O universo de trás das grades


Cineclube Carceragem - um dos projetos mostrado no filme Barreiras

Por Landa Araújo, do Viva Favela
Quem nunca ouviu a frase: “uma ideia na cabeça e uma câmera na mão”, citada pelo conhecidíssimo cineasta Glauber Rocha (?1939 ? 1981) e de autoria do também diretor cinematográfico Paulo César Saraceni (?1933 ? 2012)?
Foi pensando assim que o músico e o empreendedor cultural, Rafael Kalil começou a imaginar como ficaria o seu filme, um longa documentário intituladoBarreras, fruto de materiais registrados em vídeo nas penitenciárias, presídios e carceragens de delegacias do Rio de Janeiro durante cinco anos (2006 a 2011) – oriundos de vários projetos nos quais Kalil coordenou, entre eles: shows musicais, projeções de filmes, oficinas de artesanato, teatro, produção de textos, alfabetização, saraus de poesia e a criação de bibliotecas, todos projetos direcionados para pessoas presas. O resultado filmado ficou tão enriquecido que logo veio o desejo de fazer um longa-metragem sobre suas ações. Mas, e a verba para isso?
Para angariar apoio entre amigos e conhecidos, Kalil apelou para um velha técnica com nova roupagem. É que a conhecida “vaquinha” mudou de figura. Ou melhor, de método… E ela se tornou virtual, com direito a endereço eletrônico e tudo. Em troca, os contribuintes (internautas, ONGs, empresas) que contribuem, recebem brindes ou outras premiações. O sistema é denominado de “crowdfunding” (fala-se no português brasileirado: craunfaundim), termo inglês que significa “financiamento coletivo”. Foi assim que o projeto Barreras foi parar no website Zarpante.com, plataforma do gênero.
“Muita gente tem depositado (apoiado a causa) e muitas permutas estão sendo negociadas. Até o fim da captação, teremos concluído com êxito as metas orçamentárias que estipulamos. Muita gente, porém, ainda desconfia desse tipo de transação, isso ainda é muito novo no Brasil. Lá fora, é um caminho real e viável, é uma alternativa moderna principalmente para a classe artística, isso abre possibilidades de execução e viabilidade de projetos culturais e artísticos, é mais uma ferramenta interessante que surgiu para quem trabalha no meio da arte e do patrimônio histórico”, diz Kalil.
O financiamento coletivo na internet auxilia ações, projetos, filmes e artistas (autônomos ou não) para que possam deixar suas ideias ou projetos por um tempo determinado em um site, daí, é só divulgar e aguardar para que o valor financiado seja atingido.
“Uma coisa positiva no financiamento coletivo é que tende a ser menos burocrático que os habituais processos de captação e por isso mesmo mais imediato. Trata-se de aprovar um projeto em um prazo definido e fazer de tudo para que atinja sua meta neste prazo. Isso é bom porque o projeto não fica engavetado, mas não é sempre fácil, pois as pessoas têm seus próprios ritmos e não sentem a urgência de tal ou tal projeto”, explica Henrique Moretzsohn de Andrade, um dos responsáveis pelo site Zarpante.
Cada um que se dispõe a ajudar pode ser, inclusive, recompensado. No caso do longa documentário Barreras, os brindes vão de um adesivo da iniciativa proposta, a ingressos gratuitos, ou até à menção com destaque ao nome do financiador nos créditos do projeto. “Quero só terminar o filme sem fins comerciais, tenho a necessidade de colocar essa história para o mundo como um serviço mesmo, então não procurei Rouanet, editais, nada disso. Pelo contrário, isso dá até mais liberdade para falar a verdade que vivemos e compreendemos nessas experiências no cárcere sem comprometimento algum com quem quer que seja. O financiamento coletivo serviu também para dar um prazo para terminarmos esta história e estamos no caminho certo, tudo começou a surgir a partir do momento que colocamos um prazo que coincide com o fim da captação no site”, diz Kalil.
Até o fim desta matéria, dos € 14 mil (cerca de R$ 36 mil) orçados no projeto, mais da metade, 73% da meta para sermos precisos, já foi angariado. “No caso do projeto Barreiras, existe um prazo no qual deveremos atingir a meta, porém a urgência não é só de atingir a meta financeira e sim de que as pessoas entendam que projetos como estes deveriam estar implantados há muito tempo não só nas prisões do Rio como nas prisões de todo Brasil”, completa Henrique.
Mas… as pessoas contribuem?
Pessoas, empresas, familiares, amigos… para financiar basta clicar e ponto. Às vezes, as contribuições não vêm em dinheiro, ela chega como empréstimos de equipamentos. Outra questão é a que 7% das contribuições ficam com o website, onde o projeto está inscrito. E se, até a data limite o valor total não for arrecadado ele volta para os contribuintes, nada vai para o projeto pretendido.
“Esta sendo bom para divulgar a proposta e conseguir parceiros, mas na realidade pouca gente contribui de fato. Isso ainda não é uma prática comum aqui no Brasil. Dinheiro mesmo não tem tanto assim, mas como conseguimos garantir câmeras e ilha de edição, então debitamos disso. A galera tem contribuído, agora falta um gás final para não perdermos tudo”, afirma Kalil, fazendo menção ao sistema que só permite a intermediação caso a meta seja alcançada no financiamento coletivo.
No Brasil esse sistema é novo, aos poucos vem se tornando referência para projetos independentes. Entre as dificuldades está a de fazer com que as pessoas contribuam e acreditem no sistema. O dito popular de ser igual a São Tomé — “só acreditar vendo” — faz parte da cultura popular.
“Boa parte da sociedade contribui ativamente para projetos e iniciativas sociais. Porém, infelizmente muitas vezes as pessoas acabam sem contribuir, não por falta de poder aquisitivo (já que toda contribuição por menor que for é valida) e sim por preguiça. Por vezes, o que sentimos é que o que falta é mais solidariedade”, diz Henrique, que afirma ainda que, na era das redes sociais, a divulgação de informações sobre projetos como este alcança com mais rapidez um número maior de pessoas. “Porém, isso pode fazer com que as pessoas apenas sobrevoem as noticias, até compartilhem as noticias, mas não saiam do seu caminho habitual para realmente contribuir para um projeto”, completa.
Barreras para o mundo
No website Zarpante, o texto apresentação do Barreras, diz que ele “pode ser considerado como ‘cinema de guerrilha’ por conta da forma como foi feito. Sem quase nenhum recurso, captando imagens com câmeras de celular, máquina fotográfica e diversos tipos diferentes de câmeras profissionais e amadoras. O mais importante sempre foi registrar momentos únicos, pois tivemos a oportunidade de filmar dentro de diversas carceragens diferentes no íntimo do universo intramuros das prisões”.
Além da possibilidade da produção de um filme mostrando cinco anos de trabalhos culturais com as pessoas presas, a ideia é sensibilizar o público de que há uma vida, uma história enriquecida de boas ações por trás das grades.
Kalil afirma que sempre foi bem recebido pelos presos e que a relação sempre foi acompanhada de respeito mútuo. “Eles sempre foram solícitos, educados e voluntariosos, o meu maior ganho mesmo nisso tudo foi vivenciar essas relações ricas e profundas nesses lugares inóspitos que são as prisões. O ser humano é fascinante mesmo, vi muita gente mudar, muita gente crescer como pessoa dentro do cárcere e muitos hoje têm outra vida e visão de si mesmos e das relações e percepções para com o mundo”.
Para Henrique, o projeto Barreras é uma chance de todos contribuírem para o Brasil mostrar ao mundo que, apesar da violência existente, há um método eficaz de combatê-la com arte, educação e cultura e que projetos como este podem sensibilizar um público nacional e internacional. “No caso de Barreras, conhecemos pessoalmente brasileiros que até hoje se negam a assistir filmes como Cidade de Deus ou Tropa de Elite argumentando que são filmes muito violentos e passam uma imagem muito pejorativa do Brasil no exterior. Barreras é um filme que precisa ser visto e utilizado como um projeto piloto do que pode ser implantado em prisões mas também em bairros carentes do Brasil”, diz.
Serão cinco anos resumidos em uma hora e 45 minutos. A ideia na cabeça agora conta com o financiamento coletivo para chegar às telas e mostrar um outro lado, sobre o outro lado das grades. “É muito mais fácil do que se pensa acharmos as soluções para as coisas mais caóticas e difíceis. Os presos me provaram isso, a capacidade de superação do ser humano é gigantesca e imensurável”, finaliza Kalil.
(*) Reproduzido do Viva Favela.

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