Educação popular no sertão baiano: um balanço de 20 anos

O Serviço de Assessoria a Organizações Populares-SASOP, com representação em Remanso, em Salvador e em Camamu, Bahia, completou em 2009 vinte anos de trabalho de apoio à agricultura familiar e à agroecologia. Sua atuação ganhou destaque, de modo especial, na região do lago de Sobradinho, especialmente nos municípios de Remanso, Pilão Arcado e Campo Alegre de Lourdes.
No contexto da avaliação de seus 20 anos de existência, o SASOP, através de sua coordenação, gentilmente convidou-me para um encontro para troca de experiências, avaliação e evidentemente de celebração, em Remanso. Pertenci ao grupo que acolheu naquela região parte dos assessores que fundaram o SASOP, em 1989. Este trabalho significa, portanto, um esforço de registrar as marcas que ficaram da viagem de uma semana, do fim de janeiro e início de fevereiro de 2010, quando retornei a Remanso e Campo Alegre de Lourdes e reatei vivamente os contatos com a paisagem e com os educadores e animadores populares da região.

Em 1982, como integrante da equipe pastoral da Diocese de Juazeiro, fixei residência em Remanso e participei de intensa atividade de ação eclesial e político-educacional nos três municípios citados. Como diocesano, atuei de 1981 a 1986 e, desde então, até 1989 atuei numa organização não-governamental intitulada Centro Luiz Nunes de Apoio a Organizações Populares, com sede em Remanso.

Em 1990 deixei a região, deixei o contato direto com os trabalhadores rurais, dedicando-me, posteriormente, à docência, à pesquisa e a extensão, no ensino superior. Quando fiz meu êxodo do sertão baiano, o SASOP se constituía ali como um grupo de agrônomos e de educadores interessados em suscitar alternativas para fortalecer a agricultura familiar da região. Eu estava convicto de que o SASOP teria condições de cobrir uma lacuna antiga, abrindo espaço para o aporte de recursos técnicos alternativos, esperados com ansiedade pelos trabalhadores rurais.

Até a década de 80, o trabalho de educação popular pouco avançou no acesso às conquistas da ciência e da técnica mais elementares para aproveitamento das potencialidades do semiárido. Quando deixei a região havia um incentivo inicial para que a apicultura ocupasse gradativamente o lugar do extrativismo predatório. Havia também iniciativas isoladas no sentido de redimensionar o manejo dos criatórios familiares de cabras e ovelhas. Nada havia ainda de trabalho social para construir cisternas para captação da água das chuvas, colhidas dos telhados das residências rurais. Na época, não existia naqueles municípios, por parte dos órgãos públicos, qualquer iniciativa ou incentivos nessa direção.

O convite a mim dirigido era irrecusável, mesmo tendo de acelerar as atividades docentes de conclusão do segundo semestre de 2009, atrasadas por conta de antigas greves por questões salariais. Por nada deixaria aqueles dois dias de avaliação e de planejamento com os agricultores e sindicalistas rurais, com os assessores, alguns deles novos para mim, outros(as) meus conhecidos de longa data . No encontro marcado para fins de janeiro de 2010 vieram lideranças rurais de Camamu , de Sento Sé, de Casa Nova e dos três municípios acima citados, que conheci bastante bem na década de 1980.

Como eu me identificava profundamente com o trabalho popular daquela região sabia que essa volta não seria gratuita, cobraria um balanço, mesmo que superficial, das marcas do presente, do que me remetia ao passado, às expectativas acalentadas e decantadas ao longo dos anos 80. Após ter deixado a região, retornei anos depois para a pesquisa de campo de minha dissertação de mestrado. Estudei, entre outros problemas, o experimentar que envolvia o trabalho popular na abertura das Comunidades Eclesiais de Base,aos processos de organização sindical e político partidário em Campo Alegre de Lourdes. O trabalho popular tinha muito de ensaio e erro porque havia, evidentemente, uma falta de acúmulo de sistematizações prévias sobre educação popular em contextos como aquele, afinal as relações educativas dependiam de um desafiador diálogo de saberes com os(as) trabalhadores(as) que aderiam ao trabalho de animação das Comunidades Eclesiais de Base-CEBs.

No relato de agora, estou remetendo-me prioritariamente à Campo Alegre de Lourdes, à Remanso e à Pilão Arcado, municípios que conheci razoavelmente bem. Neles desenvolvia atividades no campo da educação popular e da escolarização de jovens e adultos.
Nos meus preparativos para a chegada ao Encontro, em Remanso, já detinha algumas informações do que iria encontrar pelo caminho: uma estação chuvosa de baixíssima intensidade, apesar de estarmos saindo do período que os meteorologistas da região chamam de pré-estação. Essas Informações foram obtidas pelos contatos telefônicos com pessoas amigas da região e pelos noticiários da televisão. Indícios marcantes e complementares falavam alto para quem conheceu de perto o semiárido: quando há grandes enchentes no Sul e Sudeste do país há uma tendência de ausência de chuvas no chamado polígono das secas . Além disso, a Bahia, de acordo com João Suassuna, não detém um índice pluviométrico dos mais promissores no semiárido, sua média é baixa, por volta de 480 mm/ano .

A chegada à Juazeiro, Bahia: revisitação livre aos arquivos da memória

Na noite do dia 27 de janeiro de 2010 pernoitei em Juazeiro. Sairíamos bem cedo no dia seguinte para Remanso, a meta era não perder o início do encontro, previsto para as 9 horas. À nossa frente havia mais de 200 quilômetros de distância. A 70 quilômetros de Remanso, a promessa era a de um asfalto completamente destrruído . O contato inicial com aquele espaço em Juazeiro, um dia familiar, anunciava o inevitável. Muitas recordações faziam dançar os arquivos da minha memória., como as águas do Velho Chico devolviam oscilantes as luzes lançadas sobre o recorte do seu trajeto entre as cidades irmãs.

As recordações não chegavam ordenadas, nem envergonhadas de bater à porta mais de uma vez. Uma boa vantagem da fala interior, como esclareceu Vygostsky, é a economia quanto ao que já está subtendido pelo pensante, mas não há limites quanto a transformar a evocação de cenários, de retratos de ontem em prosa interior reeditada.
Lembro-me, como se fosse hoje, quando já afeito às lidas do sertão baiano acabei surpreendido pelas narrativas do Grande Sertão Veredas, de João Guimarães Rosa (1979, 88). A uma boa altura do famoso texto, a trama chega às barrancas do São Francisco, incorpora a idéia de descer o rio, aprofundando-o em direção aos extremos da Bahia. Insinuava-se ali, nas primeiras décadas do século XX, o predomínio de distritos submetidos a um senhor maior, o “coronel”. Homem autoritário, família alargueada, servido por jagunços leais ao seu comando. Uma coisa, porém, é ler sobre a distante Januária, sobre a longínqua Carinhanha, outra coisa é a prosa roseana citar Pilão Arcado, Chique-Chique e Sento Sé.

Trinta anos atrás este comércio da ficção com a vida real era palpitante, uma vez que uma das expectativas mais importantes da pastoral popular coincidia com as lutas pelo processo de redemocratização do país. Aquele tempo era de evidenciar aos trabalhadores rurais a importância do que certos estudiosos entendiam como “civilizar o político”, de que a política não era “coisa suja”, ou tema pertinente apenas às famílias dominantes. Os sindicatos rurais dos municípios de Campo Alegre de Lourdes, Remanso e de Pilão Arcado até os primeiros anos da década de 1980 não estavam nas mãos dos trabalhadores rurais, como se estes tivessem nascido com uma incapacidade crônica de gerir sua própria organização, seu próprio destino. Os sindicatos rurais eram conduzidos por comerciantes ou por outros profissionais, como algo normal no lugar.

Naquela década, os ecos das mudanças pastorais suscitadas pelo Concílio Vaticano II, fortalecidas pelas conferências latino-americanas, de Medellín (1968) e de Puebla (1979), chegaram fortemente à Diocese de Juazeiro, notadamente com a sagração do bispo D. José Rodrigues de Souza e sua chegada à Juazeiro, em dezembro de 1974. O novo bispo natural do Rio de Janeiro, professor nas escolas de formação dos sacerdotes redentoristas, sentiu-se tocado pela maneira violenta como foram desalojadas mais de setenta mil pessoas para dar espaço à Barragem de Sobradinho. Sensibilizou-se pelas desigualdades sociais na região, pela fome que assolava os trabalhadores rurais, impossibilitados de alçar a uma vida decente.

Naquele contexto, o trabalho pastoral em localidades como Campo Alegre de Lourdes, por exemplo, seguia em regime de campanha, quando se tratava da formação das Comunidades Eclesiais de Base. O aceno a prioridades daquele tipo era ratificado como parte fundamental da missão diocesana, assim expressa pelo bispo diocesano: “ajudar o povo a se organizar para viver e celebrar comunitariamente sua fé (…) e daí ter forças para reivindicar seus direitos”. (SOUSA, 1982:04) Isso implicava uma ruptura com o papel tradicional da pastoral, que cuidava de evitar conflitos diretos com as forças políticas dominantes, historicamente controladoras do comércio, da política, da saúde e da educação nos municípios.

Uma pergunta inevitável: por que a região do Baixo-Médio São Francisco se tornou, especialmente nas décadas de 1970 e 1980, espaço de intensa ação pastoral, de animação popular , com encaminhamentos em direção ao sindicalismo rural, às lutas político-partidárias e ao processo de redemocratização do país? Como bem ponderava Regina Novaes (1990, 11), no caso da Igreja não era o fato de ser uma região estratégica das lutas populares com chances de influir diretamente no contexto maior das lutas políticas no país. O que provocava toda a efervescência em torno do trabalho de educação popular era a presença de um bispo surpreendido pelas condições precárias de vida e de trabalho de seus diocesanos. O bispo tinha uma grande capacidade de atrair padres, freiras e leigos interessados em fazer uma experiência decidida de organização popular. Mais importante, contava com uma disposição dos grupos populares no sentido de dizer sim aos novos e exigentes caminhos organizativos. O que importava era a existência de grupos populares interessados em ocupar um espaço inédito na vida de sua igreja local, alargando espaços de participação cidadã, que incluía a luta pela terra, pela escola, pela saúde, entre outras.

Os problemas que ali foram vividos pela ação pastoral diocesana padeciam de problemas muito parecidos aos que tinham sido analisados por Luiz Eduardo Wanderley (in VALLE, 1988: 74-9), naqueles anos nos quais as atividades de educação popular precederam ao golpe militar de 1964. Um problema recorrente na década de 80, como já foi enunciado, foi o da predominância de um quase experimentar tudo pela primeira vez, nas ações, uma vez que não havia acúmulo disponível, estudos prévios para alertar sobre problemas que giravam em torno de iniciativas como aquelas enfrentadas pelos educadores populares.

Da mesma forma que antes de 1964, se muitas vezes havia certa clareza dos educadores populares nas análises do que acontecia, isso parecia insuficiente para projetar encaminhamentos quando os sujeitos populares ocupavam espaços de protagonismo nas CEBs, nas lutas sindicais e partidárias. Não era simples captar nas entrelinhas das mensagens emitidas pelas lideranças populares o que elaboravam do novo que se desdobrava diante dos seus olhos. Isso obstruía um entendimento mais realista dos arranjos que as lideranças populares tendiam a incorporar, tendo em vista as condições precárias que enfrentavam em suas lutas sindicais e político-partidárias.

Atento a todas essas incógnitas e desafios, D. José Rodrigues não poupou esforços em convidar assessorias de renome nacional, capazes de ajudar a pensar os desafios da pastoral popular. Paulo Freire participou em abril de 1983 de uma semana de estudos com os educadores de todas as paróquias da diocese. Ainda voltou nos anos seguintes para mais dois encontros com educadores populares da região. De 1983 até 1986 estiveram em Juazeiro Carlos Rodrigues Brandão e Oscar Beozzo, apresentando estudos e diálogos sobre o catolicismo popular; Ladislaw Dowbor apresentou um encontro de estudos sobre economia. No campo teológico e pastoral estiveram em Juazeiro, D. Pedro Casaldáliga, Cláudio Perani, Leonardo Boff, Clodovis Boff, entre outros.

Em 1983, a tradicional família Viana, de Casa Nova, enviava uma nota para ser difundida em rádio do eixo Petrolina-Juazeiro e região. Na nota, evocava-se o movimento do catolicismo popular de Pau de Colher , bastante lembrado na região, mas pouco conhecido no país. O evento contou com um desfecho trágico em fins de 1937 e início de 1938, quando aquele grupo de devotos, localizado a 70 quilômetros da cidade de Casa Nova, nas proximidades com o Piauí e Pernambuco, acabou entrando em conflito com membros da comunidade, havendo possivelmente a morte de alguns moradores do lugar, que não queriam aderir ao movimento. Os devotos que se reuniam na casa do Beato Senhorinho, no povoado de Pau de Colher, entraram em um processo de radicalização, deixaram de trabalhar, deixaram de viver como marido e mulher, criaram uma lógica própria de crença e de justiça, confiantes de que o mundo estava próximo do fim.

Num primeiro confronto com as forças policiais de Casa Nova, morreram dois beatos e alguns policiais de Casa Nova. Posteriormente, sem que se desse chance ao entendimento, forças militares de Pernambuco, Bahia e Piauí produziram um verdadeiro massacre. As forças contabilizaram oficialmente 218 mortos entre os membros da comunidade que foram eliminados no local, de acordo depoimento de Optatos Gueiros, oficial que comandou a operação. Muitos outros teriam sido perseguidos e mortos na caatinga, sem que um esforço de diálogo mínimo tivesse sido levado em frente pelas autoridades, muito bem armadas com metralhadoras e outras armas de grosso calibre.
A família Viana descontente com os avanços do movimento dos trabalhadores rurais de seu município, com astúcia apelava para esta memória do passado, bastante ameaçadora. O Intuito evidente era o de tentar neutralizar as conquistas presentes das organizações dos trabalhadores, tendo em vista a evocação de lembranças traumáticas e polêmicas de um passado não tão distante.

Também em Campo Alegre de Lourdes, em 1988, quando um trabalhador rural disputava o poder executivo do município, as famílias dos políticos tradicionais propagavam que era um erro votar naquele candidato, porque era “pau mandado” dos barbudos (agentes de pastoral) da paróquia. Diziam que os barbudos iam trazer a violência e a morte, como aconteceu em Pau de Colher e, também, a invasão das propriedades particulares dos cidadãos campoalegrenses.

Outro acontecimento de desfecho inesperado, mas de grande interesse heurístico, aconteceu no saque aos depósitos de alimentos da prefeitura de Campo Alegre de Lourdes, em 1982. Experiência inédita no município e em todo o Baixo-Médio São Francisco. A seca que se estendeu no semiárido de 1979 a 1983 foi feroz e os trabalhadores viviam um momento de grande efervescência nas Comunidades Eclesiais de Base-CEBs. O diálogo com o poder público local estava difícil e hostil, uma vez que a pressão organizativa dos trabalhadores anunciava novos tempos de enfrentamento para o poder executivo local. O poder local estava habituado a atender somente a reivindicações particulares.
Por fim, o saque que vinha sendo discutido pelos trabalhadores nas comunidades de base acabou acontecendo, com a chegada de um caminhão de merenda, sob responsabilidade da prefeitura local. Impressionante não foi apenas o impacto da novidade na região, foi a surpreendente narrativa que se fez hegemônica para legitimar a inesperada conduta dos trabalhadores rurais. Sem ter sido provado, ouviu-se dizer que um trabalhador faminto havia pedido ao prefeito pelo menos uma rapadura do carro da merenda, para amenizar sua fome. O pedido negado teria provocado uma reação explosiva de desagravo. Era inaceitável a falta de consideração da autoridade diante do trabalhador maltratado e faminto. Isso explica, por outro lado, a lógica fundante que movia importantes lideranças populares das CEBs, quando contiveram os famintos a um passo de invadir uma casa de comércio conhecida pela variedade de bens alimentícios de que dispunha.

Carlos Rodrigues Brandão, em seu livro Casa de Escola (1984), fez uma observação interessante quando percorreu áreas rurais no interior da Amazônia. Ele dizia que anos de trabalho popular tinham a estranha capacidade de não alterar a paisagem onde viviam e lutavam os participantes ativos das comunidades rurais. Isso servia, entre outras coisas, para alertar sobre os limites do poder de influência dos educadores populares, tendo em vista uma tendência registrada por Wanderley (In VALLE, 1988: 77) antes de 1964. Para ele, o trabalho político-educativo dos educadores populares era capaz de promover um descompasso entre os avanços nos aspectos ideológicos da luta popular em detrimento do avanço das conquistas nas esferas da área econômica e política.

Durante o trabalho de minha pesquisa de mestrado, que realizei em 1992, o animador de comunidades, que foi candidato derrotado à prefeitura de Campo Alegre de Lourdes disse-me uma frase, difícil de esquecer: “Estamos cansados de ideologias só de idéias”. Em outras palavras, esta liderança parecia o porta-voz de uma decepção quanto aos caminhos da organização dos trabalhadores rurais vinculados às orientações da pastoral diocesana. Duvidava-se da possibilidade de conquistar o poder executivo local com ética, conforme defendido pela pastoral diocesana, sem concessões ao jogo político das negociações e da tradicional barganha de votos. Isso parecia apontar para uma presença paralela dos sujeitos populares, mais independente da direção partilhada com a pastoral. Apontava-se também para um anseio de conquistar bens, serviços e técnicas que pudessem interferir na paisagem e contribuir para melhorar concretamente seus meios de vida, trabalho e comercialização de seus produtos. A isso deve ser lembrado que, com a saída de D. José Rodrigues, o perfil do novo bispo da diocese de Juazeiro era muito mais de administrador do que de pastor interessado em entrelaçar fé cristã e ação preferencial junto aos empobrecidos da região.

Aspectos das lutas atuais em torno da questão da sustentabilidade da agricultura familiar

O SASOP dedica esforços no sentido de desenvolver o que denomina Programa de Desenvolvimento Local – Semiárido. Sua meta é a de estar sintonizado aos anseios das organizações dos trabalhadores rurais da região. Isso parece vir de acordo com o que expressou, durante o encontro, o calejado presidente do sindicato rural de Campo Alegre de Lourdes, Juvenal Braga; para este, faltam aos trabalhadores da região pernas para buscar o que está a serviço de seus interesses. Os trabalhadores de Campo Alegre de Lourdes, de Remanso e Pilão Arcado têm enfrentado, por décadas, estradas ruins, sistemas de comunicação precários, distâncias enormes, escassez de recursos e ações descontínuas dos órgãos públicos, no sentido de garantir sustentabilidade às atividades agrícolas na região. Digamos, então, que o SASOP, mantendo uma vinculação com os trabalhadores rurais tem um papel fundamental, no sentido de aumentar o alcance das pernas dos(as) trabalhadores(as) da região. Tal vinculação é algo fundamental para que a Entidade possa alcançar o que enuncia como “um modelo alternativo e sustentável dos sistemas produtivos, de uma nova concepção dos projetos de educação alimentar, do manejo dos recursos hídricos e da geração de renda” .

Nas décadas de 1970, de 1980, o trabalho de educação popular foi extremamente importante para criar as bases, ainda que tardias, do que hoje acrescenta modificações visíveis na paisagem rural, incorporando concretamente bens e recursos técnicos, socialmente conquistados, aguardados com ansiedade pelos sertanejos. Isso só se torna durável na região quando se dá uma ampla articulação dos trabalhares rurais, dos pescadores da beira do lado de Sobradinho e de seus assessores aliados, em torno do que o SASOP sintetiza como atividades de produção e beneficiamento de produtos agrícolas, gestão de recursos hídricos e de bancos de sementes, educação alimentar e desenvolvimento dos quintais agroecológicos, [que] acontecem em parceria com os Sindicatos dos Trabalhadores Rurais, as Paróquias, a Cooperativa de Pequenos Agricultores de Campo Alegre (COAPICAL), Cooperativa Agropecuária do Pólo de Remanso (COAPRE), Articulação Sindical da Região do Lago do Sobradinho, Rede de Mulheres, Colônia de Pescadores, Comissão Pastoral da Terra (CPT) e Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (IRPAA).

Nos meus cálculos, havia no encontro de estudos e de celebração cerca de 60 participantes, incluindo a equipe de assessoria do SASOP. A maior parte de rede de entidades acima citadas se fazia presente no evento. O maior grupo de participantes era o de Remanso, naturalmente garantido pela vantagem da proximidade do local de encontro. Uma pequena parte dos participantes, os mais antigos, eram meus conhecidos, havia uma boa parte de gente de meia idade e, também, jovens, que eu via pela primeira vez. A temperatura reinante, elevada e seca, não parecia alterar os ânimos dos envolvidos. Houve divisões de atividades para os pequenos grupos, para relato posterior em plenário.
Minhas expectativas estavam voltadas para o plenário, pois esperava alcançar, mesmo de modo incompleto, uma visão de conjunto das preocupações e tendência de uma educação popular mais diretamente voltada para fortalecer a agricultura familiar na região. Evitei a tentação de percorrer diferentes grupos, cuidei de ficar em apenas um deles, onde a discussão versava exatamente sobre as práticas alternativas de trabalho cotidiano, lá onde elas aconteciam, de fato.

No plenário, para fomentar o aprofundamento de uma análise de conjuntura, respondia-se sobre as ameaças concretas aos movimentos populares da região. Algumas da ameaças mencionadas não eram estranhas a mim, mesmo depois dos 20 anos de ausência da região: estradas ruins; chuvas irregulares; falta de água de boa qualidade; inconstância das águas do Lago de Sobradinho; uso de agrotóxicos de forma indiscriminada na agricultura convencional; destruição ambiental ampliada; não acesso a políticas públicas voltadas para a agricultura familiar; problemas para armazenamento dos produtos; dificuldades na comercialização da produção local.

Questionou-se também uma atualização da já conhecida violência doméstica contra as mulheres. Uma ameaça recente desponta como a chegada agressiva, inclusive com participação do governo estadual, das mineradoras em Campo Alegre de Lourdes e Pilão Arcado, para exploração de fosfato e outros minerais da região . O trabalho de exploração de fosfato no interior do município de Campo Alegre se, por um lado, abre novas estradas para escoamento dos produtos, por outro lado, destrói as redes de convivência e sabedoria tradicionais, ocasiona a vendas de terras por preços irrisórios, oferece postos de trabalho precários, contamina fontes de água e provoca poluição ambiental.
Tornava-se explícita, também, uma preocupação com o futuro político, aberta com as disputas eleitorais majoritárias no país, que aconteceriam em outubro de 2010. Os participantes temiam que pudesse haver um retrocesso ao que já foi conquistado com as políticas atuais do governo federal. Temiam um retrocesso quanto ao reconhecimento da importância da agricultura familiar, quanto aos créditos conseguidos, quanto às conquistas abertas para a disputa de fornecimento de produtos locais para a alimentação escolar; temiam pela não continuidade dos projetos da cisterna para a coleta de água das chuvas, e da segunda cisterna para os quintais produtivos. Temiam pelo não avanço na consolidação dos territórios tradicionais para a criação de bodes e ovelhas – de modo que não sejam considerados apenas como terra de ninguém.

Na apresentação das oportunidades e avanços conseguidos pelos movimentos dos trabalhadores rurais e aliados falou-se nos grupos e no plenário sobre a consolidação das conquistas das cisternas para captação de água das chuvas. Uma delas programada para consumo humano, outra para a produção, em pequena escala, de alimentos. Falou-se na alternativa da cisterna calçadão (com captação de até 50 mil litros), com a função de irrigar pequenas áreas como quintais produtivos e garantir água para aves domésticas. Falou-se nas possibilidades atuais dos microcréditos, na ampliação das redes de energia elétrica chegando aos espaços rurais. Falou-se na importância dos bancos de sementes, inclusive pela grande ajuda na capacidade organizativa e de planejamento dos trabalhadores rurais. A apicultura foi uma atividade que avançou muito dos anos 80 para cá. As cooperativas dos apicultores crescem em importância especialmente em Campo Alegre, mas tem apresentado resultados também em Remanso e em Pilão Arcado. O grande desafio atual dos apicultores da região é o de avançar na qualidade do manejo das colméias, na extração do mel para conseguir aprovação do Sistema de Inspeção Federal e de um rótulo, de tal maneira que haja uma reconhecida valorização do produto em sua comercialização.

Com a intenção de captar algumas sínteses e tendências de ação que emergiram do encontro apresento algumas idéias que se destacaram. Uma idéia insistente, que circulou nos grupos e no plenário destaca a importância de que as organizações dos trabalhadores lutem, inclusive junto ao poder municipal, para que haja maior vinculação entre as lutas das organizações populares e as escolas inseridas no meio rural. Não se trata apenas de lutar para fornecer parte da merenda destinada aos alunos das escolas públicas da região, mas de cobrar das professoras e professores um ensino apropriado aos interesses das crianças, jovens e adultos, que nelas estejam matriculados.

Outra idéia destacada foi a importância do debate em torno da questão de gênero, até porque foi marcante no encontro a presença da mulher, sua intervenção nos grupos e no plenário. No trabalho organizativo na região, a presença da mulher é significativa, inclusive no trabalho de apropriação das novas tecnologias que chegam aos espaços rurais. Por se tratar de um ano eleitoral, a compreensão era a de que as organizações procurassem construir uma perspectiva clara dos seus projetos, com independência diante das disputas eleitorais, garantindo que suas demandas reais fossem contempladas nas plataformas eleitorais dos candidatos.

Encaminha-se na região, pela Comissão Pastoral da Terra – CPT, estudos sobre o impacto dos grandes projetos de mineração na região. Com relação a ações internas, acenou-se para a necessidade de fortalecer redes de comunicação alternativa, a serviço da agroecologia e da agricultura camponesa.

Gostaria de encerrar o trabalho com dois destaques. O primeiro foi o incentivo do SASOP para afirmar o protagonismo dos trabalhadores rurais, através do que foi entendido com a noção do(a) “trabalhador(a) experimentador(a)”. Tal compreensão vem de encontro com a inteligência viva e com a grande capacidade intuitiva do(a) trabalhador(a) da região. A experimentação implica que o trabalhador continue fiel ao seu modo de ser, não se obrigando a nada que não passe pelo seu manejo consciente, pela afirmação de sua capacidade crítica e prática, diante das novidades apresentadas pelos aportes técnicos colocados a sua disposição.

Algo que muito me impressionou na região foi o relato de uma das agentes comunitárias da saúde, que surgiu dos trabalhos de base da pastoral. Ela me assegurou que para o atendimento de Remanso há mais de 70 agentes de saúde atuando em todo o município. Na década de 80 a maior parte dos socorristas locais era formada pela pastoral social diocesana. Creio que muitas e muitos dos agentes comunitários têm uma visão social enriquecida por bem mais de 30 anos de trabalho popular. A pergunta que fica é esta: como essas informações podem ser revertidas a serviço do fortalecimento dos movimentos populares? Como fazer para que esse extraordinário trabalho de base organize bancos de dado preciosos a serviço do fortalecimento das lutas e organizações populares?

Uma discussão final trazida pela coordenação do SASOP lembrava que a agricultura familiar e os fundamentos da agroecologia apontam para a conquista de sustentabilidade nas ações e relações que mantém as pessoas integradas ao seu contexto vital. O interesse final é o de viver bem, viver com abundância e alegria. É não temer o trabalho experimentado com liberdade de ação, nem por isso menos cansativo e menos persistente. Aqui é onde os trabalhadores e trabalhadoras rurais do sertão são grandes mestres.

Viver bem não é simplesmente muito possuir, mas sentir-se parte de uma dinâmica viva que ninguém controla, a não ser Deus. É estar em condições de vislumbrar, sempre com mais confiança, o modo de superar as incertezas e oscilações, deixando de cair na ilusão, na loucura, de querer dissolvê-las. Viver bem no semiárido é entender da vida e abraçá-la com humildade desconcertante como a do sertanejo que não teve receios em afirmar: “Não sou eu que crio o bode, é ele que me cria”.

REFERÊNCIAS:

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Casa de Escola. Cultura Camponesa e Educação Rural. 2. Ed. Campinas, Papirus. 1984.
NOVAES, Regina C.R. Teoria e Prática. In Tempo e Presença. Rio de Janeiro, Cadernos do CEDI. Nº 250. Ano 12, 1990, mar-abr.
PATER, Siegfried. O Bispo dos Excluídos: Dom José Rodrigues. Paulo Afonso. Fonte viva. 1996.
POMPA, Maria Cristina. Memórias do fim do mundo: para uma leitura do movimento sócio-religioso de Pau de Colher. Campinas: IFCH, UNICAMP, 1995. Dissertação de Mestrado. (mimeo.).
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 13. Ed. Rio de Janeiro. José Olimpio. 1979.
SOUSA, José Rodrigues. Entrevista para os anais de Nossa Senhora do S. C. dos Missionários do Sagrado Coração. In Caminhar Juntos. Nº 73. Juazeiro. Boletim Informativo da Diocese de Juazeiro, 1982, nov., p. 1-11.
WANDERLEY, Luiz Eduardo. Apontamentos sobre a Educação Popular. In. VALLE, Edênio. A Cultura do Povo. 4. Ed. São Paulo, Cortez, 1988.


O autor é professor do Centro de Educação, participante da Linha de Pesquisa Educação Popular, do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal da Paraíba.

Um comentário sobre “Educação popular no sertão baiano: um balanço de 20 anos”

  1. Pingback: Educação popular no sertão baiano: um balanço de 20 anos | Debates Culturais – Liberdade de Idéias e Opiniões

Deixe uma resposta