Que condições internas concorreram para a produção dos graves impasses atuais?

Indagações que me faço e compartilho, em busca de pistas de superação dos impasses atuais

Bem ou mal, muito se tem analisado o atual contexto, com foco principalmente nas condições objetivas. Sem desvincularmos destas, no entanto, é preciso também exercitarmos um olhar “subjetivo” das condições internas que têm contribuído para o desfecho atual. Por conseguinte, sempre visando a contribuir com o debate, as linhas que seguem, concernem especialmente o exercício da condição de militantes das organizações de base de nossa sociedade, inclusive a de intelectuais orgânicos (coletivos ou pessoais) das classes populares, na busca de entendimento dos fatores e situações que mais diretamente sinalizam aspectos da parcela de responsabilidade dos militantes das classes populares na produção deste quadro atual.

A conturbada conjuntura segue pregando suas peças sobre quem pretende entendê-la, pelas vias mais superficiais, infelizmente as mais atrativas, do tipo: novos problemas, velhas soluções… Por essa via, o resultado não é, nem será, capaz de ir à raiz dos problemas, por contentar-se com explicações fugidias que só reforçam o clima de apreensão e perplexidade. Também em momentos similares, em vez de alimentar uma certa ansiedade infértil ou certo tipo de indignação estéril, com explicações imediatistas e respostas fáceis, vale a pena manter – e até reforçar – nosso estado de busca, fazendo-nos mais perguntas e indagações do que pretendendo encontrar respostas prontas ou evasivas. Consciente de meus limites e da provisoriedade do que faço, ouso compartilhar essas indagações, sempre com abertura ao diálogo. Têm este propósito. Tento fazer-me e compartilhar indagações, em busca de entender algo específico: no que diz respeito à condição de militantes (animadoras, animadores, coordenadoras, coordenadores, dirigentes, assessoras, assessores, intelectuais orgânicos…) das classes populares, que condições terão concorrido para que tenhamos incidido no atual quadro conjuntural?

* Será que o tempo também não constitui uma prova não desprezível da boa ou da má qualidade dos nossos escritos?

À parte os equívocos que nos são comuns, em qualquer época, também quando fazemos análises de conjuntura, aqui me refiro, contudo, a graves equívocos evitáveis, cometidos por quem dispõe de informações privilegiadas sobre os caminhos e descaminhos de nossa realidade. Em determinado período, tivemos uma geração de analistas referenciais, para a caminhada das organizações de base de nossa sociedade. Atuavam com espírito crítico e com liberdade profética, de amplo reconhecimento. Parte dessas figuras, todavia, manifesta pontos de contradição significativos. Basta cotejar escritos seus da atualidade com outros produzidos, há cinco, dez, vinte anos atrás. Em vários aspectos, suas críticas empalideceram consideravelmente. Já não têm o mesmo vigor, quando se trata de reconhecer e de denunciar os equívocos internos, de exercer a autocrítica, preferindo exacerbar sua crítica quase exclusivamente em cima do “inimigo externo”.

Como se trata de figuras de imensa influência sobre parcelas enormes das classes populares, dificilmente essas vozes são contestadas – muitas vezes, nem sequer percebidas -, ao interno das organizações de base de nossa sociedade, o que demonstra o tamanho da lacuna de seu processo formativo, há muito abandonado por seus respectivos movimentos populares, com honrosas exceções. O que terá levado tais figuras a cometer reiteradas contradições em suas análises?

* Será que, de costas aos sinais dos tempos, conseguimos avançar rumo à meta desejada? – Até que ponto, a partir de certo tempo para cá, não abandonamos o bom hábito de ler atentamente os sinais dos tempos, e deles buscar recolher lições?

Um dos legados mais preciosos que herdamos de tantos povos, inclusive dos nossos povos originários, tem sido o hábito de nos pormos atentos e vigilantes aos sinais, como atitude de sabedoria. Em outras palavras: reconhecer a fecundidade e tomar a sério o paradigma indiciário. Isto não quer dizer que ele seja garantia completa contra o cometimento de equívocos, afinal podemos interpretá-los mal. Mas, não há negar quanto à sua enorme e reconhecida contribuição para nos aproximarmos mais e melhor do conhecimento da realidade. Tentemos ilustrar tal situação, por meio de alguns exemplos.

* Uma das razões do apreço pelos bons clássicos (e contemporâneos, também, mulheres e homens) é a consistência de seus escritos, capazes de atravessar décadas, séculos, quanto ao essencial de suas análises. Uma indagação que me faço e compartilho é se temos prestado bem atenção à consistência de parte expressiva dos escritos analíticos de hoje, em que, não raro, encontramos analistas que, no essencial, escreviam uma coisa, há dez, vinte anos atrás, e hoje escrevem algo com notáveis contradições, naquilo que, de modo contextualizado, se deve considerar como núcleo de sua análise? Por vezes, por se tratar de autores de referência até para os movimentos sociais, são poupados, ao ponto de nem mais nos darmos conta de suas enormes contradições? Enquanto isso, não são poucos os que seguem tomando tais figuras com o mesmo entusiasmo e atitude acrítica.

Aqui, fazemos vistas grossas para a consciência de inacabamento que nos caracteriza como seres humanos. Inclusive no mister de fazermos análises. O fato de alguns terem êxito reconhecido em certo período, em seus escritos, não quer dizer que assim se manterão “in aeternum”, principalmente se deixam de observar relevantes critérios condicionantes da qualidade de tal desempenho. Não será este o caso de quem, por exemplo, em determinado período governamental, talvez por impulso de vaidade pessoal, decide aproximar-se demasiado dos espaços palacianos, será que sustentará a mesma posição crítica em relação a eventuais descaminhos cometidos pelos entes governamentais de quem se fez tão próximo?

Sem qualquer viés maniqueísta, de um lado, mas, por outro, sem desprezar a relevância dos parceiros e parceiras, nas lutas do dia-a-dia, será que a avidez por resultados imediatistas não tem concorrido para um investimento duvidoso em se trazer para as fileiras do movimento ou em fazer parcerias com figuras de práticas questionáveis, desde o início (gosto excessivo por cargos de direção, por prestígio a qualquer custo, por obtenção de vantagens, etc.)?

* Em relação a militantes em geral, será que, por vezes, não têm faltado critérios mais judiciosos de inclusão – como parceiros de classe – de figuras de grande talento, mas de reconhecidas práticas duvidosas, que, antes ou tarde, acabam desaguando em situações de impasses ético-políticos para o conjunto do movimento? Será que não nos é útil inspirar-nos da conhecida afirmação paulina, de que “Estou seguro daquele a quem fiz adesão” (“Scio cui credidi”, cf. 1 Tm 1, 12)?

* Até que ponto o progressivo abandono de boas práticas que reconhecidamente marcaram as origens de várias de nossas organizações de base acabou contribuindo decisivamente para a prevalência de práticas ético-políticas oportunistas e estranhas às boas inspirações revolucionárias? Em outras ocasiões, buscamos refletir sobre isto. Aqui me limito apenas a mencionar, de passagem, algumas dessas práticas vigentes nas origens de várias de nossas organizações (movimentos sociais populares, sindicais, forças partidárias, eclesiais, etc.). Como não sentir falta das fecundas experiências de nucleação? Quanto investimento e cuidado foram dedicados, não apenas à criação, mas ao acompanhamento ativo dessas instâncias! Aí se buscava discutir e deliberar, desde a base, com relativa autonomia.

Os delegados e delegadas aí escolhidos sentiam-se comprometidos em levar para outras instâncias, não a “sua” (individual) palavra, mas as decisões tomadas pela base. Outra boa prática: a direção colegiada e periodicamente alternada, de modo que quem era da base era escolhido a exercer cargos e funções de coordenação, por um período determinado, findo o qual tais eleitos retornavam à base. Quantos dirigentes hoje retornam à base, após cumprirem seu período de gestão? Era precisamente tal prática que assegurava o controle dos dirigentes pela base, evitando o culto à personalidade ou atribuindo poderes indevidos a uma pessoa ou a um pequeno grupo. Outra prática que se mostrava fecunda: o zelo pelo autofinanciamento. Apostávamos na força dos tostões, do levantamento de recursos por meio de iniciativas próprias, à custa do suor e da criatividade do conjunto de filiados e filiadas. Será que o abandono de tais práticas não incorreu em dependência de, ou atrelamento a forças estranhas às classes populares?

* “Platão é meu amigo, mas mais amiga é a verdade” – Até que ponto a ausência ou a insuficiência de formação contínua não é também responsável pela questionável atitude ética de tantos de nós que, em nossas relações do cotidiano, nos envolvemos tanto afetivamente com outros companheiros e companheiras de caminhada, a ponto de os laços afetivos desenvolvidos não nos permitam ver seus malfeitos, ora fazendo vistas grossas, ora negando-os, ora conformando-nos com acusar o “inimigo externo” como responsável pelos nossos próprios desmandos? Fato tanto mais grave quanto diga respeito a figuras de referência…

* Manter um estilo de vida simples é ou não é exigência fundamental para quem se põe a serviço das classes populares? – Eis um outro ponto fundamental que merece a devida atenção. Distorções inúmeras têm origem neste ponto!

* A formação estritamente política responde satisfatoriamente aos desafios de hoje? – A despeito de existir, em tese, consenso quanto ao lugar essencial do processo formativo nos movimentos sociais, ainda estamos distantes, na prática. E o desafio maior é termos clareza sobre que tipo de formação é tarefa dos movimentos populares e das organizações de base de nossa sociedade. Normalmente, ainda hoje, quando se fala em formação, nessas instâncias, o sentimento mais frequente aponta para a formação política. É claro que esta segue sendo fundamental, ainda que a necessitar de um tratamento mais radical: o de não se restringir mais, como é de praxe, exclusivamente à relação Sociedade-Estado. Tratar-se-ia de um reducionismo perigoso, à medida que a Política comporta bem mais que os laços Sociedade-Estado. Alcança, como se sabe, também as relações do cotidiano – a Cidadania do Cotidiano -, onde a dimensão do Público se faz não menos presente e carregada de sentido transformador.

Mas, é preciso ir mais longe ainda. Mesmo que as organizações de base estivessem atentas a um tratamento mais radical da Política, ainda assim tal dimensão já não mais é suficiente para um enfrentamento exitoso dos atuais desafios. Com efeito, sente-se cada vez mais necessidade de, mantendo-se a formação política (em seu sentido mais completo), ensaiar passos decisivos em direção a uma formação integral, que busque contemplar e potencializar as diversas dimensões do ser humano: a dimensão cósmica, as relações sociais de gênero, de etnia, geracionais, de espacialidade, subjetivas, etc.,etc. Trata-se, por outro lado, de buscar assegurar tais condições de formação contínua, não apenas a quadros dirigentes, mas igualmente à base do movimento. A experiência tem mostrado lidar-se com um risco, quando se trata de assegurar formação apenas aos dirigentes: estes tendem a distanciar-se das bases, enquanto estas tendem a tornar-se caudatárias daqueles…

* Será que o fato de nos encontrarmos em meio a uma “mudança de época” não demanda, também, um reexame de nossos conceitos, inclusive os de “Revolução”, “Militância”, “Militante”, entre outros? Sempre atentos aos bons clássicos e contemporâneos, sabemos que ninguém tem “a” receita para a construção de uma nova sociedade, que seja capaz de superar o modo de produção capitalista, seu modo de consumo, seu modo de gestão, seu modo de relacionar-se respeitosamente com o Planeta. Em gerações passadas (mas, com práticas ainda vigentes), isto só era possível após a derrubada violenta do atual sistema. E aqui, prevalecia amplamente – senão de forma exclusiva – a aposta na força das armas, donde a exacerbada ênfase no receituário militar. Não por acaso, as figuras mais prestigiadas eram aquelas que se destacavam na arte da guerra. Até a terminologia então empregada respirava esse clima. Será isso mesmo? Com honrosas exceções, em que resultaram as experiências de construção de uma nova sociedade tendo como referência quase exclusiva a razão da força? Afinal, “Revolução”, “Revolucionário”, “Revolucionária” não estarão necessitando de uma criteriosa ressignificação, sem perder de vista a contribuição fundamental dos bons clássicos e contemporâneos?

* Será que não estamos precisando de pensar um novo tipo de militância e um novo tipo de militante, diante dos desafios atuais?

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