Após completar seis meses da tragédia devido ao rompimento da barragem de resíduo tóxico da Samarco/Vale/BHP no Rio Doce, em Mariana (MG), conversamos com algumas lideranças, movimentos e atingidos para falar sobre a situação. As entrevistas ocorreram durante a Caravana Territorial da Bacia do Rio Doce, que integrou diversos afetados, pesquisadores, movimentos sociais, dentre outros setores da sociedade civil, para denunciar os impactos na região e buscar justiça. Embora 19 pessoas tenham morrido e os impactos ambientais sejam ainda imensuráveis, ninguém respondeu criminalmente pelo ocorrido.
Logo após à tragédia, Eduardo Barcelos, da Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB), foi a Mariana e cidades vizinhas observar o que havia ocorrido na região. Um dos organizadores da Caravana Territorial, Barcelos denuncia a falta de participação das comunidades nas decisões do futuro dos povos atingidos e explica o que chama de minero dependência. Segundo ele, o modelo predatório de extração mineral em grande escala chegou ao seu apogeu com essa tragédia e precisa ser repensado.
Como se deu esse modelo econômico da mineração entre o Estado Brasileiro e as empresas?
A mineração em Minas Gerais e em outros estados não é uma atividade econômica recente. A primeira frente do Brasil colônia ocorreu em 1674, coordenada por um núcleo bandeirante paulista que interiorizou a colonização no Brasil. Esta frente teve como objetivo a exploração mineral. Ocorreu no contexto da atividade mineral, então é uma atividade extrativa, violatória e violenta, desde o século XVII. Vivemos uma mineração predatória há mais de 350 anos, então seu imaginário é muito antigo e essa mega mineração atual é um desdobramento de todo um processo de extração de recursos naturais e de povos que se arrasta desde então. A mineração de ferro nasce na quebra do monopólio do ouro já no século XIX com a criação da Escola de Minas de Ouro Preto em 1876, quando se cria o currículo de um profissional para explorar os minérios da região do quadrilátero chamado ferrífero (mas também é aquífero!). Existe neste quadrilátero uma reserva de água ampla que abastece várias cidades da região metropolitana de Belo Horizonte. A mega mineração é um fenômeno do século XX no Brasil. Então a mineração pode ser considerada uma história colonial, e hoje se tornou uma atividade radicalizada por conta do volume de minérios explorados e a quantidade de comunidades impactadas. E o que é comum é a violação à água, que atinge todas as comunidades que sofrem as violências que a mineração provoca.
E como fica a questão da dependência econômica dessas cidades no longo prazo, levando em consideração de que se trata de um recurso finito?
São recursos finitos e estão presentes na nossa vida. A mineração sempre foi uma atividade da humanidade, sempre extraímos minérios, pedras preciosas, cristais, seja para rituais, festas e místicas, etc. Só que com a revolução industrial e o fato de se ter uma tese eurocêntrica, implantada por Dom Pedro II no Brasil, de que não se criava uma civilização sem o ferro a mineração começou a ser aprofundada em alguns municípios. Foram desenvolvidas atividades econômicas exclusivamente pautadas por isso, gerando a minero-dependência. É um problema, porque acaba ocultando outras economias e possibilidades. Mariana é um exemplo disso: têm agricultores, pecuaristas, pescadores. Itabira também. Em Mariana 80% do arrecadamento desse município vêm dos impostos da atividade mineral que chega a 2% a nível nacional. Como esse imaginário com mais de três séculos é muito difícil desconstruir isso na vida das pessoas e gestores públicos, de que é possível gerar rendas e atividades econômicas para além da mineração. Então é preciso pensar uma espécie de transição pós extrativista dessa minero dependência, mas não é dizer que a atividade mineral não faça parte da nossa vida. O problema é o modelo da mega mineração, das megas barragens, como é o caso da barragem do Fundão que se rompeu. E não é a maior, como Germano, daí talvez a gente veria uma tragédia crime talvez três vezes maior. Esta é considerada a maior do mundo e é vizinha a do Fundão.
Foi o maior desastre ambiental no Brasil?
Não se tem registro no Brasil e na mineração de um rompimento de barragem como esse, então estamos diante de um caso paradigmático e emblemático na mineração. Talvez a gente tenha uma situação nova na história da mineração do mundo pelo volume, quantidade de mortos e impactos que vão se prolongar no futuro. Em Itabira, onde há a minero dependência há mais de 60 anos, existe o maior número de suicídio de jovens no Brasil. Isso é um fenômeno complexo, mas é importante dialogar isso com a atividade mineradora. A possibilidade que os jovens têm hoje de trabalho e a visualização de futuro das suas famílias vem da atividade mineral. Chegamos a um limite dessa minero dependência e isso precisa ser revisto, assim como sua contribuição de impostos e pensar numa atividade econômica mais plural e diversa. Vimos durante a Caravana muitas possibilidades de se gerar trabalho, dignidade e viver de forma saudável para além da mineração. Estamos diante de uma tragédia crime que expôs a história suja da mineração, e nos coloca o desafio de pensar como superar esse modelo.
Como está a gestão desse problema, os encaminhamentos após a tragédia?
Totalmente insuficientes, negligentes e um esvaziamento profundo da participação popular no debate sobre o pós rompimento. Se a gente já vivia um silenciamento e uma dificuldade de participação das populações antes do rompimento, porque a mineração é algo que é discutido nos gabinetes, nas empresas e com o Estado, as parcerias público privadas, no pós rompimento ficou ainda mais difícil a tentativa de minimizar o problema. Houve várias tentativas de não mostrar a magnitude do rompimento da barragem. Completou seis meses, e as estratégias são duas: criação de fundos de uma Fundação, e as ações emergenciais que foram a limpeza de praças e comunidades, deslocamento compulsório e fragmentação de algumas comunidades. Mas em termos de estratégias, foram duas, a criação de fundos e aplicação de multas pelo Ibama, e o empenho de recursos na forma de fundos para recuperação da bacia. Então foi criada uma Fundação a partir de um acordo das mineradoras com os governos federal e estaduais de Minas e Espírito Santo para criar um ambiente de consenso dentro do contexto da tragédia crime.
Não houve participação popular, se você ler o acordo verá uma série de instâncias: comitê interfederativo, conselho consultivo, um painel de especialistas, etc, que não contempla a participação das populações. Se transformou numa Fundação das mineradoras, porque elas vão financiar a Fundação, decidir junto a essas instâncias as prioridades de recuperação da bacia. Então houve um esvaziamento completo das vozes dos protagonistas que viveram o sofrimento e as violências causadas pelo rompimento. A Caravana mostrou sua completa insuficiência e esvaziamento político de participação dessas comunidades. E também uma espécie de chantagem sobre aqueles que fazem a crítica ao modelo mineral, que são taxados de radicais e sem alternativas. Só que as alternativas já existem, mas estão oprimidas nos municípios. Em Mariana é possível fazer agricultura e pecuária, por exemplo. Barra Longa é uma bacia leiteira, é possível gerar renda mesmo num contexto de minero dependência. Os acordos estão insuficientes e sendo feitos nos gabinetes na calada da noite pelos governos. E a grande questão é a chantagem que a mineração faz ao Estado dizendo que faz parte do PIB nacional, e que sem a mineração não se gera caixa e dividendos para aplicação em políticas sociais e compensações ambientais.
O grande nó que se coloca é o financiamento de campanhas pelas mineradoras. O grupo Vale doou mais de R$ 25 milhões para as campanhas eleitorais na última eleição. O relator do novo código da mineração, Leonardo Quintão, deputado federal de Minas Gerais, é o maior beneficiário das mineradoras. Pode se chamar de Código das Mineradoras, porque além de flexibilizar o licenciamento esvazia mais uma vez a participação da comunidade. Então em termos de desdobramentos, consequências, implicações do pós rompimento, vemos com muita preocupação esse esvaziamento e tentativa de silenciamento dos movimentos sociais para debater o modelo mineral. Nós precisamos debater o modelo da mega mineração no Brasil: esse é um caso limite que rompeu as possibilidades de continuarmos acreditando nesse modelo mineral colocado.
O que determinou para chegar a essa estrutura e modelo de desenvolvimento? Há influência do mercado internacional em relação a essa commodities?
Nos últimos 15 anos a América Latina e em especial a América do Sul adotou um padrão de participação no cenário internacional a partir da exportação de commodities, seja metálicas, agrícolas, sobretudo soja, e celulose e carne bovina e outros produtos primários. Vivemos o que alguns chamam de reprimarização da economia. Então no plano internacional o Brasil, assim como Peru, Argentina, Equador, Venezuela, adotou esse modelo para participação. Também foi determinante uma modificação geopolítica nesse período com o surgimento de uma nova hegemonia, com o deslocamento do eixo de hegemonia dos EUA para a Ásia, sobretudo pelo forte crescimento econômico chinês que demandou produtos primários. Então houve um realinhamento da economia no sentido China, ou seja, o deslocamento de uma economia do atlântico norte vinculada à Europa e aos EUA para uma economia vinculada ao Atlântico Sul e ao Índico a partir do crescimento econômico chinês. É a maior população do mundo, demandava produtos de bens de consumo, o que implica no consumo de produtos primários como a soja na base alimentar e a produção de minério, sobretudo o aço, para produção de veículos, construção de infraestrutura, etc. Então o Brasil adotou esse modelo com superávit primário, o país fez caixa, reservas para investimentos, inclusive de exportação de bens primários, só que isso é um processo extremamente conflitivo e contraditório. Ou seja, para intensificar o processo da mineração é preciso expropriar povos, comunidades e a natureza.
Estamos dentro de um padrão de poder que ataca a vida de uma forma geral, uma biopolítica expropriatória. Esse padrão intensificado principalmente pela China foi impulsionado também pelo preço das commodities favorável, então houve a expansão da mineração com a abertura de minas, duplicação de ferrovias e minerodutos, ampliação de portos, ou seja, o Brasil se preparou para surfar na onda internacional. Nesses anos houve uma ampliação dos grandes projetos de infraestrutura, como rodovias, ferrovias e portos para ancorar esse processo de exportação de minérios. A partir de 2010 o preço das commodities começou a cair em função da retração econômica chinesa: o crescimento chinês que chegou a 11% caiu para 6%, o que ainda é um crescimento elevado. Mas o preço do minério também caiu, e esse ciclo chamado de Consenso das commodities ou Consenso de Beijing, capital da China, entrou em crise. O boom das commodities entra em crise com a queda do preço e alguns acadêmicos estão discutindo que o rompimento da barragem de Mariana encerrou o ciclo do boom das commodities nesses últimos anos. Então o Brasil e a América do Sul estão revendo esse processo não para substitui-lo, mas para buscar formas de ampliar e sustentar esse modelo. É isso o que os governos acreditam em termos de crescimento econômico, que é o modelo extrativista, capitalista e predatório. E a caravana surgiu nesse contexto de tentar problematizar esse ciclo expansivo que ocorreu no Brasil, e mostrar formas de garantir direitos porque é um modelo violador dos direitos fundamentais das pessoas e da natureza de uma forma geral.
Muito lucrativo no curto prazo, mas insustentável no longo prazo.
É isso. Estamos vivendo uma dependência das commodities porque apostamos muito no crescimento chinês, de que extraindo da natureza teríamos recursos para financiar políticas sociais para combater a miséria e a pobreza. Essa foi a aposta, o modelo político de governabilidade e econômico no Brasil. Temos várias evidências para mostrar que esse modelo entrou em falência, como o caso de Mariana.
(*) Fotos: Arquivo Caravana Territorial da Bacia do Rio Doce.