A face repressiva da democracia durante a Copa

Na véspera da final, dezenas de pessoas são presas preventivamente, acusadas de organizar atos violentos e de integrar “quadrilhas armadas”. Por Mônica Mourão (*)

Manifestantes são presos em protesto contra a Copa do Mundo, no Rio de Janeiro, em 17 junho. Neste fim de semana, as prisões foram preventivas (Foto: Carta Capital)
Manifestantes são presos em protesto contra a Copa do Mundo, no Rio de Janeiro, em 17 junho. Neste fim de semana, as prisões foram preventivas (Foto: Carta Capital)

Em que ano estamos? O blog do Intervozes faz hoje um jogo de adivinhação com leitoras e leitores. Confira as respostas na sequência.
01. Um jornal passa de mão em mão. Muita gente quer lê-lo, mas poucas pessoas têm coragem de assiná-lo, pois essa lista poderia cair nas mãos da polícia.
02. Policiais entram armados com um fuzil em casa onde estavam uma senhora idosa e uma criança, em busca do pai da menina, que havia se manifestado contra o governo vigente.
03. Jornais e garrafas com material inflamável são usados como prova para prisão preventiva de dezenas de pessoas.
04. Livros considerados subversivos são apreendidos pela polícia.
05. Repórter que cobria ação policial é presa, espancada e xingada por policiais.
06. Jornalistas são chamados para dar depoimento e acabam sendo presos, mas são bem tratados pela polícia.
07. Cinegrafista têm equipamento interceptado para que não realize seu trabalho.
08. Veículo alternativo é impedido de participar de coletiva de imprensa.
09. Credenciais para cobrir setores do governo são negadas a jornalistas.
10. Dezenas de pessoas são presas em suas próprias casas ou locais de trabalho como medida preventiva contra distúrbios civis.
Mais uma vez: em que ano estamos? Essa pergunta teima em vir à cabeça quando aparecem notícias das arbitrariedades cometidas contra manifestantes em 2013 e 2014, pela assombrosa semelhança com ações repressivas feitas pela ditadura civil-militar (1964-1985). Veja agora em que circunstâncias aconteceram os casos.
01. Os leitores do jornal Opinião temiam ter seu nome associado ao veículo, que circulou de 1972 a 1977.
02. A família de Luiz, conhecido como Game Over, está sofrendo investidas da polícia em busca do manifestante, de acordo com relato dele do dia 12 de julho de 2014.
03. Foram expedidos dezenas de mandados de prisão preventiva (os números informados pela imprensa variam entre 30 e 60), dois de apreensão (por serem de pessoas com menos de 18 anos) e três flagrantes, entre sexta (11/7) e sábado (12/7). O crime: suposta organização de atos violentos no ano passado e suspeita de violência na final da Copa do Mundo, neste domingo. Uma garrafa com “material que parece gasolina”, edições do jornal Estudantes do Povo, coletes de imprensa e máscaras de gás fazem parte do material apreendido.
04. No dia 1º de julho desse ano, em protesto na praça Roosevelt, em São Paulo, um exemplar de uma biografia de Carlos Marighella, que estava na mochila de um estudante, foi apreendido pela polícia. Dias antes, também em São Paulo, dois ativistas foram (e ainda estão) presos com base em acusações forjadas.
05. A repórter da Mídia Ninja Karinny de Magalhães foi presa no dia 12 de junho de 2014, quando cobria a abertura da Copa do Mundo. Karinny foi mantida por cerca de uma hora numa viatura, conduzida em sigilo a um quartel, espancada por cinco policiais até ficar desacordada e depois deixada em uma delegacia da polícia civil.
06. Quase toda a redação d’O Pasquim foi presa, em 1970. A edição de número 74 do jornal justificava a ausência da equipe a um surto de gripe. Relatos dos jornalistas dão conta do bom tratamento recebido na prisão, com direito a rodinha de violão com um dos guardas responsáveis pelo grupo.
07. O coletivo cearense Nigéria teve sua câmera “apreendida” por seguranças particulares da Fifa Fan Fest na cidade de Fortaleza, na abertura da Copa do Mundo de 2014.
08. O jornal A Nova Democracia foi proibido de participar da coletiva de imprensa realizada neste sábado (12/7) na Cidade da Polícia, complexo com delegacias especializadas no Rio de Janeiro. O motivo alegado foi que vários dos detidos nesta véspera de final de Copa tinham, em suas casas, exemplares do jornal.
09. Entre 1975 e 1979, 20 jornalistas da sucursal de O Estado de S. Paulo em Brasília tiveram seus pedidos de credenciais negados, e as credenciais de outros 25 foram canceladas.
10. Houve prisões de dezenas de pessoas nas vésperas dos seguintes acontecimentos: golpe de 1964; promulgação do Ato Institucional nº 05 (AI-5), em 1968; abertura e encerramento da Copa do Mundo da Fifa, em 2014.
Uma diferença substancial entre o regime instalado em 1964 e hoje deveria ser que atualmente vivemos sob a vigência da Constituição de 1988, considerada um grande avanço democrático pela forma participativa como foi elaborada e pelos preceitos que assegura.
Um deles é justamente a liberdade de manifestação, que por envolver a livre divulgação de ideias, valores e reivindicações, relaciona-se diretamente com o direito humano à comunicação. Esse direito inclui a garantia de falar e de ser ouvido, o que, no contexto em que vivemos, passa necessariamente pelo acesso aos meios de comunicação.
Contudo, o quadro atual de violações revela o cerceamento das mídias alternativas e populares, ao mesmo tempo em que a cobertura da imprensa tradicional criminaliza uma vez mais os manifestantes, se apropria do jargão policial e considera todos os ativistas como integrantes de uma “quadrilha armada”, considerando as pessoas perseguidas “foragidas”. Neste cenário, máscaras de proteção contra gás lacrimogêneo, celulares, computadores e até joelheiras viram “objetos suspeitos apreendidos” pela Polícia.
Tragicamente, o apelo cantado por Chico Buarque, em 1974, ainda ecoa: “acorda, amor, eu tive um pesadelo agora”. Quarenta anos depois, o sono e o despertar permanecem intraquilos, e o termo “democracia” soa cada vez mais vazio.
(*) Mônica Mourão é integrante do Intervozes. Colaborou Juliana Lugão, jornalista. Texto publicado originalmente na Carta Capital.

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