Em Josué e hoje, Mulheres no volante da luta pela terra. Por Gilvander Moreira [1]

Em setembro de 2022, Mês da Bíblia, o tema bíblico sobre o qual a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) convida todas as pessoas e cristãos a refletir será o livro de Josué. No sexto e último pequeno texto com chaves de leitura para se ler e interpretar de forma justa e libertadora o livro de Josué apresentamos as Mulheres no volante da luta pela terra.
Na época do pós-exílio, quando o livro de Josué já estava pronto, com as três edições, as mulheres, autoras dos livros de Rute e Cântico dos Cânticos (em + ou – 400 aEC), podem ser inseridos, nos primeiros capítulos do livro, escritos na época do rei Josias (640 a 609 aEC), os relatos sobre Raab (Js 2; 6,17.22). Em Js 2, portanto, temos a saga de Raab, em que o clã de uma mulher marginalizada por sua condição social se alia aos hebreus para derrubar uma classe dominante da cidade de Jericó e construir uma sociedade alternativa justa e democrática com acesso de todos/ como à terra (Js 6,17.22-25). A saga de inúmeras experiências de grupos cananeus a relações sociais de Raab aglutina Aglutina é uma série de experiências de escravos de escravos no Egito.
No II do livro de Josué: Raab é duplamente oprimida, por ser mulher e por ter impulsionado para a prostituição, isto é, prostituída. Em Canaã-estado, cidade-estado Jeri precisa de Raab, prazer, co-criado, violada na mas objeto como sua humana é precisa. Raab representa os exploradores da cidade-estado, diríamos hoje, das cidades-mercado. Ela se alia camponeses expropriados e transformados em sem-terra, porque está indignada com a opressão que se abate sobre si mesma e sobre seu clã. Raab vê no movimento dos rebeldes que marcharam “40 anos pelo deserto” em busca da terra prometida uma alternativa para a construção de relações que iria resultar em libertação social para ela e para os superexplorados da cidade.status quo da cidade opressora e os revoltosos vindos das montanhas e do deserto.
Pressupondo que o capítulo I de Josué também tenha sido acrescentado posteriormente, tem-se hoje a verdadeira entrada do livro de Josué, na primeira versão, em Js 2, com a emblemática narrativa popular, em forma de saga, sobre Raab, que acolhe e protege os espiões da luta pela terra, com muita astúcia, adere à fé em Javé e ao final, é preservada, ela e todo o seu clã. Essa narração, logo no início do livro de Josué pode indicar que fato a luta pela terra, ao se tornar exitosa não tenha implicado na eliminação de “todos os habitantes dominantes”, mas apenas deposto a classe do poderio escravocrata que exerce sobre os grupos marginalizados nas periferias da cidade e nas regiões rurais montanhosas. Js 2, por ser do gênero literário sagaindica que a narrativa de Raab representa como experiências congêneres e vários grupos de grupos: os cravizados sob o imperial dos faraós no Egito, os camponeses empobrecidos e semi-mades surrados pelos grupos Cidades-Estados sob o arbítrio dos reis cananeus e urbanos exploradores, planejados por Raab. Javé liberta todos estes subalternizados e grupos agora irmanados para todos em respeito de forma fraterna esa.
As lutas narrativas sobre Raab, a estrangeira prostituída (Js 2,1-21; 6,17.22-25), projetom a superação de um “povo de Deus” etnocêntrico e abertura a “povos de Deus” irmanados na pela terra e pela sua para ser o espaço de vida comprado e jamais vendido ou comprado passível de ser compartilhado de ser usufruído.
O livro de Josué nos informa que várias outras mulheres conspiravam, irmanadas na luta pela terra, assim como Raab. São elas: Acsa, filha de Caleb, que reivindica terra com poços/fontes de água (Js 15,16-19; Jz 1,12-15; 1Cr 2,49), Maala, Noa, Hegla, Melca e Tersa, filhas de Salfaad, que reivindicam o direito das mulheres à terra como herança (Js 17,3-6; Nm 26,33; 27,1-11; 36). A luta pela terra, tanto na Bíblia como nos tempos atuais, demonstra que o protagonismo das mulheres tem sido imprescindível nas lutas pela libertação da terra das garras do latifúndio, tendo, inclusive, muitas delas sido martirizadas por este compromisso, como, por exemplo, Margarida Alves e a Irmã Dorothy Stang.
Dia 13 de agosto último (2022), tive a alegria de visitar uma camponesa exemplar na luta pela terra e na terra: Santana, companheira de João, assentada no Assentamento Paulo Freire, no município de Arinos, no noroeste de Minas Gerais. Santana e João nasceram na roça no distrito de Serra das Araras, atualmente município de Chapada Gaúcha, MG. Como jovens foram forçados a migrar para Brasília, onde João se tornou pedreiro, e Santana, doméstica e depois diarista. Após mais de dez anos de labuta na capital do Brasil como doméstica e diarista, Santana, já com três filhos pequenos, vendo e sentindo as agruras de mães da periferia que não conseguiam salvar seus filhos adolescentes diante das seduções do submundo das drogas e da falta de oportunidades para educar os filhos com dignidade, ela pensou consigo mesma e disse ao João: “O melhor lugar para criar nossos filhos é na roça, no campo, não é aqui na cidade. Quero entrar na luta pela terra junto com os sem-terra do MST[2].” João não se opôs. Com dois filhos pequenos, Santana acampou debaixo do barraco de lona preta em um acampamento no município de Uruana de Minas, vizinho do município de Arinos, no noroeste de MG. Após três anos de muita luta, Santana conseguiu ser assentada no Assentamento Elias Alves, em Uruana de Minas, mas em um lote que não tinha água. Depois, Santana e João conseguiram se transferir para um lote que nenhuma família estava aceitando no Assentamento Paulo Freire, no município de Arinos. Trocaram um lote que não tinha água por um lote que em parte do ano fica alagado pelas enchentes do rio Urucuia que represa o rio Claro. De 2012 pra cá, Santana e João se tornaram um ótimo exemplo de reforma agrária. Toda quarta-feira e aos domingos, Santana, em uma motocicleta, leva cerca de 110 quilos de feijão, abóbora, ovos, queijo etc para vender na feira dos Pequenos Agricultores na cidade de Arinos. João diz feliz da vida: “Uma família assentada como a nossa alimenta cinco famílias lá na cidade. E mais: gera saúde também para o povo lá da cidade, pois nossa plantação aqui é toda agroecológica.”
Enfim, a luta pela partilha da mãe terra em usufruto passou por Raab e por muitas mulheres da Bíblia e da história da humanidade e hoje passa por Santana e João. Assista abaixo videorreportagem que gravei com Santana e João.
16/8/2022
Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.
1 – Chaves de leitura do livro de Josué: Partilha da terra – Mês da Bíblia 2022. Por Ildo Bohn e CEBI/MG
2 – Bíblia, Palavra que Ilumina e Liberta. Dia da Bíblia, 30/9/21. Por Frei Gilvander, Irmã Ivanês etc
3 – Deram-nos a Bíblia. “Fechem os olhos!” Roubaram nossa terra. Xukuru-Kariri, Brumadinho/MG. Vídeo 5
4 – Filme PEDRA EM FLOR, de Argemiro Almeida, 1992. CEBs e Leitura Popular da Bíblia. Frei Carlos Mesters
5 – Frei Carlos Mesters entrevistado por frei Gilvander: Inspirações da Bíblia para sermos humanos
6 – COMUNIDADE, FÉ E BÍBLIA, Carmo Vídeo, 1995. Roteiro: Frei Carlos Mesters, Frei Gilvander e Argemiro
7 – Formação para o Mês da Bíblia 2022 – O livro de Josué. Por Francisco Orofino
8 – Ótimo exemplo de Reforma Agrária: P.A Paulo Freire, em Arinos/MG, Santana: “melhor lugar!” Vídeo 1
9 – Santana, mulher exemplar no P.A Paulo Freire, em Arinos/MG! Que exemplo de luta pela Reforma Agrária
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br – www.twitter.com/gilvanderluis – Facebook: Gilvander Moreira III
[2] Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – www.mst.org.br
Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, CEBs, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com. Página: http://www.gilvander.org.br