SOCIEDADE E UNIVERSIDADE – A MEDIAÇÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS

Em parte, refletindo a atual correlação de forças, em escala internacional; em parte, devido às suas singularidades, a sociedade brasileira se acha mergulhada, sob diferentes aspectos, em impasses e desafios de monta. O mínimo a dizer, por enquanto, é que entre a sociedade que temos e a que queremos, há um enorme chão a percorrer. Nessa perspectiva, as instituições sociais também são chamadas a reavaliar constantemente seu papel, e a buscarem redefinir horizonte e caminhos. Dentre tais instituições, aqui nos restringimos ao papel social das universidades, especialmente das universidades governamentais.

O desafio de ousarmos dar passos em direção a uma sociedade que seja capaz de atender às necessidades e às aspirações fundamentais do conjunto dos seus membros, dificilmente seria enfrentado a contento, sem o concurso indispensável de forças sociais de caráter mais instituinte, a exemplo de alguns Movimentos Sociais Populares, especialmente aqueles que estão lidados a um projeto alternativo de sociedade.

Instituição multissecular, a Universidade só muito tardiamente, como se sabe – inclusive em relação aos nossos vizinhos latino-americanos -, chega ao Brasil. Durante essas décadas, tem oscilado consideravelmente, quanto a um olhar avaliativo de sua função social e do seu desempenho. Aqui, porém, não se trata de fazer propriamente uma avaliação de seu desempenho técnico, pelo menos nos moldes convencionais. Nosso olhar se volta, antes, para uma apreciação mais focada sobre suas atuais relações com a sociedade. Ainda que tal apreciação, aqui, ali, possa se estender a outras épocas, nossa inquietação maior é examinar seu compromisso social, no atual quadro. Aqui priorizamos perguntas tais como:

– Como vêm se relacionando as universidades – especialmente as mantidas mais diretamente com recursos públicos -, em nossa região?

– Qual a qualidade socialmente referenciada dos serviços oferecidos pelas universidades públicas, em nossa região?

– Que contribuição vêm dando nossas universidades ao desenvolvimento social?

– Que tipo de parcerias vêm elas priorizando, e como o têm feito?

– Qual a relação das forças vivas da sociedade de nossa região, especialmente dos Movimentos Sociais Populares, com nossas universidades?

São inquietações que passam a ser aqui alvo da presente exposição. Começamos por destacar alguns desafios que julgamos mais impactantes ou mais emblemáticos, diante dos quais são interpeladas as forças vivas da sociedade, a começar pelas nossas universidades. Em seguida, buscamos sublinhar criticamente traços que consideramos mais característicos do cotidiano acadêmico atual. No terceiro tópico, priorizamos um exercício de reflexão sobre o lugar que os Movimentos Sociais Populares – em especial os que têm apostado na construção de um projeto alternativo de sociedade – podem ter no diálogo de saberes com essas universidades..

1. Da sociedade que temos para a sociedade que queremos: um vasto chão…

Ninguém duvida de que da sociedade que temos para a sociedade que queremos ainda falta muito, para dizer o mínimo. Esse hiato, porém, não é apanágio dos tempos atuais. Na literatura pertinente, registros semelhantes é possível encontrar com certa freqüência, em diferentes períodos da História. Não obstante tal descompasso, manifesto sob vários ângulos, continua aceso o sonho de organização de uma sociedade que seja capaz de responder às necessidades e às aspirações fundamentais do conjunto de seus membros.

Restringindo-nos embora a destacar algumas notas acerca do atual momento, salta à vista o espectro de crise – e crise profunda -, em que, hoje mais do que ontem, se acham mergulhadas a sociedade brasileira e suas principais instituições, qualquer que seja a esfera do social que tomemos como alvo do nosso olhar avaliativo. Com efeito, aos profundos e crescentes impactos decorrentes da reestruturação produtiva, em escala internacional, que marcam o atual momento do Capitalismo, nenhuma das esferas da realidade social se acha imune. Ao contrário, apresentam-se claramente impregnadas pelos efeitos de tais impactos.

Como expressão e resultado de sucessivos avanços das pesquisas e dos achados científico-tecnológicos, tem lugar uma notável reviravolta (ainda em curso), inclusive no quadro paradigmático até então hegemônico, no processo produtivo e nos processos organizativos do trabalho.

Em matéria de nível e de qualidade, resultados inéditos são alcançados, seja na natureza e consistência dos materiais utilizados, seja na qualidade técnica de sua performance, seja na eficácia dos procedimentos de gestão, seja ainda nos indicadores de produtividade, o que se reflete sob as mais variadas formas, inclusive no que mais interessa aos setores dominantes: nas altas taxas de lucro, para a felicidade geral do grande Capital! Reviravolta saudada como a terceira revolução tecnológica, a partir dos avanços inéditos em áreas como a Biotecnologia, a Genética, a Bioquímica, a Eletrônica, a Micro-eletrônica, a Aero-Espacial, entre outras.

Avanços que, por vezes, se manifestam como positivos, pelos benefícios que proporcionam. Como não saudar, por exemplo, no âmbito das ciências da saúde, relevantes achados no efetivo e eficaz combate a tantos males? Em outras áreas, também, reconhecemos resultados encorajadores. São fartas as matérias e divulgações, saudando com euforia tais conquistas. Bem menos difundidos, porém – por incômodos ao Mercado – são alguns questionamentos e indagações necessários sobre o sentido e o alcance de muitos desses achados científico-tecnológicos. Questionamentos tais como:

– Todas essas conquistas se revertem em ganhos efetivos para o conjunto da Humanidade
e do Planeta?

– Qual o impacto relevante da maioria desses achados sobre a superação das profundas e crescentes desigualdades sociais e dos profundos males sociais que campeiam, sob várias formas (concentração de riquezas e de renda, gastos escandalosos em armamentos bélicos e no narcotráfico, desemprego estrutural, sucateamento ou desmonte dos serviços públicos essenciais, confisco legalizado de direitos sociais dos trabalhadores e trabalhadoras conquistados a duras penas, por décadas de lutas, crescente empobrecimento das maiorias, manutenção ou aumento do déficit de saneamento, de habitação, aumento da riqueza de bancos e de transnacionais feito à custa da miséria de multidões …)?

– Em benefício de que(m) e contra que(m) vários desses achados têm sido administrados?

Poderíamos estender os questionamentos. Contentemo-nos com estes. Fazemos questão de expressar nosso sentimento de satisfação, em relação a vários benefícios resultantes de recentes avanços científico-tecnológicos, e de enfatizar nossa firme posição de apoio e incentivo a toda pesquisa, a todo achado que implique a melhoria da qualidade de vida dos Humanos e do Planeta. Ao mesmo tempo, fazemos questão de manifestar nossa indignação e nosso repúdio ao modo como têm sido administrados os efeitos práticos desses achados, na medida em que deles têm sido beneficiários privilegiados os grandes conglomerados transnacionais e os demais segmentos dos setores dominantes (ver, por exemplo, casos como o dos transgênicos, o do etanol, para destacar apenas dois), enquanto pelo menos algumas dessas conquistas, não apenas resultam em malefícios para os Humanos e para o Planeta, como também se revertem em instrumentos a serviço do aumento das desigualdades sociais e em desmedida agressão ao Planeta.

Na verdade, a despeito de tantos desses avanços, o que se tem observado é a galopante precarização das condições de vida para vastos setores da população, submetidos ao desemprego estrutural, ao sub-emprego, à hipertrofia da economia informal , ao aviltamento dos salários, ao exacerbado déficit de moradias ou à expansão desordenada de barracos em encostas e áreas de risco, infectos lugares indignos de serem habitados por humanos. A essa altura do início do terceiro milênio da era cristã, constatamos com revolta disporem, muitos animais de estimação, de casa, de comida, de cuidados e de carinho privilegiados, enquanto são negadas as mínimas condições de dignidade para crescentes contingentes de humanos…

Um rápido relance sinótico dos aspectos sócio-econômicos acima mencionados resulta fortalecido, quando a esses aspectos sócio-econômicos destacados associamos outros de caráter mais diretamente político e cultural. De fato, o quadro econômico acima rapidamente pincelado mantém interfaces e laços orgânicos significativos com o novo contexto desencadeado pela reorganização das relações políticas, em escala mundial. A começar pelos sólidos laços de cumplicidade existentes entre as grandes corporações transnacionais e os dirigentes das grandes potências e dos dirigentes dos Estados periféricos. O caso mais recente do etanol – alvo privilegiado dos interesses de grandes grupos econômicos – não é por certo o único.
Na esteira das conseqüências mais impactantes do processo de reestruturação produtiva, feito sob o controle cerrado dos grandes conglomerados transnacionais em parceria com as grandes potências, tem resultado profundamente alterado o papel tradicional até há pouco exercido pelos Estados nacionais (principalmente os periféricos), mesmo no contexto capitalista.

Nos anos dourados da Social-Democracia, especialmente os países escandinavos apresentavam costumavam implementar políticas sociais que asseguravam a amplos setores de seus trabalhadores um padrão de vida considerado satisfatório, pelo menos no que dizia respeito às políticas públicas essenciais: saúde, educação, previdência social, trabalho (até se falava em “emprego pleno”)… Enquanto isso, “vendia-se” aos países periféricos a ilusão de que, pouco a pouco, esse estado de bem-estar social ia se estendendo aos trabalhadores dos mesmos, sob a condição de que seus dirigentes observassem o receituário da Social-Democracia. Ideologia que tem a ver com o próprio nome que se atribui aos países periféricos: “países em desenvolvimento”… Expressão à qual alguns analistas sociais, ainda do início dos anos 70, a exemplo de Gunder Frank, que costumava acrescentar: “do subdesenvolvimento”…

Nos anos 70 (sobretudo a partir da crise do petróleo) e nos anos 80 (com os governos Thatcher e Reagan I e II), assistimos progressivamente ao quase completo abandono pelos formuladores do Capital da bandeira do chamado “Estado do Bem-Estar Social”, ainda que circunscrita aos seus países centrais. Desde então, o que se tem é um conjunto de políticas macro-econômicas (com terríveis desdobramentos políticos e culturais), de que são expressões: redução dos Estados nacionais periféricos a meros cumpridores de ordens e de políticas formuladas desde fora (o impropriamente chamado “Estado Mínimo”), investimento maciço na otimização de sua política de dívida externa, no processo de privatização do patrimônio nacional dos Estados periféricos, para o que tiveram que alterar profundamente sua legislação até então vigente, adaptando-a às novas regras do jogo internacional, inclusive impondo a supressão de relevante parcela dos direitos sociais, conquistados a duras penas.

Para tornar eficaz esse processo de esvaziamento da idéia de autodeterminação e soberania das nações, entram em cena os organismos multilaterais, como os agentes e prepostos das transnacionais e das grandes potências, com a incumbência de formular e implantar políticas e programas nos países periféricos. São, a partir de então, bastante conhecidas as intervenções agressivas dos organismos multilaterais. Iria tornar-se emblemático, sobretudo a partir de então (anos 90), o papel, por exemplo, do Banco Mundial, que passaria a funcionar, além de banco, como uma espécie de ministério de educação de vários países periféricos, inclusive do Brasil.

Há, como é possível perceber, laços bem estabelecidos, não apenas entre as esferas econômica e política. Estas também interagem dinamicamente com a esfera cultural. Tão importante quanto garantir a implantação de macropolíticas econômicas, com o concurso do mundo político, é assegurar mecanismos capazes de cimentar o processo, do ponto de vista dos valores.

Entra em cena, em novo estilo, sobretudo após a queda do Muro de Berlim, uma mídia mais agressiva, dispondo de um “marketing” mais requintado, a difundir os fascínios da pós-modernidade em sua versão dominante, por meio da qual se espalha mais facilmente o discurso da racionalidade cínica, extremamente funcional à ideologia do pensamento único. Nessa lógica, uma vez constatado o fracasso do socialismo real, e, com ele, de qualquer sonho de alternativa ao Capitalismo, importa reconhecer a força da “realidade”, e passar a adequar-se à mesma. Já não sendo mais razoável sonhar com o impossível, tratar-se-ia de extrair dividendos da situação presente. “Temos que ser realistas”.

Com argumentos desse tipo, pouco a pouco, vai se constatando uma crescente mudança de atitudes e de valores de referência, nos mais distintos espaços de resistência, em que antes se apostava: das organizações partidárias ao mundo sindical; das pastorais sociais ao cotidiano acadêmico… Nem a maioria dos movimentos sociais populares e das organizações de base tem conseguido passar isenta a esse novo surto de sedução.

Daí vai resultando uma progressiva inversão da grade de valores dessas forças, antes firmes na resistência aos valores do Capitalismo, e comprometidas com a construção de uma nova sociedade (basta citar os exemplos do PT, da CUT e os relatos dos Encontros Intereclesiais de CEBs), apostando e acompanhando de dentro as lutas sociais do campo e da cidade, na força da mobilização, na formação continuada. Sobretudo nos anos 90, sob a crescente influência da grade de valores “neoliberais”, tais forças passaram a comportar-se diferentemente: o que era uma mera tática (participação no processo eleitoral) passou a ser tomando como um fim em si mesmo; o que era o “lócus” dessas organizações (presença atuante e animadora nos movimentos sociais populares e nas organizações, e suas lutas e processo formativo) foi sendo progressivamente transferido para os espaços governamentais e institucionais. Mais de uma vez, já tivemos ocasião de abordar essa mudança de atitude (cf. CALADO, 1997; 1999; 2004; 2005).

A obsessão ou avidez pelo poder induziu rapidamente à mudança do foco ético-político, até então posto sobretudo no coletivo para um crescente assumir de projetos pessoais (ou de pequenos grupos) de poder. Daí a transformação em estratégia do que era apenas uma tática; daí o abandono dos espaços de lutas e de resistências; daí o desmonte dos núcleos; daí o descompromisso com o processo de formação política; daí a substantiva mudança de critérios na formulação da política de alianças, etc., etc., etc… Daí o nivelamento aos demais partidos da ordem. Os desdobramentos dessa mudança não tardariam a aparecer, inclusive no plano ético, de que têm falado tão claramente os escândalos sucessivos.

Na esteira desses graves escândalos, há aspectos ainda pouco sublinhados. Um deles, gravíssimo pelo alto poder corrosivo, tem a ver com o dimensionamento dos estragos recentes, pelo seu amplo alcance social. Destaco um deles: a profunda e ampla influência direta e indireta sobre o aviltamento dos valores em amplas camadas da população, educadas a mirar-se no exemplo dos “de cima”… Não nos causa estranheza, sob esse ponto de vista, a extraordinária diversificação das formas de rebatimento no comum do tecido social. Basta que tomemos em conta, por exemplo, a espantosa freqüência de formas e de casos esdrúxulos de falcatruas, nas mais distintas áreas: dos golpes por telefone aos casos de extorsão do erário, nas distintas instâncias públicas; dos golpes da propaganda enganosa aos vários casos de adulteração da gasolina, do leite e de tantos outros produtos… É a exacerbação da famigerada “Lei do Gerson”, a indicar o aviltamento dos valores da vida e do conviver.

E o que dizer do ENORME tempo social perdido com intermináveis e freqüentemente estéreis procedimentos investigatórios ou com vãs tentativas de elaboração de novas leis ou aumento de penas e de fiscalização. Ainda que tais medidas possam resultar em algum efeito, não atingem o cerne do problema. Aliviam-no por um tempo – quando muito! -, e depois novas “técnicas” são inventadas…
Nem tudo, entretanto, está perdido. Uma parte dessas forças e sobretudo novos protagonistas vêm despontando, a retomarem, em novo estilo, horizonte e caminhos, não obstante suas limitações. Aqui me refiro a alguns movimentos sociais populares que se mantêm apostando na construção de uma nova sociedade, e nos caminhos que apontam coerentemente em sua direção. Movimentos Sociais Populares como a Consulta Popular, a Via Campesina e o MST, em que pese a existência de equívocos (cacoetes da velha sociedade de que se acham ainda possuídos), parecem comprometidos em reacender o sonho.

Em sua nova incursão, esses protagonistas parecem estar atentos, apesar de seus limites, a não reincidirem em tantas práticas viciadas do passado ainda recente:

– uma delas, a de se contentarem com contrapor idéias a idéias, como se estas, por si mesmas, substituíssem as práticas;

– já não cogitam em arrebanhar para si integrantes que apenas engrossem numericamente as fileiras;

– já não apostam numa simples mudança de direção que signifique trocar de nomes, mantendo-se intactas as estruturas;

– parece-lhes, ademais, página virada a aposta na estratégia de mudar por dentro as viciadas estruturas da velha sociedade: o “entrismo” é coisa do passado;

– de modo semelhante, já não apostam em “atalhos”, que consistiam em tomar os espaços e mecanismos institucionais como “seus” espaços e ferramenta privilegiados (eleições, Parlamento, espaços governamentais…);

– tampouco entendem que as mudanças pelas quais se batem, tenham que ser conduzidas por um partido político convencional. Apostam, sim, numa força com tarefa prioritária (mas não exclusiva) de formulação, de articulação, de organização, de planejamento, de avaliação… Mas, essa força não deve mais centrar-se num partido convencional, mas num coletivo integrado (de forma alternada) por legítimos representantes do conjunto de forças efetivamente envolvidas com o mesmo Projeto.

Mas, a essa altura, importa indagar: para fazer o quê? Ainda que não se tenha – nem se deva ter – uma idéia “acabada” do Projeto da nova sociedade, que traços devem perfilar esse Projeto alternativo?

Um desenho alternativo de uma nova sociedade – dadas reiteradas razões históricas – deveria começar por se prevenir desde quanto à consistência do seu alicerce, dos fundamentos. Já se viu – à saciedade – que uma organização societal que se queira nova ou alternativa a uma sociedade de classes, inclusive e a fortiori ao Capitalismo, não tem por que mirar-se na figura do Estado e seus respectivos aparelhos, dele fazendo, ainda que “provisoriamente”, sua base estruturante da vida social, econômica, política e cultural. Pode-se objetar que, para se vencer o Capitalismo ou qualquer sociedade de classes, tem sido inevitável, por um certo período, o recurso “transitório” à figura do Estado. Do contrário, como se conseguiria resistir à fúria reacionária dos setores dominantes, desancados de seus privilégios? Inquietação pertinente, não fosse também a constatação de que, por um lado, as experiências históricas, recentes e menos recentes, de enfrentamento parcialmente exitoso ao Capitalismo, sempre recorreram ao Estado. É verdade. Mas, qual o resultado de todas elas? Em qual delas, o poder sucedâneo, amparado no Estado (ainda que sob o controle do Partido) logrou dar o passo prometido a uma organização societal desgarrada do Estado e seus aparelhos, como a sociedade comunista que se afirma ser a grande meta? Não apenas não se atinge essa meta, como a tendência maior é o retorno às relações anteriores, com mudanças nominalistas…

Se esse “filme” se revela provado e comprovado, o que nos leva, então, a insistirmos nele para sempre? O que nos faz tomar como absoluto o que é histórico? Por que não ousarmos caminhos ainda não trilhados, ou seja, por que não tentarmos o que Paulo Freire chamava de “o inédito viável”? Mesmo que não se saiba tão exatamente do que se tratará, em vários de seus detalhes, não valeria a pena tentar, ainda que correndo riscos? Refiro-me, por exemplo, a ousarmos um desenho alternativo de sociedade cuja organização repouse fundamentalmente no protagonismo dos conselhos, das pequenas organizações de base, pouco importando o nome com que venham a ser batizados (“tribo”, “comunas”, “células”, “núcleos”, etc.).

Por que desistirmos de tentar uma nova forma de organização social, inspirada no princípio segundo o qual “De cada um segundo suas possibilidades, para cada um conforme suas necessidades? Não vale descartá-la, sem mais, sob a alegação de que as tentativas ensaiadas resultaram frustradas, fazendo vistas grossas ao fato de que uma coisa é tentar apenas ou quase somente “de boca”, outra é buscar experiênciá-la, em passos conseqüentes, de modo a articular organicamente horizonte, caminhos e posturas adequadas dos caminhantes.

Teríamos uma vantagem: a de não estarmos partindo propriamente da estaca zero. Ao longo da História, tivemos fugazes acenos, nessa direção, tais como:
– a experiência das organizações tribais (as tribos de Israel, entre aproximadamente os séculos XIII e IX a.C), que precedeu o período da monarquia;
– as comunidades cristãs primitivas, não por acaso estudadas por Engels, como experiências significativas do comunismo primitivo;
– os movimentos pauperísticos medievais (os Albigenses, as Beguinas, entre outros);
– A Comuna de Paris;
– no caso do Brasil, dois exemplos marcantes, entre outros: Palmares e Canudos.

Considerando especificamente o caso da atual sociedade brasileira, vale destacar experiências moleculares, espalhadas pelo Brasil adentro. Aqui têm lugar ensaios, passos, “braçadas” dadas por sobre as “correntezas subterrâneas”, em geral, fora do alcance do olhar mais acostumado às águas de superfície. Trata-se de experiências alternativas, ora na área da produção, ora na forma de organização das relações do cotidiano, ora no campo dos valores que impregnam e ressignificam tal convivência. São pequenos grupos, anônimos, do campo ou da cidade. Experiências que também se passam em parte dos Movimentos Sociais Populares (especialmente aqueles que lidam com projeto alternativo de sociedade e que dedicam precioso tempo ao processo de formação continuada). Envolvem também algumas organizações de base e até pessoas dos mais diversos horizontes.

Que aspectos dessas experiências moleculares podem ser aqui ligeiramente destacados. Vamos sublinhar alguns deles, principalmente no campo dos valores.

Pela via da Educação Popular, assumida e exercitada numa perspectiva freireana, tem-se aposta mais e mais numa formação continuada, centrada no processo de humanização. Uma formação que trabalhe todas as dimensões do ser humano, despertando e potencializando o protagonismo de todos os sujeitos envolvidos no processo.

Um processo de formação que prioriza, de forma articulada, tanto o horizonte utópico (o tipo de mundo, de sociedade e de ser humano que se luta por construir), quanto os caminhos que apontam na mesma direção, bem como a postura dos caminheiros. Aqui não faz sentido de falar-se numa nova sociedade, sem que, ao mesmo tempo, se mostrem sinais convincentes de sua busca, de tal modo que nos passos que se ensaiam, já se percebam traços seminais do que se pretende alcançar.

Outro aspecto tem a ver com o esforço de recuperar lutas, fatos, episódios e situações emblemáticos do passado, dos quais, sem qualquer propósito de reedição mecanicista, se possa extrair algum tipo de ensinamento ou de inspiração. Os clássicos e outros bons protagonistas do passado – coletivos e individuais – são revisitados, com vivo interesse.

Busca que se constrói também pela tentativa de superação do velho hiato entre trabalho intelectual e trabalho manual. Estimula-se o exercício dos ofícios manuais, aos quais todos são instados a se dedicar, não como um castigo, mas como uma dimensão saudável dos Humanos a ser praticada de forma complementar às atividades intelectuais, a qual todos são igualmente chamados a exercitar.

Um desafio ainda não assumido com a devida atenção – e no entanto, portador de grande potencialidade transformadora – é o exercício do rodízio ou da alternância de cargos e funções. Já se tem disso uma idéia razoável, o que se constitui num primeiro passo, certamente relevante, mas ainda insuficiente, se não da simples tomada de consciência não se traduzir em prática efetiva. Com efeito, já se tem idéia do efeito perverso de se deixar alguém, por longo e indeterminado tempo, à frente da administração de certo cargo ou função. É um passo para a burocratização. Mas, ainda não se tem traduzido tal idéia em prática efetiva e convincente. Há muito chão ainda pela frente…

Sublinho, ainda, com bastante ênfase, a relevância de se promover o protagonismo de todos os envolvidos nos processos de decisão. Na ordem vigente, a tendência dominante tem sido a de se atribuir a uns poucos ou (a um pequeno grupo) o encargo das grandes decisões, limitando-se a simples comunicação a posterori aos demais das decisões tomadas.

Não menos importante – a despeito do seu caráter extremamente desafiador – é a tendência progressiva ao abandono dos mecanismos burgueses de participação, de organização, de produção e de consumo, além dos respectivos valores de referência, por meio da crescente radicalização em prol de atitudes, valores, procedimentos e formas de organização da produção e do consumo, no quadro de uma sociabilidade alternativa ao modo de produção e de consumo dominante. Sem ignorarmos o fato de ainda vivermos sob a égide do Capitalismo, nada impede – ao contrário! – de ousarmos ensaiar, desde os minúsculos passos, emitir sinais alternativos convincentes, ainda que sejam moleculares, contanto que se mostrem – mesmo no plano ainda simbólico – grávidos de um horizonte alternativo.

2. O cotidiano acadêmico como espaço social de embates

As universidades têm constituído historicamente um segmento relevante da sociedade civil. E não apenas pelo volume de recursos nelas investidos. Também por conta do seu papel histórico de produção de novos saberes e de socialização de saberes acumulados pela Humanidade, ao longo da História, bem como por conta dos achados científico-tecnológicos daí resultantes. Mas, isso não se passa de modo uniforme. São grandes as variações. No caso da sociedade brasileira, apesar de sua implantação acentuadamente tardia entre nós, sua importância é também reconhecida, ainda que de modo variado, quanto a diferentes aspectos.

A despeito da reconhecida importância do seu papel social, especialmente no caso das universidades públicas, importa ter presente que nem sempre as universidades – inclusive as públicas – conseguem dar provas suficientes do seu potencial, na perspectiva das classes populares. Aqui, ali, alguns acenos promissores, é verdade, mas ainda não bastantes para justificar uma tendência consolidada.

Dando prosseguimento à tentativa de reflexão aqui ensaiada, tratamos agora de examinar, em rápidas pinceladas, como se têm comportado entre nós as universidades públicas, e que papel social poderiam desempenhar, na perspectiva de um desenho alternativo de sociedade.
Não é segredo que, enquanto instituição social, a Universidade é também expressão de relações sociais contraditórias, tal como ocorre em relação ao conjunto da sociedade. É um campo de embates – de projetos de sociedade, de estratégias de ação… Por estranho que possa parecer a alguns – principalmente por acordarem um peso acentuado ao caráter público das universidades governamentais -, há indícios claros de que o fato de se chamarem “universidades públicas” não significa que, na prática, consigam assim testemunhar parte expressiva de suas atividades.

Como tantos outros conceitos igualmente portadores de polissemia, a noção de “Público” tem a ver com as leituras de mundo vigentes em cada sociedade. Não apenas com a visão de mundo dominante, mas também com outras leituras no campo do dissenso. Daí a necessidade de se explicitar o que aqui é tomado como “público”. Em princípio, deveria ter que ver com as necessidades, as aspirações e os interesses correspondentes ao conjunto dos membros de uma sociedade. Não obstante, como vivemos numa sociedade permeada por conflitos de classes, aqui tomamos o sentido de público que tem a ver com os interesses das classes populares. Sendo assim, quando aqui nos referimos às universidades públicas, priorizamos o sentido correspondente aos interesses das camadas populares, contingente majoritário da mesma.

Isto, como se verá, tem implicações. Uma delas, por exemplo, é que não basta que o adjetivo “público” ou “pública” acompanhe o substantivo “universidade”, para que assim nos refiramos a uma universidade governamental. Esta nem sempre atende, em primeiro lugar, aos interesses dos segmentos majoritários da população. É, de fato, mantida pelo dinheiro público, principalmente das camadas populares (por conta da avassaladora carga dos impostos indiretos), mas os serviços por ela oferecidos nem sempre ou raramente se revertem, com prioridade, em benefício das classes populares. Sem contar que dificilmente chegam a participar como protagonistas nas decisões tomadas.

Hoje, as sucessivas reformas empreendidas vêm agravando ainda mais esse quadro. Reconhecemos que, mesmo quando se cumpria à risca o princípio constitucional da indissolubilidade entre ensino-pesquisa-extensão, era mesmo assim bastante complicado reverter tais serviços em benefício das classes populares, menos ainda de tomá-las como parte ativa nesse processo. Os serviços na área do ensino, da pesquisa e da extensão raramente tinham e têm as camadas populares como parceiras efetivas desse processo. Nos dias atuais, menos ainda. Há, sim, belas exceções.

A enorme maioria dos membros das universidades governamentais, abrangendo todos os seus segmentos (professores, alunos, funcionários) não tem compromisso algum com as atividades de extensão universitária, quando diretamente voltadas a trabalhos com setores populares. Se e quando se faz extensão universitária, o alvo prioritário das parcerias têm sido grupos e instituições privadas, por meio de consultorias ou outros expedientes, que não raro se fazem com recursos diretos ou indiretos das instituições públicas…

O próprio exercício da pesquisa, a partir mesmo da escolha dos temas – e mesmo assim, seria ainda muito pouco -, pouco tem a ver com os interesses dos setores majoritários da sociedade. Nas ciências humanas, ainda há uma certa inquietação com o que se passa nos meios populares, mas a situação é bem precária nas chamadas ciências exatas e similares. Com as exceções de sempre!

Para um contingente expressivo de professores das universidades públicas, o compromisso efetivo limita-se, quando muito, às atividades de ensino. Uma contradição sabida, mas mantida há tanto tempo: os profissionais das universidades públicas são admitidos, via concurso público, para cumprirem atividades de ensino, de pesquisa e de extensão. Na prática, porém, isso se torna verdade em relação a muito poucos. E o que dizer do instituto do RETIDE (Regime de Tempo Integral e Dedicação Exclusiva)? Conquista relevante, graças (também) à qual se consegue viabilizar o cumprimento da tríplice tarefa dos profissionais admitidos (ensino, pesquisa e extensão), já que se comprometem, ética e legalmente, a dedicar-se apenas à sua nova instituição, sem vínculo formal ou informal com outras, o que inviabilizaria sua dedicação, a tempo integral, às atividades que lhe são confiadas, institucionalmente.

Os desafios começam desde o processo de admissão dos candidatos ao serviço público. O concurso público é reconhecidamente uma relevante conquista, no contexto de sociedade que nos caracteriza, como instrumento de acesso às diferentes instâncias do serviço público. Não obstante, inquietam-nos freqüentes notícias ou episódios de lastimáveis desvios nos processos de admissão ao serviço público. A exacerbação do desemprego estrutural, combinada com a onda de compressão salarial e outras mazelas sociais têm resultado, entre outras conseqüências perniciosas, na corrida desvairada ao expediente de concursos públicos, acarretando uma tendência a uma espécie de “indústria” de concursos, a exemplo do que sucede em relação, por exemplo, ao vestibular. Não constitui surpresa, desse ponto de vista, o número de casos de denúncias, com ou sem anulação dos concursos, sobre fraudes e expedientes similares.

A esses aspectos, digamos, conjunturais, acrescentaria uma inquietação sobre os concursos, do ponto de vista da da justeza dos critérios adotados, ainda quando se dão rigorosamente dentro do figurino legal. Tem a ver com minha dúvida quanto à suficiência do critério determinante da avaliação dos candidatos: seus predicados intelectuais. Claro que a competência técnica é – e deve continuar sendo – um critério indispensável. O problema reside em saber se a avaliação baseada nesse único critério é suficiente para o que se espera de um servidor público, inclusive de um professor universitário. Ao meu ver, não o é. Entendo e defendo que ao critério da competência técnica devam somar-se outros, a exemplo do compromisso social do candidato e de sua postura ética. Ainda que não saiba como aferir tais predicados, por ocasião de um concurso público, estou seguro da necessidade de se caminhar nessa direção.

Repito: ainda que não tenhamos, no momento, uma alternativa concreta a propor, isto não nos impede .de externar o sentimento ou a convicção de que, mesmo quando os concursos públicos se passam de modo irrepreensível, de acordo com o figurino, ainda assim registramos o nosso descontentamento pelo fato de que entendermos que há um grande desafio a enfrentar-se, mais cedo, mais tarde, quanto à pretensa suficiência avaliativa centrada apenas nas habilidades intelectuais do candidato, da candidata.

Como negar, por exemplo, que as universidades governamentais estão cheias de gente com reconhecida capacidade intelectual, à qual, porém, dificilmente também se aliam predicados igualmente desejáveis, tais como compromisso social (não confundir automaticamente com militância partidária ou sindical, nesse tempos de nivelamento por baixo), postura ética, capacidade de formulação, tomando em conta os interesses do conjunto da sociedade (internacional, nacional, regional, municipal…)? À parte algumas poucas figuras universitárias, qual, a propósito, tem sido a contribuição efetiva das universidades públicas, na formulação de planos de desenvolvimento social, elaborados com e a partir protagonistas do campo e da cidade?

Outro aspecto não menos inquietante diz respeito à forte tendência, por parte dos integrantes das universidades, à “endogenia”, a um forte cacoete ou pendor ao corporativismo e à burocratização. Uma atitude comum e muito fortemente inclinada a tal corporativismo é exacerbação da defesa dos próprios direitos, sem igual compromisso com os direitos do conjunto da sociedade nem com os próprios deveres. Exacerbação que se expressa em diferentes momentos: no cotidiano departamental, na definição dos critérios de avaliação e de ascensão funcional dos colegas, na avidez pela ocupação de cargos administrativos ou de chefia, no descompromisso ou no simples desinteresse pelas tarefas profissionais, para além da mera docência, na área da pesquisa e da extensão…

Não se trata apenas de focar o perfil dominante do segmento docente. Os demais segmentos, guardadas as singularidades, também não se distanciam tanto desse quadro, exceção feita a pequenos grupos que constituem exceção. Além disso, convém ter presente que não se deve nivelar, sem mais, o peso da responsabilidade de docentes e de técnico-administrativos ao do segmento discente, que está de passagem relativamente rápida pelos espaços das universidades.

Centrados, na maioria das vezes, em seus próprios interesses, a tendência é a de sucumbir a vícios corriqueiros, tais como o da freqüente privatização de recursos e de espaços públicos. Para não poucos, instituições públicas servem para delas se tirar proveito. Muitas coisas se transformam em alvo de privatização: o tempo de trabalho, materiais didáticos, equipamentos, espaços…

Do modo semelhante ao que sucede no item anterior, convém sempre considerar que, se esse pode ser um perfil dominante, convém ter presente o engajamento de uma minoria, nos três segmentos, que honra e justifica o caráter público dessas instituições. Não se limitam a dar aulas. Envolvem-se com fecundos projetos de pesquisa, quase sempre não financiados. Elaboram ou colaboram de perto com projetos e atividades de extensão, na perspectiva das classes populares, nas diferentes áreas. Constituem uma minoria, mas são capazes de despertar esperança e encorajamento nos alunos e em diferentes comunidades com quem trabalham.

3. Universidades públicas e Movimentos Sociais Populares por uma nova sociabilidade: partilhando saberes e ensaiando alternativas…

Já há alguns anos, um certo número de universidades públicas tem aberto suas portas, para acolher, em novo estilo, turmas pertencentes a alguns movimentos sociais, especialmente do campo. Desde então, vêm sendo oferecidos cursos em várias áreas. Trata-se de uma conquista resultante de uma relação. De um lado, essa nova experiência de parceria está ligada a uma demanda concreta de alguns Movimentos Sociais Populares. Por outro lado, a despeito de suas contradições – ou, de certa forma, por conta delas -, setores de algumas universidades públicas, boa parte dos quais já com experiência de extensão ou de outro nível com esses e outros Movimentos Sociais, mostraram-se sensibilizados pela proposta e a têm acolhido, apesar dos entraves burocráticos e de outra ordem.

Desses Movimentos Sociais Populares aqui vamos destacar o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), por se tratar de um movimento social que, apesar de seus limites, tem lidado com um projeto alternativo de sociedade.

Que tipo de parceria poderia ser exercitada? Que contribuições recíprocas se esperam desses parceiros? Essas e outras questões buscaremos focar, a seguir. De início, importa assinalar que em vários outros campos, é possível e desejável tal parceria, inclusive envolvendo outros protagonistas. No caso aqui enfocado, três balizas poderão ajudar o desenvolvimento da parceria e as atividades dela decorrentes. Podemos assim resumir tais balizas:

– Trata-se de celebrar e desenvolver parceria entre as universidades públicas e os movimentos sociais populares com projeto alternativo de sociabilidade, de modo que as atividades e os saberes exercitados por ambos os parceiros se pautem, em suas ações e iniciativas, na compromisso com a construção de um projeto de sociabilidade alternativo ao modelo vigente;

– As atividades e saberes trocados pelos parceiros se caracterizam, além do horizonte alternativo à sociabilidade hegemônica, por caminhos que apontem nessa direção.

Nesse sentido, caberia às universidades públicas (é melhor falar nos setores universitário efetivamente comprometidos com a natureza da parceria) oferecer seus serviços de modo a tratarem os parceiros, não enquanto “clientes”, mas como protagonistas do processo, em todos os passos e atividades pertinentes. Isto não quer dizer que aqui se proponha descosiderar a natureza específica das atividades em questão. Por exemplo, não se trata de esperar dos alunos dos movimentos sociais que tenham a pretensão de dispensar os professores, ou de fazer suas vezes, e inverter atividades técnicas específicas. Trata-se, sim, de tomar os parceiros como sujeitos do processo formativo, o que implica também tomar em conta seus saberes de experiência e outros acumulados pelos mesmos.

A participação desses movimentos sociais não se limitaria ao exclusivo espaço da sala de aula. Sem prejuízo de suas atividades discentes e seu desempenho pedagógico, essas turmas teriam a oportunidade de conhecer o cotidiano das universidades, em suas diferentes instâncias. E, à medida que vão tomando conhecimento mais de perto das instâncias, dos vários segmentos que a constituem (docente, discente e técnico-administrativo) e de seus respectivos protagonistas, os alunos dos movimentos sociais populares também iriam tomando essas informações e esses achados como matéria-prima de sua reflexão crítica. E iriam compartilhar, inclusive em sala de aula, seu pensar, seu sentir, suas intuições com os setores acadêmicos que com eles acompanham a experiência.

Os Movimentos Sociais Populares, dada sua familiaridade com o meio popular (rural e também urbano), dado o notável investimento que têm feito no processo formativo (escolar e para além da escola), têm muito a contribuir, na perspectiva da construção de uma sociabilidade alternativa à atualmente dominante. Poderiam, por exemplo, ajudar no processo de avaliação da qualidade social dos serviços prestados pelas universidades públicas, sem que isso dispense as universidades de sua necessária (mas insuficiente) auto-avaliação. Seria mais um olhar “de fora” qualificado, do ponto de vista dos interesses das classes populares.

Quedo-me a imaginar o impacto positivo de uma eventual troca de saberes, em particular no tocante a esse olhar externo avaliativo, em matérias tais como:

– o uso social do tempo no serviço público,em particular nas universidades públicas;

– a qualidade socialmente referenciada do que-fazer de cada segmento universitário;

– a contribuição das pesquisas nas questões práticas do cotidiano das classes populares do campo e da cidade, inclusive em matéria de formulação, planejamento e avaliação das políticas sociais;

– a proporção do tempo (distribuído entre ensino, pesquisa, extensão e outras atividades) destinada especificamente à extensão;

– avaliação do sentido social das atividades desenvolvidas, sob o ponto de vista da linha de trabalho, conteúdos trabalhados, da metodologia, da dinâmica, numa palavra: do processo;

– o processo de elaboração do orçamento das universidades públicas e sua execução;

– o modo como as universidades públicas prestam contas de seus diferentes serviços à sociedade.

– a avaliação da relação custo-benefício, numa perspectiva social (das classes populares) do contingente de pessoal, do volume de recursos e do tempo empregados em atividades isoladas (por cada universidade), em vez de um trabalho comum de universidades públicas na mesma região.

– o exame da relação extra-universidade dos membros dos diferentes segmentos com as forças vivas da sociedade e com outras instituições públicas (escolas, hospitais, setor de habitação popular, órgãos de defesa e promoção da Cidadania, numa perspectiva do Trabalho e outras, animando, convivendo, apendendo-ensinando, compartlhando e exercitando valores alternativos à ordem dominante.

Penso, por exemplo, no extraordinário alcance social, político, ecológico e pedagógico do trabalho desenvolvido pelos Movimentos Sociais integrantes da Via Campesina da recém-encerrada 1ª. Conferência Nacional sobre agro-energia no Brasil, cujas propostas vêm resumidas nos quinze pontos constantes de sua Carta datada de 31 de outubro de 2007. Aí tem lugar um belo trabalho de troca de saberes entre universidades e forças vivas da sociedade, numa perspectiva de humanização.

Como se percebe, aqui apenas afloramos levemente possíveis pontos de troca de saberes, com a mediação dos Movimentos Sociais Populares, especialmente aqueles que têm lidado com um projeto alternativo de sociabiliade. Nesse intercâmbio, ganhos haveria, não apenas por parte das universidades públicas. Também por parte dos protagonistas desses Movimentos Sociais Populares, à medida que, por exemplo,

– esses protagonistas dos Movimentos Sociais Populares se mantivessem firmes em seu compromisso de formação acadêmica, como uma dimensão de sua formação omnilateral, tomando-a, não como um “trapolim” de ascensão funcional, mas como uma ferramenta relevante no aprimoramento de sua visão de mundo, de seres humanos e de sociedade;

– ao travarem uma relação mais orgânica com o ambiente acadêmico, fossem capazes de aportar sua contribuição alternativa, em vez de tomarem tal espaço num meio de “tirar partido” em causa própria, no que estariam negando o horizonte alternativo e sucumbindo ao oportunismo da grade de valores dominantes.

– forem capazes de aprofundar e aprimorar seus conhecimentos, também graças aos meios oferecidos pela Academia, sobre tantas experiências memoráveis acumuladas pela Humanidade, nos mais diversos lugares e tempos, bem como uma maior familiaridade com os bons clássicos e contemporâneos, num instigante diálogo com um amplo leque de horizontes epistemológicos, o que pode ajudar a fundamentar ainda melhor as convicções e os princípios em que apostam.

Considerações sinópticas

Tratamos de exercitar uma reflexão acerca das possibilidades de mediação, por parte de alguns Movimentos Sociais Populares – especialmente aqueles que lidam com projeto alternativo de sociedade – entre as universidades públicas e as forças vivas da sociedade, na perspectiva dos interesses das classes populares.

Partimos da constatação de alguns relevantes desafios atualmente colocados à sociedade brasileira, no que diz respeito à atual correlação de forças de profunda desigualdade, em prejuízo das classes populares – que correspondem à parcela largamente majoritária da sociedade brasileira: incessante concentração de renda, crescentes privilégios dos setores dominantes (transnacionais, bancos…); desresponsabilização do Estado de parte expressiva de sua função social, desmonte ou sucateamento de serviços públicos essenciais, redução ou supressão de direitos sociais conquistados há tempo pelas classes populares, desvairada política de privatização de parte relevante do patrimônio nacional, entre outras características do atual contexto; predomínio sem precedentes dos valores de mercado.

Como expressão e resultado desse quadro característico das forças protagonistas da ideologia do pensamento único, uma sucessão de dados trágicos para a enorme maioria do povo: desemprego estrutural, precarização crescente das condições de trabalho e de vida para a maioria da população e do Planeta, compressão da massa salarial, déficit exorbitante de habitações condignas aos seres humanos, numa expressão: brutal empobrecimento!

Vimos que as universidades – em especial as universidades públicas -, em sua trajetória secular, sendo como são espaços de disputa de projetos de sociedade e de estratégias de controle, podem abrigar pelo menos uma parcela de seus segmentos comprometidos com o atendimento às necessidades fundamentais da maioria da população.
Isto se faz sobretudo por via de sua política de extensão, numa perspectiva próxima das classes populares.

É no diálogo principalmente com esses setores mais sensíveis às demandas e aspirações sociais da maioria da sociedade, que os Movimentos Sociais – em especial aqueles que lidam com projeto alternativo de sociedade – podem desempenhar um papel relevante de diálogo e de intervenção conjunta desses Movimentos Sociais com setores das universidades que se mostrem mais sensíveis ao enfrentamento adequado desses desafios.

Aqui se acha listada uma série de atividades práticas – sobretudo no campo da extensão, mas não apenas – que poderiam ser encampadas por uma parceria estratégica entre esses Movimentos e setores das universidades públicas.

TEXTOS DE APOIO

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LEHER, Roberto. Um Novo Senhor da Educação? A política educacional do Banco Mundial para a periferia do Capitalismo. In: Revista Outubro, n. 3, 2003, pp. 19-30. A numeração das páginas do citado texto segue a numeração do mesmo artigo, disponibilizado no formato PDF, na página virtual da referida revista.

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