O uso da força deixa marcas no corpo, fere o espírito e desintegra o tecido social

Superar esse padrão exige reconstruir relações baseadas no respeito mútuo, na empatia e na valorização da dignidade de todas as pessoas.

Vivemos uma época em que a força, sob suas múltiplas faces, é utilizada com crescente frequência para resolver conflitos, seja no âmbito familiar, conjugal, comunitário, comercial ou internacional. O recurso à violência, ao invés do diálogo, da negociação e do respeito mútuo, coloca em risco a própria estrutura sobre a qual se assentam valores civilizatórios fundamentais.

A violência nas relações familiares: Os dados de 2025, divulgados pelo Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, apontam um aumento de denúncias e registros de violência física, psicológica e sexual contra crianças: 140.000 denúncias em todo o País. Mais de 70% das ocorrências aconteceram no ambiente familiar ou envolviam agressores conhecidos da vítima.

Ao longo das últimas décadas, o Brasil acompanhou, com profunda comoção e indignação, casos de violência contra crianças. Em 2008, houve o caso de Isabela Nardini, de somente cinco anos, em São Paulo. A menina foi jogada do sexto andar do prédio onde morava o pai e a madrasta. Em 2020, Rafael Winques, de 11 anos, foi encontrado morto em Planalto–RS.

O caso Henry Borel, em 2021, no Rio de Janeiro, morto por maus tratos do padrasto, ganhou destaque nacional, suscitando debates sobre saúde mental, negligência e violência infrafamiliar, além de expor a vulnerabilidade de crianças em contextos familiares conflituosos.

Crianças que sobreviveram a esse tipo de agressão sofrem profundas consequências emocionais: sentimentos de insegurança, medo, baixa autoestima, traumas duradouros e, muitas vezes, a reprodução da violência em outros contextos.

 

Quando mães, pais ou responsáveis lançam mão da violência para impor limites ou expressar frustrações, ocorre uma inversão do papel protetivo esperado na família.

 

Violência conjugal: O Brasil enfrenta desafios persistentes e graves no combate ao feminicídio. Em média, ocorre um feminicídio a cada 6 horas no Brasil. Segundo os dados preliminares do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil registrou, em 2025, aproximadamente 1.450 casos de feminicídio.

Os índices crescentes de feminicídio revelam a face extrema da dominação, do controle e da negação da individualidade da mulher. Esses exemplos, antes restritos a contextos de maior exclusão social, agora se espalham por todo o território brasileiro, indicando uma crise mais ampla de valores e de modos de resolução de conflitos.

Violência nas relações sociais e comunitárias: O domínio territorial por milícias, facções e outros grupos armados impõe o medo e mina o senso de coletividade. A força bruta delimita fronteiras, destrói vínculos sociais e normaliza a lógica do “mais forte” contra o “mais fraco”, perpetuando ciclos de opressão e injustiça.

 

A convivência baseada no medo substitui a possibilidade de diálogo, cooperação e construção coletiva de soluções para os problemas comuns.

 

Recentemente, as duas casas legislativas foram ocupadas pelo uso da força por políticos alinhados a um país estrangeiro, exigindo punições e fim de um processo legal de um julgamento em curso pela justiça brasileira.

O uso da força nas relações comerciais e internacionais: no cenário internacional, a soberania dos povos é ameaçada quando países mais fortes utilizam o poderio militar ou econômico para intervir em territórios alheios, atingindo a soberania, seja pela força das armas, seja por imposição de barreiras comerciais.

Essas práticas corroem o respeito mútuo entre as nações e fragilizam os mecanismos de equilíbrio e negociação diplomática, promovendo instabilidade e insegurança global.

O QUE HÁ EM COMUM NESSAS DIFERENTES FORMAS DE VIOLÊNCIA?

As diversas formas de violência: familiar, conjugal, comunitária, comercial e institucional têm como raiz comum o uso da força para controlar, dominar ou subjugar o outro, especialmente quando há desequilíbrio de poder. O padrão central é a imposição da vontade do mais forte sobre o mais vulnerável, seja criança, mulher, comunidade, indivíduo ou país em posição de menor influência.

Essa lógica atravessa todos os contextos relatados: na família, pais ou responsáveis que recorrem à agressão para impor limites a crianças; no ambiente conjugal, o feminicídio como expressão máxima de dominação masculina; nas relações sociais e comunitárias, milícias e facções que mantêm territórios e mercados pela intimidação; e no plano institucional, grupos que ocupam espaços legislativos pelo uso da força. É um retorno à barbárie.

QUAIS OS VALORES ATINGIDOS/AFETADOS?

O uso da força e da violência fere valores fundamentais que sustentam uma sociedade justa e saudável. A dignidade do indivíduo é negada quando a violência substitui o diálogo e a escuta. A convivência pacífica entre diferentes é minada pela lógica da intolerância e dominação.

O recurso à força ignora o devido processo legal e transforma o direito em privilégio dos mais fortes. O medo e a desconfiança se sobrepõem à compaixão e ao cuidado mútuo. A violência institucional enfraquece a crença em sistemas democráticos e legais.

Relações interpessoais tornam-se frágeis, o sentimento de pertença e o senso de coletividade se dissolvem. O estresse coletivo amplia o clima de insegurança e ansiedade.

QUAIS AS CONSEQUÊNCIAS PSICOSSOCIAIS?

O uso reiterado da força alimenta o medo, a desconfiança e o isolamento social. Sociedades marcadas pela violência tendem a apresentar relações interpessoais mais frágeis, descrença nas instituições e diminuição dos laços de solidariedade.

O sentimento de pertencimento e de coletividade se esfacela, tornando cada indivíduo mais vulnerável à solidão e ao desamparo. A violência, portanto, não destrói somente o corpo físico, mas fere a alma humana e corrói o tecido social.

 

No plano psicológico, os impactos são igualmente devastadores. Indivíduos expostos sistematicamente à violência, direta ou indiretamente, podem desenvolver distúrbios como ansiedade, depressão, transtorno de estresse pós-traumático e outras formas de sofrimento psíquico.

O medo constante e a sensação de impotência comprometem a capacidade de agir, de construir relações saudáveis e de confiar nos outros. A naturalização da violência como meio legítimo de resolver disputas enfraquece a capacidade de empatia, promovendo um ciclo de insensibilização e brutalização coletiva.

QUAL O MECANISMO DE IMPOSIÇÃO DA FORÇA?

O mecanismo recorrente é o uso do poder físico, psicológico ou simbólico para submeter o outro, justificando a ação pela necessidade de controle, punição ou preservação de interesses.

Observa-se: na família, a inversão do papel protetivo quando o cuidado é substituído pelo abuso e maltrato. Quem deveria proteger, agride e humilha. No feminicídio, a negação da individualidade, onde a força elimina a autonomia da mulher. A companheira é tratada como objeto de posse unilateral.

Nas milícias e facções, a institucionalização do medo, onde o mais forte define regras pela intimidação. O direito de ir e vir fica comprometido. Na política e comércio, a substituição do diálogo pelo confronto, onde interesses são impostos sem mediação.

 

Em todos os casos, quem detém poder, seja físico, econômico, político ou simbólico, utiliza mecanismos de dominação, humilhação e silenciamento dos mais vulneráveis, perpetuando ciclos de violência e exclusão.

 

Essas formas do exercício do poder pela violência têm como denominador comum a imposição do poder do mais forte contra o mais vulnerável, resultando em danos sociais e psicológicos profundos. Os valores civilizatórios essenciais são violados, e o mecanismo da força substitui o diálogo, a justiça e a solidariedade.

Superar esse padrão exige reconstruir relações baseadas no respeito mútuo, na empatia e na valorização da dignidade de todas as pessoas. Não seria através da agressão aos direitos universais que emerge a indignação necessária a se desenvolver “ações + dignas” e restaurar a ordem e convivência na diversidade?

A banalização do uso da força ataca diretamente valores civilizatórios essenciais como o respeito, a dignidade, a tolerância e a busca pela justiça. A ideia de soberania, fundamental para o equilíbrio das relações, é substituída pelo domínio, pela imposição e pela lógica do vencedor.

Perde-se de vista que o verdadeiro progresso humano se constrói pela convivência pacífica, pelo reconhecimento da alteridade e pela valorização do diálogo. O caos mundial é fruto da ação humana e, igualmente, só o ser humano poderá transformá-lo.

O livro do Gênesis nos lembra que o caos precede a criação. Que o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus. Somos cocriadores com Deus. Não se trata da instalação do apocalipse, mas de um novo início onde o poder cede lugar ao amor que tudo une e constrói.

 

Para enfrentar esse cenário, é necessário resgatar práticas e valores de nossa cultura cristã, que privilegia o entendimento, a escuta e o respeito.

 

Investir em educação para a paz, fortalecer a justiça, promover políticas públicas de prevenção à violência e criar espaços de diálogo coletivo são caminhos possíveis para a reconstrução do tecido social e do equilíbrio psicológico das pessoas e das sociedades.

A superação da lógica da força exige que cada pessoa e cada instituição reconheça o papel que desempenha na construção de relações mais humanas, baseadas em princípios que dignifiquem a vida em todas as suas formas.

Desta maneira, poderemos substituir a lógica do uso da força por uma cultura de paz e dar início a um novo “Gênesis Social”.

Escrito por Adalberto Barreto ceara@svm.com.br

Foto: Legenda: As diversas formas de violência — familiar, conjugal, comunitária, comercial e institucional — têm como raiz comum o uso da força para controlar, dominar ou subjugar o outro
Crédito: HTWE/Shutterstock

Fonte: Diário do Nordeste, 21 de agosto de 2025 – 06:00

Um comentário sobre “O uso da força deixa marcas no corpo, fere o espírito e desintegra o tecido social”

  1. Uma análise lúcida, sensível e profundamente humanista sobre as diversas formas de violência que assolam a sociedade contemporânea. Com clareza e compromisso ético, o autor vai além da mera denúncia e propõe uma reflexão transformadora, chamando a atenção para as raízes estruturais da violência e os valores civilizatórios que estão sendo comprometidos. Uma leitura que provoca, sensibiliza e inspira à ação.

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