Brasil: hipervivência de situações diversas -pandemia, sindemia e a ‘hecatômbica’ política do governo central

Por Adarlam Tadeu da Silva*

A forma como o governo federal do Brasil se comporta frente às crises dos mais variados gêneros, em especial a sanitária que tem assolado o mundo, desde fevereiro de 2020 até o momento atual, além de ter sido advertida pelas autoridades planetárias, é pano de fundo para muitas análises de cunho científico e artigos de opinião. O lema “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” nesse ínterim que estamos vivendo, simplesmente se desvaneceu junto à hecatombe promovida pelo governo federal.

Segundo o jornal o Globo “Brasil registra 4.211 mortes por Covid-19 em um único dia” (https://oglobo.globo.com/sociedade/coronavirus/brasil-registra-4211-mortes-por-covid-19-em-um-unico-dia-24958490), publicado dia 06/04/2021. O Brasil tem 3% da população global e acumula 12% das mortes no mundo. Por isso, a pandemia não pode e nem deve ser considerada a única vilã dessa política obituária do hodierno desgoverno.

É bem verdade, que o país sofreu e continua sofrendo uma pandemia. Mas, para além disso, a afrontosa política negacionista contra as medidas sanitárias recomendadas pelos/as cientistas e a narrativa de um atendimento-tratamento precoce, até então deliberada pelo presidente da república fizeram, fazem e farão parte da espinha dorsal do presente governo. Assim, não é nenhum exagero compará-lo a Pôncio Pilatos de plantão. Convém lembrar que a célebre frase “vamos passar a boiada” demonstra o teor deste governo e se torna uma extensão simbólica dessa hecatombe propagada em relação aos bens da natureza e, sobretudo, à população brasileira. O descaso é tão grande com aqueles/as que por infelicidade já não se encontram mais entre nós, bem como com a vida daqueles/as cuja permanência continua entre a gente.

Em contraposição à falta de senso de humanidade do presidente em exercício por um lado, do outro, sobra humanidade no ex-presidente Lula: as suas credenciais de ex-chefe de Estado e de homem com dever cívico possibilitaram ao líder petista se reunir com autoridades russas e chinesas (https://www.cut.org.br/noticias/lula-se-movimenta-e-procura-russia-e-china-para-trazer-vacinas-para-o-brasil-3458), (publicado em 12/03/2021), a fim de negociar aquisições de vacinas para o povo brasileiro. Ao invés da política do insulto, Lula foi conquistar o apoio daqueles dois países e conseguiu abrir um canal de negociação para o Consórcio Nordeste estabelecer tratativas futuras referentes à compra de vacinas.

Porém, as notícias ruins, no momento, imperam sobre a realidade brasileira. Entre elas, a entristecedora notícia de que o Brasil já está de volta ao mapa da fome (https://radis.ensp.fiocruz.br/index.php/home/noticias/brasil-de-volta-ao-mapa-da-fome), publicada em 20/10/2020 é uma afronta ao Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), assegurado no artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e também ao artigo 6º da Constituição Federal (garantia a alimentação). Direito este tirado daqueles e daquelas que mais precisam.

Juntos, os efeitos colaterais provocados pelo atendimento-tratamento precoce e o apagão ocorrido em 13 dos 16 municípios do Amapá, por quase dois meses, o qual atingiu 89% da população daquele estado em plena conflagração sanitária (https://g1.globo.com/ap/amapa/noticia/2021/01/13/dois-meses-apos-1o-apagao-amapa-volta-a-registrar-falta-de-energia-na-maioria-dos-municipios.ghtml), publicada em 13/01/2021 caracterizam outra perspectiva científica denominada de sindemia ‘um neologismo que combina sinergia e pandemia’ [não tão novo assim]. Foi cunhado pelo antropólogo médico americano Merrill Singer na década de 1990 para explicar uma situação em que “duas ou mais doenças interagem de tal forma que causam danos maiores do que a mera soma dessas duas doenças” (https://cee.fiocruz.br/?q=node/1264), matéria publicada em 14/10/2020. Em suma, a sindemia desencadeia outra epidemia (doença) associada a variáveis sociais, nutricionais, educacionais, entre outras.

A falta de cilindros de oxigênio nos hospitais de Manaus, o desgaste psicológico-emocional dos/as profissionais de saúde e tantos outros problemas sociais corroboram com esse outro prisma da ciência, apontado pelo cientista Merrill Singer. Notem que China, Austrália e Nova Zelândia já alcançaram bons índices de mitigação da pandemia. Enquanto isso, o Brasil se tornou uma grande ilha sindêmica. Como diz o velho ditado popular “para quem não sabe onde quer chegar, qualquer caminho serve”. Um dia, quando parte de nós tivemos acesso à fase pré-escolar, depois ao ensino fundamental e na sequência ao ensino médio, estudamos lá na disciplina de matemática as famosas progressões aritméticas e geométricas (PA e PG). Essa analogia com a matéria de matemática é para dizer que a vacina avança a conta gotas na PA, enquanto a sindemia dispara na PG. Logo, é uma luta inglória porque o vírus Sars-Cov-2 tem vencido. Infelizmente, esse é o retrato correspondente à realidade dos/as 212 milhões de brasileiros/as menos aqueles e aquelas que lamentavelmente já tombaram vítimas não somente da pandemia e nem da sindemia. Mas, sobretudo, da hecatômbica política propositalmente exercida pelo governo central.

Já se foram mais de 411 dias, 58 semanas, 1 ano e 1 mês, 381.000 vidas ceifadas, desde a primeira morte por Covid-19 ocorrida no Brasil em 12 de março de 2020. Portanto, fica muito difícil não se manifestar de alguma forma. Quero relembrar nas próximas linhas alguns acontecimentos públicos, pelos quais defendo que no Brasil, para além da pandemia e da sindemia, prevalece uma literal hecatombe deliberada no âmbito institucional.

As expressões, os vocabulários, as terminologias, tal como as palavras: hecatombe, morticínio, genocídio, extermínio, massacre, chacina, carnificina e necrótico/a refletem as interfaces de uma única lente ou de um mesmo espelho. O primeiro episódio do governo federal foi titubear e levantar dúvidas a respeito da repatriação dos/as 34 brasileiros/as que se encontravam em Wuhan na China. Essa ação foi denominada de “operação regresso à pátria amada Brasil”. Naquele momento o governo, que deveria apaziguar os ânimos em especial daquelas pessoas, bem como de seus familiares com declarações públicas positivas, fazia o oposto: as falas na imprensa sempre eram acompanhadas de um (se) no começo, no meio ou no fim da tomada de decisão; inclusive os/as brasileiros/as tiveram de publicar no dia 30 de janeiro de 2020 uma carta, na qual suplicavam a repatriação.

 

Figura 1 – Carta dos/as Brasileiros/as ao Presidente da República do Brasil

Fonte: https://epoca.globo.com/guilherme-amado/brasileiros-em-wuhan-escrevem-carta-bolsonaro-cobrando-ajuda-leia-documento-1-24223659. Acesso em: 15 abr. 2021.

Junto à carta foram publicados também alguns vídeos no youtube a fim de ratificar a solicitação de retorno ao Brasil. Depois de muitas idas e vindas e da pressão feita pela oposição, dia 9 de fevereiro de 2020 dois aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) pousaram em Goiana-GO e na sequência os/as passageiros/as se dirigiram a Anápolis-GO. Para com isso, cumprirem os 18 dias de quarentena e ao se depararem com o reboliço vivido no Brasil. Os/as brasileiros/as repatriados/as disseram o seguinte: (https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2021/02/14/brasileiros-resgatados-em-wuhan-dizem-que-era-melhor-ter-ficado-na-china.htm), publicada em 14/02/2021. Dai vem aquele gracejo: “vontade de voltar para Wuhan né minha/meu filho/a”. O governo adotou como doutrina “deixa acontecer”.

Em 1º de abril de 2020 o Congresso aprovou e o presidente da república sancionou a Lei do auxílio emergencial no valor de R$ 600,00. Este valor só foi possível devido à pressão das esquerdas na Câmara e no Senado. Haja vista, a proposta inicial do governo era de apenas R$ 200,00 e aquele valor de R$ 600,00 durou só de abril a agosto de 2020. Uma vez que, a partir de setembro até dezembro daquele mesmo ano o auxílio foi prorrogado numa quantia inferior, correspondente a quatro parcelas de R$ 300,00 (https://jovempan.com.br/noticias/politica/retrospectiva-2020-confira-os-principais-fatos-que-abalaram-a-politica-brasileira.html), publicado na data de 25/12/2020. A lógica do auxílio emergencial funciona de forma decrescente. Mais uma vez, o governo vem remando de encontro aos estudos científicos.

Outros dois fatos curiosos a serem citados ocorreram em outubro de 2020. Um está relacionado ao fato de o capitão ter desautorizado em rede nacional o general que até então ocupava o cargo de ministro da saúde de comprar 46 milhões de doses da vacina CoronaVac. Os motivos deste desmando ficaram só entres eles e na noite seguinte, televisionado pelo Jornal Nacional, o general demonstrou ser um verdadeiro cupincha do seu chefe, disse ele: “Senhores, é simples um manda, o outro obedece”. O segundo fato que coaduna com o anterior foi o contingenciamento de 6,86 milhões de testes para Covid-19 no galpão em Guarulhos-São Paulo (https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/11/22/brasil-tem-68-milhoes-de-testes-de-covid-19-prestes-a-vencer-em-deposito-diz-jornal.ghtml), publicado em 22/11/2020. Esse assunto dos testes armazenados no depósito em Guarulhos, praticamente, evaporou-se.

Nesse governo, outro fenômeno muito recorrente e bastante acentuado durante esse 1 ano e 1 mês de mortandade é o da infodemia (notícias falsas) termo referente a “um grande aumento no volume de informações associadas a um assunto específico que podem se multiplicar exponencialmente em pouco tempo devido a um evento específico, como a pandemia atual. Nessa situação, surgem rumores e desinformação, além da manipulação de informações com intenção duvidosa” (https://scielosp.org/article/ress/2020.v29n4/e2020186/), publicado em 07/09/2020. Para elucidar a explicação da expressão infodemia utilizei como exemplo o seguinte fato: o governo Bolsonaro e aliados publicaram 83% de desinformação sobre ‘tratamento precoce’ no Facebook em 2021 (https://www.aosfatos.org/noticias/bolsonaro-e-aliados-publicaram-83-da-desinformacao-sobre-tratamento-precoce-no-facebook-em-2021/), publicado em 24 de março de 2021.

Essa política intencional de desinformação conduz o seguinte: os/as brasileiros acreditam mais em notícias falsas do que os/as italianos/as e os/as estadunidenses (https://secure.avaaz.org/campaign/po/brasil_infodemia_coronavirus/), publicado 04/05/2020. Por sua vez, aquelas matérias publicadas pelos portais: scielo, aos fatos e avaaz realçam de alguma maneira a existência de quatro tipos de vírus no caso brasileiro: i) o caudilho; ii) a Covid-19; iii) o vírus da infodemia da Covid-19 e iv) a infodemia relacionada ao surgimento de suas novas cepas e variantes.

No meio deste pandemônio, os responsáveis pelas políticas públicas federais simplesmente cortaram a bagatela de R$ 36 bilhões da pasta da saúde para este ano de 2021, (https://valor.globo.com/brasil/noticia/2021/04/14/orcamento-r-36-bilhoes-inferior-ao-de-2020-nao-preocupa-diz-queiroga.ghtml), publicado em 14/04/2021. E o mais interessante é que o atual ministro da saúde Marcelo Queiroga no apogeu da sua complacência afirmou: “isso não preocupa”. Esta política mortífera vem tendo continuidade e a possível luz reluzente no final do túnel está mais para ser uma locomotiva na contramão, ao invés de suscitar algum fulgor de esperança. Não existe nada tão ruim que o capitão não consiga piorar ainda mais. Logo, é necessário marchar contra essa avalanche capitaneada pelo esquadrão do planalto central.

No bojo de todo esse retrocesso, no qual o Brasil está submerso, a política ambiental do governo endossa de maneira agravante o mantra do “passar a boiada”. Estudos revelam que o desmatamento das florestas pode acarretar a aparição de novas pandemias (https://summitsaude.estadao.com.br/desafios-no-brasil/desmatamento-pode-favorecer-novas-pandemias/), publicado em 10/05/2020, devido o contato de seres humanos com outros primatas, oportunizando a inoculação de doenças. De acordo com o jornal da Universidade de São Paulo o desmatamento na Amazônia aumentou 34% em 2020, quando comparado a 2019 (https://jornal.usp.br/ciencias/desmatamento-da-amazonia-dispara-de-novo-em-2020/), publicado em 07/08/2020. Essa fatura a natureza cobra de alguma maneira e mais cedo ou mais tarde todos, todas e todes nós pagaremos a conta.

Portanto, esse conjunto de medidas de desausteridades: i) a relativização dos/as brasileiros/as repatriados/as; ii) o auxílio emergencial 2020 aquém das necessidades básicas; iii) a não autorização da compra das vacinas da CoronaVac; iv) o contingenciamento de mais de 6 milhões de testes da Covid-19; v) a incitação institucional do fenômeno da infodemia; vi) o corte abissal de R$ 36 bilhões no orçamento do SUS para 2021; vii) o desmatamento sem nenhum tipo de controle dos nossos patrimônios ambientais e viii) um auxílio emergencial versão 2021, aprovado mais uma vez, tardiamente no valor de R$ 250,00 que na maioria das capitais brasileiras, apenas se igualou ou ficou abaixo do preço da cesta básica, sobretudo de viés excludente configuram na minha visão essa hecatombe arquitetada pelo atual governo.

O fato de deixar de trazer demais acontecimentos do desgoverno, da não governança ou da ingovernabilidade do atual presidente demonstra que esse texto tenta convocar demais pessoas a fazerem tal exercício de recuperação das medidas anti-povo tomadas por tal governante. No cenário de mortandade em que o Brasil se encontra duas perguntas ganham ressonância na e pela grande massa: i) Quando a pandemia e/ou sindemia vão acabar? e ii) Vamos ter o retorno da normalidade? Todavia, essas duas perguntas devem ser reformuladas num único questionamento. Quando o projeto de poder personificado no Pôncio Pilatos de ocasião vai chegar ao fim? A resposta eu deixo para a fração dos/as 58 milhões de eleitores/as que votaram nesse projeto de poder em 28 de outubro de 2018 e, infelizmente, ainda não esboçaram e quiçá venham admitir algum tipo de arrependimento por elegerem essa figura pernóstica, que ora ocupa a cadeira da presidência da república.

 

Povos de todo o mundo, protegei-vos.

Brasileiros e brasileiras, cuidai-vos uns dos outros.

*Militante do MST. Graduado em Administração e tem mestrado em Gestão Pública e Cooperação Internacional pela Universidade Federal da Paraíba. Autor do livro “Trifurcação da Empresa Social em Assentamento de Reforma Agrária”, publicado pela Editora Lutas Anticapital (https://lutasanticapital.com.br/)

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