A IGREJA ANTISSOCIAL, por John Mackrell

Tradução de José Brendan Macdonald

Viver como se a sociedade não existisse é uma saúde mental pobre. Para a Igreja institucional não fazer caso da sociedade civil é um modo de vida orgulhoso. Aqueles que se preocupam com a correção da injustiça têm que se conformar com a mudez da Igreja institucional. Por que nossa hierarquia, diferente de Rowan William o Arcebispo de Canterbury (1) e muitos dos seus bispos, aceita um sistema econômico corporativo internacional que explora sistematicamente os pobres e vulneráveis em benefício dos ricos e poderosos? A resposta simples é que pelo menos a partir do Imperador Constantino no quarto século a Igreja institucional tende a olhar para os governantes seculares em busca de apoio num mundo muitas vezes hostil. A Igreja como pilar do establishment quase invariavelmente vem dando prioridade para sua manutenção mais que sua missão espiritual frente aos pobres e indefesos.

A proteção aos últimos geralmente sofre da negligência dispensada às muitas ordens religiosas e indivíduos que continuam heroicamente a levar a vida da Igreja primitiva. Hoje este Racha entre o establishment da Igreja e aqueles que trabalham com os pobres e indefesos é mais nuançado. A divisão vem mais à vista na América Latina, onde a hierarquia da Igreja não raro olha com êxito a alguns dos tiranos mais sanguinários do mundo para proteger sua propriedade e status na sociedade. Ao mesmo tempo a ‘outra’ Igreja que compartilha a vida nas favelas cuida das necessidades espirituais e físicas dos mais pobres dos pobres. Os dois lados se encontraram na pessoa do Arcebispo Romero de El Salvador, que defendia abertamente aos pobres contra a sanguinária repressão estatal. Quando as autoridades o assassinaram em sangue frio enquanto ele rezava a missa, o mundo civilizado se manifestou chocado enquanto Roma se constrangia apenas na mesma medida que assim ocorre quando é explodida uma mitra numa procissão.

Como cai bem a uma organização de abrangência mundial, a Igreja é uma jogadora habilidosa com assuntos internacionais. Elevados princípios são promulgados ao mundo inteiro sem a intenção de colocá-los em prática por medo de provocar ofensas aos poderosos. A habilidade da Igreja desta maneira de conseguir o que quer é uma obra prima de diplomacia. A invasão do Iraque nos dá um exemplo raro. João Paulo II tinha condenado enfaticamente um ataque ao Iraque. Não obstante entre os três milhões de protestadores nas demonstrações de 2003, não havia uma presença oficialmente católica, isto para não embaraçar o governo britânico.

Numa charge irreverente o Papa, que tinha dado a comunhão ao não católico Tony Blair, o saudou com um ‘Pax Vosbiscum.’ ‘O senhor deve estar brincando’ respondeu o premier de faces vermelhas enquanto preparava a invasão. A Cúria romana, caso membros seus fossem leitores do Renew, teriam tido o desprazer de aprender que alguns clérigos católicos, não obstante a proibição de se engajar na política, provocados por suas consciências, se juntaram à demonstração contra a guerra. O Padre Columba Ryan, com cuja amizade tive a honra de contar, me informou que estavam presentes bispos católicos, se bem que amplamente disfarçados em deselegantes roupas de leigos, com medo de desagradar a seus superiores eclesiásticos. O próprio Padre Columba vestiu naturalmente seu hábito de dominicano como convinha ao íntimo discípulo de Yves Congar, profeta do Vaticano II e também um realmente santo rebelde. Os bispos nas suas deselegantes roupas de leigos nos honraram a todos nós com sua presença. Mesmo assim, caso tivessem marchado com todos seus parâmetros na frente das câmeras de televisão, teriam talvez parado a mão vingativa de Blair justamente como o Arcebispo de Munique com semelhante vestuário fez parar a eutanásia nazista em sua cidade.

Um estabelecimento conservador permanentemente em guerra com seus “santos rebeldes” é uma visão da Igreja que surgiu do fracasso do Vaticano II. Mesmo assim, o pessimismo do momento dista da história recente da Igreja. Leão XIII na sua encíclica Rerum Novarum de 1891 iniciou uma reaproximação entre a Igreja e o mundo moderno, o que bem teria podido consolidar em circunstancias mais felizes o Concilio Vaticano de 1962-65. Esta corrente reformista, tão destramente enfraquecida pela Cúria romana e papas posteriores, salvo o Papa João Paulo I, ainda floresce entre os “rebeldes” e certamente se reafirmará quando o papado acordar de seu sono profundo.

Se bem que a encíclica Rerum Novarum de Leão XIII apareceu em 1891, os primeiros parágrafos são diretamente relevantes para 2011. Sob a manchete “As Condições das Classes Operárias” faz-se referência às “fortunas enormes de alguns poucos indivíduos e a cabal miséria das massas – e a marcante gravidade da situação, enche cada mente de apreensão dolorosa…” de modo que “todos concordam que algum remédio precisa ser encontrado.”

Como são tão evidentemente semelhantes as ameaças aos pobres de 1891 e 2011, por que a Igreja se moveu da preocupação ativa para o silencio profundo? A razão principal parece ser uma gradativa diminuição do ímpeto da Rerum Novarum. É verdade que Pio XI 40 anos mais tarde na sua habilidosamente intitulada Quadragesimo Anno de 1931 elogiou a Rerum Novarum como o cúmulo dos esforços papais em matéria da defesa dos direitos dos trabalhadores. Mesmo assim, ele pouca novidade acrescentou ao passo que o tom da encíclica quase garantia que a altura da Rerum Novarum nunca seria superada (2). Durante o período antes do Vaticano II a inspiração da grande encíclica de Leão XIII parecia ser exausta, a luz bruxuleando brevemente com vida com o movimento dos Padres Operários na França durante e depois da Segunda Guerra Mundial.

Foi durante o Concilio Vaticano II que se fez uma tentativa de empurrar a façanha de Leão XIII um passo vital a mais para a frente. Leão XIII com sua intervenção a favor dos trabalhadores efetivamente tinha trazido a Igreja ao mundo moderno. João XXIII foi mais longe ao tentar iniciar um diálogo entre a Igreja e a sociedade moderna. Percebendo que um diálogo mal era factível entre o “monarca” da Igreja e todas as partes interessadas no mundo moderno, o princípio da colegialidade ou a tomada de decisões coletiva, foi apresentado para aumentar o número de porta-vozes da Igreja para se encontrar com seus similares na sociedade secular.

O golpe mais daninho feito pela Cúria romana na sua contra-revolução foi esvaziar a colegialidade de significado para que a Igreja retomasse seu sono confortável.

Será que Golias já encontrou um Davi mais franzino que o Movimento Ocupação nas cercanias da catedral de St. Paul? (3) De um lado os senhores das finanças globais, responsáveis a si próprios e a mais ninguém. Do outro lado uma multidão vária que pede em muitas vozes diferentes que os direitos de uma sociedade justa tenham prioridade sobre a arte de fazer dinheiro. Rotular este “debate” de surreal é empregar um termo por demais fraco. O Movimento Ocupação expõe seu argumento ao passo que as finanças globais, sem precisar de justificação, simplesmente recorre à força bruta. Em segundo lugar, o Movimento Ocupação realmente se está endereçando não às finanças globais mas ao público britânico, o qual mal percebe que existe um problema. O irreal da situação é intensificado pelo fracasso do Movimento Ocupação de transmitir suas idéias efetivamente.

Sem jornal e com pouca publicidade, o Movimento no geral está monologando. Todo louvor então a Rowan Williams, o Arcebispo de Canterbury e os bispos anglicanos que vêm dando seu apoio valioso ao Movimento Ocupação! Historiadores no futuro provavelmente ficarão pasmos em razão da passividade do povo britânico na sua colusão com seus senhores políticos e econômicos quanto à perda tanto de seus valores civilizados como a liberdade empregada na sua defesa. O Movimento Ocupação é ridicularizado amiúde por estar dividido quanto a seus objetivos e meios para obtê-los.

Mesmo assim tais críticas não alcançam as ligações que unem os Ocupantes. Membros do Movimento estão de acordo de que seu ponto de partida deveria ser um debate em que todos os pontos de vista sejam considerados sobre o que constitui uma sociedade justa. Isto deveria formar a base irredutível de tudo mais. A força motriz já não seria conformidade com as forças do mercado, as quais fogem ao controle das pessoas. O povo deveria ter o direito de escolher uma sociedade que seja justa para com todos e de rejeitar uma que seja formada por forças econômicas impessoais. Tais pontos de vista só parecem estranhos e desarrazoados em razão das circunstancias em que são advogados. Teria sido muito melhor se a justiça social tivesse formado a base da sociedade desde o princípio. É mais uma desvantagem o fato de que um debate sobre os fins fundamentais da sociedade têm que ocorrer fora do Parlamento. Um governo atual sem mandato, a soberania tomada ao Parlamento pela Downing Street (4) , onde a maioria dos parlamentares não representa seus eleitores e não raro persegue seus próprios interesses ao invés do bem comum, e em último lugar chega ao bolso das finanças globais – tudo isso desqualifica o Parlamento como fórum de debates públicos.

A apatia da hierarquia católica ameaça tanto a sociedade como a Igreja. Quando a Igreja opta fora da luta atual pela liberdade e a democracia, ela de fato está usando o peso de seus membros para apoiar a injustiça. Como a Igreja pode ser uma influência pelo bem num mundo onde não faz parte é uma questão que melhor se remeteria à hierarquia. Até que prevaleça o bom senso nesse setor outros seguramente terão que seguir suas consciências. Eis um desafio nada ocioso. A Cidade de Londres está procurando impor uma ordem para remover a Ocupação da frente de St. Pauls. Uma aliança religiosa de cristãos, budistas e outros está trabalhando com voluntários para formar um círculo protetor ao redor da Ocupação. Democratas liderados pelo parlamentar John McDonnell pretendem formar um segundo círculo protetor ao redor dos cristãos e seus aliados. Nestas circunstancias podemos esperar com confiança que a hierarquia católica fique invisível o máximo possível.

(1) O Arcebispo de Canterbury é o primeiro hierarca da Igreja da Inglaterra, também conhecida como a Igreja Anglicana. (NT – Nota do Tradutor).

(2) Anne Freemantle, The Papal Enciclicals in Their Historical Context, 1963, pp. 166-167

(3) O mais famoso templo anglicano (NT).

(4) Downing Street é o endereço oficial do primeiro ministro e daí é o simbolo do poder executivo (NT).

Fonte: RENEW. The quarterly magazine of Catholics for a Changing Church, no. 161, março, 2012, pp. 1-3

Clique para acessar o renew161.pdf

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