura do que a daqui, imposta por um golpe. Não só pela legitimidade que dá uma vitória eleitoral, mas também porque projeta um líder com prestigio da vitória – Mauricio Macri e todo seu marketing moderno -, mas também Maria Eugenia Vidal, surpreendente jovem e charmosa governadora da província de Buenos Aires – bastião histórico do peronismo. Na resistência, as diferenças entre o peronismo e o PT pesam também, mais positivamente pela unidade interna aqui e por tendências históricas centrífugas do peronismo lá

Mas os programas de restauração neoliberal dos governos de Macri e de Temer são muito similares, assim como o pessoal de CEOs e banqueiros que governam, bem como pelo fracasso na recuperação econômica e seus efeitos sociais desastrosos. Similares também as campanhas politicas contra a oposição – desqualificação dos governos anteriores e acusações desenfreadas de corrupção contra a Cristina lá e contra o Lula aqui.

Cristina fez campanha mais ou menos similar a que faz o Lula por aqui: destacando as conquistas dos governos kirchneristas e os imensos retrocessos do governo atual. Apostou na memoria dos argentinos e nos duros efeitos sociais das politicas neoliberais atuais.

Na reta final da campanha, diante do risco para o governo de uma vitória significativa da Cristina, o governo jogou forte no risco do retorno a governos que eles trataram de desconstruir, como responsáveis pela crise econômica atual pelos gastos excessivos do Estado e pela corrupção kirchnerista. Tal qual nas vésperas das eleições municipais do ano passado, o Judiciário e a Policia Federal se encarregaram das montagem teatrais, com a prisão do contador da Cristina e de outro ex-membro de segundo escalão do seu governo, levados do interior ao aeroporto central de Aeroparque algemados, com colete anti-bala, ampla escolta policial e convocação do aparato da mídia para consumar a operação.

Outro tema de força do governo no susto da reta final, quando os mercados se punham nervosos com uma possível vitória da Cristina, foi o uso pelo Macri da crise venezuelana, com a reiteração da afirmação de que “Sentia alivio por ter livrado a Argentina de se tornar uma Venezuela.”

A oposição concentrou denuncias e manifestações na reta final em torno da desaparição de um jovem líder mapuche, cujo destino é incerto, pelo qual o governo não tem nada a dizer, trata apenas de desqualificar a mobilização indígena como subversiva e busca, infrutiferamente, lavar as mãos sobre sua desaparição, como se nunca o tivessem tomado preso. Nem vivo, nem morto, desaparecido – bem ao estilo da sangrenta ditadura militar argentina.

As pesquisas davam resultados favoráveis ao partido do governo – Cambiemos – tanto no tradicional bastião conservador da cidade de Buenos Aires – como em várias províncias em que Macri havia fundado sua vitória – Cordoba, Santa Fe’, entre outras. Na província de Buenos Aires, Cristina aparecia sempre na frente, com diferença pequena, entre 3 e 6 pontos. O resultado final dependeria também dos votos de um “terceira via”- Agustin Massa, peronista, ex-kirchnerista, que no segundo turno de 2015 – como a “terceira via” da Marina aqui – ficou com o Macri. E dos votos do ex-ministro da Cristina, Floriano Randazzo, preterido por ela como candidato a presidente e, por isso, rompido com ela.

Os resultados de ontem surpreenderam tanto pela diferencia mínima entre Cristina e o candidato de Macri – seu ex-ministro de educação, o medíocre Esteban Bullrich -, quanto pelos avanços de Cambiemos em todo o pais, que fazem dele a forca politica principal da Argentina hoje. É’ preciso levar em conta, na província de Buenos Aires, que a recusa de Cristina de participar da interna do Justicialismo, com Randazzo, fez com que este lançasse sua candidatura tirasse dela os quase 6% de votos, como candidato independente. Mas não deixa de surpreender que, depois de perder o governo dessa província, em parte por um mal governo do próprio candidato a presidente de Cristina, em 2015, Daniel Scioli, a própria ex-presidenta não consiga recompor a maioria tradicional do peronismo, mesmo com os efeitos duramente negativos da recessão, do desemprego e dos tarifaços dos serviços públicos.

O tema da corrupção é similar lá e aqui, com matizes. As denuncias sobre as contas bancarias da família Macri no exterior e os negócios promíscuos dela com o governo foram muito mais ocultados lá pela mídia do que os do Temer e sua gangue aqui. Por outro lado, o tipo de denuncia de corrupção contra a Cristina conta com manipulações fundadas em elementos mais concretos do que as inventadas sobre Lula aqui. Mas como resultado a associação do PT e do kirchnerismo com corrupção é similar.

Restava saber como votariam os argentinos, mais movidos por que tipo de razão? Desastre social, corrupção, memoria positiva ou negativa do passado, Venezuela, identidade forte de direita ou de esquerda – o que contaria mais e em que proporção.

Pesquisas indicam as razões do voto dos argentinos ontem na província de Buenos Aires, a que mais polarizou o enfrentamento governo/oposição, até pela presença determinante da Cristina. A maioria dos que votaram pelo candidato do governo – mais de 50% o fizeram “para apoiar o atual governo”, mas também (cerca de 30%), para que “não volte o kirchnerismo”. 40% dos que votaram pela Cristina o fizeram para que ela volte a governo “porque antes estavam melhor”. 21% dos que votaram por ela o fizeram, como ela pregou tanto, “para brecar o governo atual” e 17% “porque a situação atual é muito ruim”.

Apesar da manipulação tão propagada do tema da corrupção – tanto ou mais do que aqui – apenas 4,2% dos que votaram pelo candidato do Macri o fizeram para se manifestar “contra a corrupção” ou porque os integrantes da sua coalizão “não são corruptos”.

Outro dato importante: quase 80% dos que votaram pela Cristina e mais de 60% dos que o fizeram pelos candidatos da direita, tinham decidido seu voto antes da campanha eleitoral.

Eu quis socializar essas informações para alimentar um bom debate por aqui. Não tiro conclusões apressadas por analogias ligeiras, mas é importante tirar conclusões de situações similares lá e aqui. Sobre o peso muito pequeno do tema da corrupção, sobre o apoio ao governo e à ex-presidente, sobre as decisões tomadas já antes da campanha eleitoral.

Lembrando que, nas diferenças de idiossincrasia, para os argentinos, “todo tempo passado foi melhor” e para nos, o Brasil é “o pais do futuro”, para recordar a euforia e a depressão de um lado e do outro e como a luta pela reconquista da esperança, lá é cá, é fundamental.

Fonte: Brasil 247
https://www.brasil247.com/pt/blog/emirsader/311630/O-voto-dos-argentinos-li%C3%A7%C3%B5es-para-o-Brasil.htm

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