Movimento pela memória não tem volta, ‘não depende de comissão’, diz procuradora exonerada

A procuradora regional da República Eugênia Augusta Gonzaga, também adjunta da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) do Ministério Público Federal, não foi avisada por ninguém sobre sua exoneração da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Soube por uma jornalista, que a procurou às 7h de hoje (1º), quando a medida foi publicada no Diário Oficial da União. Quatro dos sete integrantes do colegiado foram substituídos por nomes ligados ao conservadorismo, refratários à Justiça de Transição, o que poderá ensejar questionamentos até judiciais mais à frente. Eugênia se disse triste pelas famílias dos desaparecidos, mas tentou manter otimismo, destacando os movimentos pelo resgate e preservação da memória. “Esse tipo de iniciativa não tem volta. Não depende de comissão”, afirmou, em entrevista coletiva na sede do MPF em São Paulo, ao lado do também procurador Marlon Weichert e com a presença de muitos parentes de vítimas, peritos e ativistas de direitos humanos, que foram prestar solidariedade.

Ela ressaltou o papel dos familiares das vítimas no processo que levou a medidas como a análise das ossadas encontradas em 1990 em uma vala clandestina no Cemitério Dom Bosco, em Perus, zona noroeste de São Paulo. “Finalmente as 1.047 caixas estão sendo analisadas, por mãos competentes. Houve duas identificações (de desaparecidos políticos)”, lembrou, acrescentando outras frentes abertas cujo futuro, agora, é incerto. “Foi graças a essas pessoas (familiares) que nós entendemos que era preciso que as instituições atuassem. Acho que finalmente as famílias puderam voltar a confiar na Comissão Especial. Finalmente os familiares encontraram um espaço de acolhimento dentro do Estado brasileiro.” A primeira identificação entre as ossadas foi em fevereiro do ano passado e a segunda, em dezembro.

Segundo a procuradora, a aprovação da Lei de Anistia, em 1979, representou um “pacto de esquecimento” em relação aos crimes da ditadura, com consequências até hoje. “Foi extremamente danoso para o país. Não consegue entrar no período de uma democracia consolidada”, afirmou.

Eugênia também ressaltou o papel dos colegiados para a democracia e fez críticas a Jair Bolsonaro. “Comissão e conselhos são garantia constitucional que a sociedade civil pode atuar na decisão de políticas. São órgãos de Estado, que independem da composição de governo”, lembrou. “As declarações que o presidente deu hoje demonstram que existe incompreensão sobre essa diferença (entre órgãos de Estado e de governo).” A procuradora disse ainda que a Comissão Especial “sempre foi apartidária, composta por pessoas que têm estreita relação com o tema. E não são remuneradas.” Entre seus antecessores, figuram nomes como os de Miguel Reale Jr. e Marco Antonio Barbosa.

Retaliação

A agora ex-presidente da Comissão Especial considerou “inusitado” o fato de o presidente ter substituído um deputado integrante do colegiado sem consultar a Câmara. Pela Lei 9.140, de 1995, um dos sete membros deve ser escolhido entre os integrantes da Comissão de Direitos Humanos da Casa. Paulo Pimenta (PT-RS) dará lugar a Filipe Barros (PSL-PR), advogado e ex-vereador de Londrina, ligado ao Movimento Brasil Livre (MBL) e que neste ano comemorou o “aniversário” do golpe de 1964. Há também uma indicação para levar à Comissão o procurador Ailton Benedito, “muito conhecido por suas posições contrárias a esse tema”, lembrou Eugênia.

A nomeação do novo presidente da Comissão Especial, o advogado Marco Vinícius Pereira de Carvalho, assessor especial da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, e filiado ao PSL, partido de Bolsonaro, também foi questionada. Para os procuradores, pode ser mais um sinal de falta de autonomia do colegiado.

Ela não tem dúvida de que a decisão de Bolsonaro foi uma resposta à posição da Comissão Especial sobre o caso de Fernando Santa Cruz, desaparecido político desde 1974 e incluído na lista oficial dos desaparecidos. A Lei 9.140, que criou a Comissão, também reconheceu “como mortas, para todos os efeitos legais, as pessoas que tenham participado, ou tenham sido acusadas de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 5 de outubro de 1988, e que, por este motivo, tenham sido detidas por agentes públicos, achando-se, deste então, desaparecidas, sem que delas haja notícias”. Caso de Fernando, pai do atual presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, atacado no início da semana pelo presidente da República.

A procuradora lembrou que a desestruturação já havia ocorrido na Comissão de Anistia, com substituição de seus integrantes por nomes não identificados ou opostos ao tema. “É uma tentativa de frustrar os objetivos para os quais ela foi criada. Nós temíamos que isso acontecesse também com a Comissão Especial.”

Barbárie e crueldade

Houve questionamento do Ministério Público, via ação civil pública, sobre as mudanças na Comissão de Anistia. Weichert foi cauteloso em relação à Comissão Especial, mas disse que o assunto será analisado. “A nomeação, embora seja livre, não pode ser arbitrária. Tem que ser fundamentada”, afirmou. Ele também reagiu a comentário de Bolsonaro sobre o relatório da Comissão da Verdade sobre desaparecidos políticos. “As conclusões da Comissão Nacional da Verdade são conclusões do Estado brasileiro. Então, não são balela.” A quem as conteste, o procurador observou que “se impõe um ônus de provar que são indevidas”.

Para Eugênia, a fala do presidente foi “injuriosa” e “profundamente ofensiva ao princípio da moralidade administrativa”. “Ele está descumprindo seu dever de defender o Estado brasileiro. Isso é muito grave, negar valor a um documento.”

Ela ressaltou os movimentos em defesa da democracia e por memória, contra a violência do Estado – inclusive a atual – como a I Caminhada do Silêncio, realizada em 31 de março no Parque do Ibirapuera, em São Paulo. Dali se originou o movimento Vozes do Silêncio, lançado em junho. “A ideia é aglutinar, produzir essa consciência, essa memória.”

Ligado há muitos anos a iniciativas pró direitos humanos, Eugênia ressaltou justamente o caráter desumano de um desaparecimento político. “Não entregar o corpo é barbárie. E essa situação de brincar com a versão é crueldade.”

Fonte: Rede Brasil Atual

(01-08-2019)

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