A maneira como os grupos envolvidos no FEM ou no FSM lidariam com tamanha variedade, se há contornos de dominação sobressaindo nas ações destes agentes, podem nos dizer hoje se a aposta em uma esfera pública global futura, ou uma democracia mundial, é fadada a ser um grande fracasso. Por George Gomes Coutinho (*).
No mês de janeiro, sobretudo nos últimos seis anos, parte significativa da grande imprensa mundial mobiliza-se em torno de dois grandes eventos que, em maior ou menor escala, sintetizam e debatem no seu desenrolar parcela nada desprezível dos problemas que acossam a humanidade. Estão presentes, enquanto objeto de discussão, temáticas que vão desde a proliferação de doenças sexualmente transmissíveis (com destaque para a AIDS), bioética, patentes, desenvolvimento, religiosidades, tecnologias de informação, mercado financeiro etc., o leque é, pois, multifacetado. E, direta ou indiretamente, a temática da democracia, ponto que irei retomar adiante, também está presente em discursos e posicionamentos.
O primeiro destes eventos, o Fórum Econômico Mundial (doravante FEM) representa hegemonicamente a reunião da fração rica do mundo, ocorrendo seu grande encontro anual desde 1971 até a presente data. Segundo o Wall Street Journal de 20 de janeiro de 2003, naquele mesmo ano contavam-se mais de 1000 (mil) grandes corporações presentes nas reuniões realizadas em Davos, aquela pequena e sofisticada estação de esqui na Suíça. Evidente que também há a presença, incensada, de partícipes do showbusiness internacional como a atriz Sharon Stone ou o cantor da banda de rock irlandesa, Bono Vox, do U2 o que ajuda a atrair os olhares ávidos por novidades dos correspondentes da imprensa.
Contudo, em meio à tamanha pirotecnia e paparazzos, segundo dados disponibilizados pelo próprio evento em seu sítio eletrônico (http://www.weforum.org), nada mais que 69% dos participantes da última reunião, no ano de 2005, eram provenientes da dupla Europa/América do Norte. Parte significativa do “restante” do mundo divide-se nos 31% restantes. Seja como for não é exagero afirmar que os grandes “Senhores” do mundo, sejam senhores de guerra ou da paz, por lá se encontram, realizando uma interessante mistura de grandes e pequenos líderes mundiais com homens de negócio. A ausência das “mulheres de negócios” deve-se ao fato de que estas ainda sejam minoria no FEM, ao menos se tomarmos como referência o ano de 2005.
O Fórum Social Mundial (doravante FSM) é representado comumente como a contraparte do FEM, o seu grande antagonista, seja pela mídia ou por seus idealizadores. Evento realizado primeiramente no ano de 2001, concebido por Oded Grajew (ex-presidente da Grow brinquedos), Francisco Whitaker (arquiteto de formação e atuante em movimentos sociais de base católica) e Bernard Cassen (diretor do jornal Le Monde Diplomatique), o FSM viria congregar as forças anti-globalização que atuaram em protestos que sacudiram as sociedades centrais como o de Seattle (EUA) em 1999 e, depois, iria fornecer elementos para outras manifestações, como a ocorrida em Gênova, Itália, no mês de julho do ano de 2001.
Desde então, as reuniões anuais ocorridas em Porto Alegre (Brasil), tendo apenas uma edição acontecido na cidade de Mumbai (Índia), funcionam para tentarmos compreender quais seriam as apostas e formatos encontrados para “Um outro mundo possível”. Também tal estratégia metodológica pode ser interessante na observação do FEM, ou seja, nos discursos elaborados pelos freqüentadores desta reunião também anual.
Retornando ao FSM, este é inegavelmente plural, multilingüe, multiétnico, multicultural e dotado de uma tolerância religiosa que faz com que convivam crenças monoteístas, politeístas e ateus, porém convivendo com uma séria fragilidade, que seria a obtenção de um maior número de representantes da maior gama de tendências político/culturais possíveis, sejam de uma esquerda mais “tradicional”, ou de grupos oriundos da chamada “nova esquerda”. Inclusive, o formato “policêntrico” em voga, com reuniões acontecendo em diversas partes do mundo visa obter maior legitimidade perante os grandes movimentos atuantes na esfera global objetivando ser um facilitador para a presença dos militantes que, em sua maioria, são auto-financiados. Caracas (Venezuela), Bamako (Mali) e Karachi (Paquistão) são as sedes desta tentativa no ano de 2006, para uma maior diversidade humana no FSM.
Estes dois Fóruns nos chamam a atenção por ocorrerem em um momento histórico complexo no que diz respeito à democracia. O “refluxo” é uma realidade pois estaríamos vivendo, ao mesmo tempo, o espraiamento das democracias representativas liberais no mundo e também, parcialmente, o seu questionamento. Seja pela baixa freqüência do eleitorado nas urnas em determinados países centrais, ou pela invasão efetuada pelos EUA no território iraquiano em nome de uma democracia representativa imposta realizada às expensas do povo daquele país, ou, mais um paradoxo, na ascensão de grupos de extrema direita na Europa, que consideram normalmente a democracia um artefato de pouca utilidade, parecendo ignorar solenemente que eles mesmos estejam em ascensão não a despeito das nossas democracias “formais” e, sim, em conseqüência destas. Se, por um lado, “nunca fomos tão democratas” aparentemente este regime ou procedimento, se não for acompanhado por inovações no campo institucional, pode vir a pique ou ser ainda mais desgastado no médio/longo prazo.
Uma outra grande questão, o que faz com os dois Fóruns possam ser vistos como um laboratório para a democracia contemporânea: os chamados “contextos pós-nacionais”. A despeito do tamanho exagero de determinados analistas no que diz respeito ao fenômeno da globalização, é inviável dizer que “nada mudou”. Se o capitalismo desde o século XVI, se assim o quisermos, guarda uma vocação global, contudo, este jamais viu tamanha velocidade de comunicação. Esta comunicação é acelerada, dado o avanço das tecnologias, atrelado a uma notória disseminação da cultura material do capitalismo, a despeito de ocidente e oriente e, evidentemente, de sua distribuição desigual.
Também é contraproducente ignorar a difusão de sua cultura simbólica, expressa em valores, objetos de desejos e séries de longa duração que nos chegam pela televisão a cabo, etc.. Há alguma homogeneidade comportamental em curso, no que tange as classes médias, que supera os limites dos grandes Estados-Nacionais. Mas, a despeito da enorme importância do campo simbólico e da descoberta de novas subjetividades oriundas deste contexto, sabemos que há um grau de dependência transnacional abissal no campo econômico. As reconfigurações no mundo contemporâneo, como a criação de megablocos comerciais como a União Européia, nos apontam para desafios inelutáveis. A constante circulação de imigrantes nos leva ao problema de uma cidadania que pode, e necessita, ser pensada para além do espaço dos Estados-Nacionais se não quisermos deixar também estes blocos nascerem já “abortados”.
As teorias da democracia, que remontam ao seu nascedouro na Grécia antiga há pelo menos 2500 anos e que depois foram repaginadas para conviver com os Estados e a sociabilidade burguesa que se edificam a partir do século XVIII, chegam ao século XXI necessitando lidar com mais esta demanda. Neste sentido, respondendo a pergunta que confere título a este ensaio, eu digo que o FEM e o FSM podem ser vistos, se assim o quisermos, como laboratórios para pensarmos novas propostas no campo democrático, sobretudo, uma nova práxis democrática, necessariamente mais inclusiva, que saiba compreender e lidar com as vicissitudes do atual momento histórico.
Nas atuais circunstâncias em que a Organização das Nações Unidas (ONU) demonstra pouco poder de aglutinação e ação, embora mantendo alguma legitimidade simbólica, a movimentação mais ou menos espontânea de diversas categorias de agentes em ambos os Fóruns pode trazer oportunidades únicas para estudarmos esse fenômeno na devida complexidade que ele exige. Não há, ainda, uma esfera pública global. Ou, se há uma esfera pública desta magnitude, esta é ainda incrivelmente incipiente, trazendo poucos efeitos práticos para o exercício da cidadania. Mas, há a sua matéria prima: uma ampla variedade discursiva. Retornando aos dois fóruns poderíamos arriscar dizer que há esboços de uma esfera publica que lida com diferentes linguagens, valores, apostas, religiões, moralidades, etc..
A maneira como os grupos envolvidos no FEM ou no FSM lidariam com tamanha variedade, se há contornos de dominação sobressaindo nas ações destes agentes, podem nos dizer hoje se a aposta em uma esfera pública global futura, ou uma democracia mundial, é fadada a ser um grande fracasso. Os poucos analistas que se dedicam aos contextos pós-nacionais, até agora, tem dito que dificilmente conseguiremos erguer algo assim. Todavia, as ciências relacionadas a política, sejam a sociologia ou antropologia, história, filosofia política, relações internacionais, além da própria ciência política, terão que, mais cedo ou mais tarde, atentarem com vagar a este novo problema.
(*) George Gomes Coutinho é Mestrando em Políticas Sociais – UENF e Membro do Núcleo de Estudos em Teoria Social (NETS), coordenado pela professora Dr ª Adelia Miglievich – UENF.
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