Resgato uma crônica escrita próxima ao Natal do ano anterior, período em que os efeitos do avanço perverso da direita brasileira ainda não eram sentidos. O desastre de um governo conservador, sem compromisso algum com seu povo e a soberania nacional, agora, já trazem consequências devastadoras.
Grande parte da população pobre já percebeu a furada em que se meteu ao endossar o discurso do golpe; a classe média empregada resiste e opta por criticar toda a classe política, no afã de camuflar o discurso realizado tempos atrás, exclusivamente contra o PT; os que antes se sentiam como parte da elite já entenderam que não é bem assim. Restaram apenas aqueles que desde sempre sabiam muito bem o que queriam: um país vertical, de poderes e direitos exclusivos.
Obviamente nem tudo é maldade e perversão, a mascarada solidariedade ganhou novos traços, ou melhor, voltou a ter os traços de sempre, que serão descritos na história abaixo:
Era mês de dezembro. Mês em que as famílias preparavam-se para o Natal e a chegada do ano novo. Em determinadas regiões, os prédios ganhavam luzes e enfeites, deixando a cidade mais bonita e o clima sublime.
Na família Lima não era diferente. Tomada pelo sentimento natalino, a matriarca reunia todas as crianças da família para montar a nova árvore de Natal, comprada na última viagem a Nova Iorque. Não era uma árvore qualquer, além do seu tamanho avantajado, os enfeites eram todos feitos à mão, por uma artesã francesa, que vendia suas obras também em Nova Iorque.
No afã de endossar o clima solidário que circunda o Natal, a família Lima organizava uma boa ação, repleta de amor e ternura.
Os preparativos começavam lá pelo dia dez, quando dona Sandra comunicava membro a membro da família que separassem todas as roupas velhas ou as novas que não fossem usadas, para doação. Tudo que fosse arrecadado seria entregue às famílias pobres, vizinhas da empregada Aparecida.
Pois é, o Natal realmente trazia ventos de pura solidariedade para aquela família. Além das desavenças e preocupações ficarem de lado, aquele ato de solidariedade unia e confirmava a triunfante bondade no coraçãozinho de cada um deles.
– Que coisa maravilhosa Sandra. Realmente você é um espírito de luz – dizia tia Adelaide motivadíssima com a ação.
– Obrigado titia, a senhora também é muito boa. – agradecia Sandra.
Adelaide, apesar da empolgação, demonstrava certa resistência para se desfazer dos sapatos. Posicionava os pares todos alinhados, realizando uma análise profunda de quais poderiam ser doados:
– Esse não, porque ainda posso querer usar. Esse aqui está arranhado na lateral, mas foi o Gustavo quem deu, fica de lembrança. Bom, este aqui apesar do furo será de bom proveito para os que não têm nada.
Já as crianças, libertavam-se dos brinquedos de forma pragmática:
– Mãe, só não dá os jogos mais novos. Os que estão guardados no armário de coisa velha podem ir. – dizia Fabricinho, o tenista da família.
E por ai iam-se somando brinquedinhos, roupinhas e sapatinhos a serem doados. Três grandes bolsas se enchiam com destino certo: favela do Lixão, em Gramacho.
Reunidos na noite do dia 24 para o dia 25, a família se concentrava para uma grande selfie com as doações. Segundo a tia Adelaide, um ato tão emocionante, digno dos bons corações, não poderia ficar sem registro:
– Quanta bondade minha gente, acredito que se houvesse mais gente assim o Brasil seria outro. Vamos registrar. Junta, junta!
Há de se destacar que a entrega de fato não se fazia naquele dia. Oscar, o patriarca, fazia questão de levar no dia seguinte todas as sacolas até a casa de Aparecida, onde fariam a distribuição.
No caminho, sua mulher Sandra elogiava o marido com palavras doces, enfatizando o ato solidário:
– Como você é bom Oscar, que ser humano esplêndido.
– Que isso meu bem, não é para tanto. Mas já que você diz, por que não acreditar? – respondia Oscar, numa mistura de orgulho e humildade.
Na favela, a chegada do carrão já provocava certa ebulição entre as crianças, que corriam de um lado para outro a fim de saber quem era a autoridade que se dirigia àquela região pobre e abandonada.
Na distribuição, alguns pequenos, em êxtase, não esperavam nem Sandra organizar a entrega: metiam a mão nas sacolas e iam rasgando os papéis de presente.
Todo esse ritual maravilhoso comprovava a bondade da família Lima.
Mas havia um fato curioso nesta família: todos torceram a favor da redução da maioridade Penal, foram contra o Programa Bolsa Família e todos os outros projetos sociais de inclusão e educação. Não aceitavam de jeito nenhum que aquela gente que eles tanto se preocupavam no fim de ano, ganhasse um dinheiro que lhes desse o mínimo de dignidade e mantivessem seus filhos no colégio. Tinham pavor de saber que na mesma turma de seus filhos mais velhos pudessem estudar cotistas e beneficiários de outros programas de educação. Em defesa de suas convicções políticas, muitas vezes vociferaram a expressão: “Não se deve dar o peixe, tem que ensinar a pescar.”.
Pois é, toda essa incoerência haveria de ter uma explicação plausível. Mas não tinha. Era mais um caso da tolice e perversão da elite brasileira. Uma classe intocável que não quer direitos, mas benefícios. Não querem igualdade de oportunidades, querem é ter uma vida de superioridade e soberania e, se possível, lavando as mãos com atos de hipocrisia travestidos de solidariedade.
A mesma mão que entrega presentes, aplaude e apoia as medidas que irão achatar os mais pobres deste país. Se há desemprego e aumento do número de pedintes e moradores de rua, pouco importa. Para essa gente, o desastre da maioria é oportunidade de se manter soberano e demonstrar um sentimento de justiça e solidariedade que nunca tiveram.
Foto(*): ebc.com.br
O Coração da Direita Brasileira (Natal 2016)
