O SERVIDOR DA NAÇÃO DO DIVINO (por Reginaldo Veloso)

A Geraldo Leite Bastos, presbítero da Ponte, do Morro e da Escada, no 25º ano de sua Páscoa: 1987- 19 de abril – 2012!

Por esses dias, um jornalista que preparava uma matéria para um jornal do Recife, me perguntava:
— Como o senhor definiria o Pe. Geraldo?
— O Servidor da Nação do Divino, respondi imediatamente.
Sim, porque estou certo de que nenhum título cabe melhor na sua personalidade de homem, de cristão e de pastor. Nenhum outro lhe agradará mais escutar, lá onde se encontra, no aconchego da divina mansão, ao lado da Mãe de Jesus, a Mãe do Bom Conselho, que sempre o protegeu, e da Mãe Bela, a mãe do bom exemplo, que o concebeu.

Nascido na cidade de Moreno – PE, a 12 de dezembro de 1934, véspera de Santa Luzia e do aniversário natalício de Luís Gonzaga, o Rei do Baião, cujo centenário de nascimento recorre este ano, Geraldo, estudou no Seminário de Olinda – PE, no Seminário da Várzea, vindo a terminar sua formação presbiteral no Seminário de Salvador – BA. Foi quando ele estava no Seminário da Várzea que nos conhecemos. Eu, estagiário, na Escola Apostólica da Várzea, dos Padres do Sagrado Coração de Jesus, ensaiava uma opereta italiana, “Marco, o Pescador”, e ele veio prestar-nos um genial serviço, como artista plástico, produzindo-nos um belo cenário para a peça.

Ordenou-se a 8 de dezembro de 1961, no tempo em que era Arcebispo de Olinda e Recife, Dom Carlos Coelho, um bispo de grande espírito pastoral. Desconheço as circunstâncias e detalhes da sua ordenação. Sei, porém, que ocorreu, por divina providência, num cenário de esplêndida primavera cultural nordestina, quando, no campo, fervilhavam as lutas das Ligas Camponesas, e, na cidade, especialmente no Recife e em Olinda, borbulhava o Movimento de Cultura Popular, o MCP de Miguel Arraes, de Abelardo da Hora, de Germano Coelho, de Paulo Freire, de Anita Paes Barreto, entre outros e outras…

Em 1962, ano do início do Concílio Vaticano II, 50 anos atrás, precisamente, Geraldo era enviado como discípulo-missionário de Jesus a Ponte dos Carvalhos, povoação recente, fruto da urbanização acelerada provocada pelo primeiro surto de industrialização do Nordeste, nos anos 60. Chegava como padre pobre, no meio de gente pobre, vinda de todo canto, desenraizada e desorganizada. Os detalhes desta chegada, vocês da Ponte, sabem muito melhor do que eu. Pelo pouco que me foi possível saber, parece que, à primeira vista, o cenário era desolador… Certo dia, Geraldo, ao experimentar um sentimento de impotência diante de tantos e tamanhos desafios à sua missão pastoral, confidenciava sua desolação a uma pobre mulher, como quem dizia “não sei por onde começar”, “não sei o que fazer”… Mas sua esperança se acendeu como chama que nenhum vento contrário conseguiria apagar, quando ouviu da boca de uma legítima intérprete dos empobrecidos, a quem Deus revela seus segredos, esta profecia:
– Padre, não desanime não. Um pobre ajuda outro pobre, e, no fim, tudo resolve!
E assim começou a história da Nação do Divino e seu Servidor.

Por que “Nação”?… O processo, desencadeado, com certeza, pela força do Espírito, através da palavra daquela pobre mulher, vai germinando, vai brotando, vai crescendo vigorosamente, vai se cobrindo de verde folhagem, de flores multicores e perfumadas, vai se carregando de frutos saborosos. O chão era o coração dos pobres, sua cultura marginalizada, mas viva, rica e variada, pela qual, Geraldo, com rara sensibilidade, alimentava grande simpatia. Aos poucos, Geraldo, cada vez mais profundamente entrosado com aquela gente e sua experiência cultural, penetrava os sentidos mais profundos de sua cultura, captava seus valores e belezas, sobretudo, quando assistia a seus festejos e escutava os toques do Maracatu de Nação, do Cavalo Marinho, da Chegança, da Ciranda ou os toques dos Terreiros, nas liturgias dos Orixás… Mais tarde, Geraldo haveria de confessar:

— Quando muito negro faz questão de dizer que é “negro de alma branca”, eu digo que sou um branco de alma negra!
E foram estas “nações”, herdeiras da experiência comunitária e de resistência das senzalas e dos quilombos, que, sem dúvida, andaram inspirando o servidor do Evangelho naquelas paragens e naqueles tempos.

E por que “Nação do Divino”?… Foi do Concílio Vaticano II, em boa hora, que chegou, um pouco mais adiante, o auxílio bíblico e teológico, que iluminaria e inspiraria este artista do Reino, este “Servidor da Nação do Divino”, especialmente, quando, na Constituição Dogmática Lumen Gentium sobre a Igreja, no decorrer da 4ª sessão do Concílio, em novembro de 1964, definia a Igreja, recorrendo ao que escrevera o Apóstolo Pedro em sua 1ª Carta:

Aproximai-vos do Senhor, pedra viva, rejeitada pelos homens, mas escolhida e valiosa aos olhos de Deus. Do mesmo modo, também vós, como pedras vivas, formai um edifício espiritual, um sacerdócio santo, a fim de oferecerdes sacrifícios espirituais, agradáveis a Deus, por Jesus Cristo. (…) vós sois a gente escolhida, o sacerdócio régio, a nação santa, o povo que ele conquistou, a fim de que proclameis os grandes feitos daquele que vos chamou das trevas para a sua luz maravilhosa. Vós sois aqueles que antes não eram povo, agora porém são povo de Deus (1 Pd 4,4-5. 9-10 – cf. LG 10).

Era tudo quanto Geraldo precisava para, apoiado, todo o tempo, pelo Arcebispo “Irmão dos Pobres”, Dom Helder Camara, se dedicasse, de corpo e alma, a juntar e animar aquela gente dispersa, sem rumo e abandonada à propria sorte, de modo que tomasse consciência de seus valores, se organizasse em comunidades de vida e de fé, com as riquezas e belezas de suas expressões culturais. Iluminadas, então, pelo Evangelho de Jesus, Boa Nova para os empobrecidos, essa “Nação” haveria de crescer lutando por seus direitos, por melhores condições de vida, e, vibrando com a sua fé, na alegria da irmandade, “ajudada pelo engenho e arte” do seu Servidor, haveria de “cantar e espalhar por toda parte” que…

Ninguém é melhor do que ninguém,
todo mundo está caminhando!
Ninguém é o mestre de ninguém,
todo mundo está aprendendo!
Ninguém é senhor de ninguém!
Todo mundo está pra dar, pra servir e amar, na liberdade!
O jeito melhor de caminhar é de mãos dadas!
O jeito melhor de aprender é saber ouvir!
O jeito melhor de amar é servir na liberdade!

Com profundo senso pastoral e rara criatividade, Geraldo colocou todos os seus dotes artísticos, como poeta, como dramaturgo, como artista plástico (arquiteto, pintor, escultor, santeiro e vitralista), como músico e coreógrafo, a serviço da pujança dessa vida comunitária. Primeiro, na Ponte, desde 1962; depois, no Morro da Conceição, desde 8 de dezembro de 1975, quando assumia a nova paróquia criada por Dom Helder Camara; e finalmente, em Escada, a partir de 1980, onde encerrou sua significativa vida e seu fecundo ministério.

Essa experiência, vivida ao longo de um tempo de trevas, que foram as duas décadas da ditadura militar implantada a 1º de abril de 1964, foi luz e arrimo no caminho de muita gente… E transcendeu os limites do Nordeste, do país e até do Continente. Despertou a simpatia de gente da Itália, da Alemanha e da França, por exemplo. Já em 1973, Geraldo e uma trupe de músicos, cantores e bailarinos da Ponte se apresentavam em Seiano, Vico Equense, na região de Nápoles, em Freiburg, na Floresta Negra, e na França, para encanto de gentes tão diversas, que ficava para sempre fascinada pela arte e pela fé, pelo canto, pelas coreografias e pelas liturgias da Nação do Divino. Vale lembrar que foi dessa experiência de fé, de vida, de arte e de luta, que surgiram figuras exponenciais no mundo da antropologia cultural, da política e das artes, como o antropólogo José Maria Tavares de Andrade, da Universidade Federal da Paraíba, hoje na AGEMTE/Universidade de Strasboug I, França… Elias Gomes, Prefeito do Cabo de Santo Agostinho e atual Prefeito de Jaboatão dos Guararapes… Fernando da Escada, vitralista… Genival da Ponte, santeiro… o poeta Sebastião Araújo, o Tão, da Academia Escadense de Letras… José Generino de Luna, músico que integrou a Banda de Pau e Corda… e o nacionalmente conhecido e estimado cantor e compositor, Nando Cordel.

Parceiros em várias letras e melodias, a serviço de uma Liturgia celebrada com cara e clima de Nordeste e de Brasil, Geraldo e eu percorremos boa parte do território nacional, a serviço da formação litúrgica e musical das Comunidades Eclesiais de Base, antecipando aquilo que haveria, um dia, de concretizar-se como Rede Popular de Liturgia, a Rede CELEBRA. Foi assim que estivemos, a convite do IPAR, em Belém… a convite da Pastoral Rural da diocese (Frei Rainério, Jandira Pedroso, Lourdinha), em Santarém, no Pará… a convite da Escola Catequética (Frei Adolfo Temme OFM), na região de Bacabal, no Maranhão… a convite da diocese (Dom Tomaz Balduíno OP), em Goiás…

Sem esquecer que, bem antes, ele, Geraldo, e uma equipe de jovens que alimentavam a mesma sensibilidade e interesse pela cultura popular, especialmente, pelo que hoje chamamos de “etnomúsica religiosa”, percorreram, do Maranhão à Bahia, os caminhos dos romeiros, dos penitentes, dos cantadores e repentistas, das rezadeiras e benzedeiras, dos “tiradores” de novenas e “sentinelas”, dos terreiros do Povo de Santo… gravando milhares de cantigas, rezas, benditos, incelenças, pontos etc. Um acervo que foi entregue ao setor competente da UFPE, no tempo de atuação de Ariano Suassuna, e que, infelizmente, se perdeu no labirinto dos arquivos, como lamenta o antropólogo José Maria Tavares.

Pioneiro da Igreja dos Pobres, pioneiro das Comunidades Eclesiais de Base, pioneiro de uma liturgia enraizada na cultura dos empobrecidos, lá pelos anos 70, andou pela França, a convite da Fraternidade Ecumênica de Taizé. Encantou-se com a experiência do canto da Liturgia das Horas, o Ofício Divino, os Salmos, cantados por todo o povo, e, a partir dessa vivência exemplar, haveria de ser, também, pioneiro do “Ofício Divino das Comunidades”.

Geraldo, sua Nação e sua arte mereceram a atenção de pesquisadores, cultores e promotores da inculturação litúrgica no Brasil, como Frei Chico de Araçuaí (Francisco van der Poel, OFM), que lhe deve preciosas inspirações e informações do seu “Dicionário da Religiosidade Popular”… Frei Joel Postma, que incluiu várias composições de Geraldo no Hinário Litúrgico da CNBB… Frei Joaquim Fonseca, que além de gravar as preciosidades do “Encontro de Penitência” (Paixão de Cristo da Ponte) e do Tríduo Pascal da Ponte dos Carvalhos (COMEP/Paulinas), escreveu um belo trabalho de pesquisa sobre “música ritual inculturada na experiência do padre Geraldo Leite e sua comunidade”, publicado pelas Paulinas no ano 2000, intitulado “O CANTO NOVO DA NAÇÃO DO DIVINO”. Mas há gente do além-mar produzindo um precioso documentário sobre sua vida e sua obra, a que, se Deus quiser, este ano ainda, teremos o prazer de assistir: Dom Giovanni Coppola, animador de uma comunidade cristã alternativa em Seiano, Vico Equense, NA, na Itália.

O legado pastoral, artístico e litúrgico que ele deixou o imortaliza na lembrança de todos os que hoje dele fazemos memória. E nos conforta a certeza, de que ele, de junto de Deus, continua nos acompanhando e inspirando, nessa nossa peregrinação, rumo a um novo tempo, um mundo novo, à “vida eterna”, que para acontecer além desta nossa história, precisa, primeiro, ser vivida e celebrada neste chão. É o que nos sugere a oração que o Senhor nos ensinou, quando reza: “Venha a nós o vosso Reino. Seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu”… e o “Servidor” ajudou a “Nação” a cantar, assim:

Recebe este canto do chão, que o céu e a terra estremece:
É o lamento do povo que sofre, e cada um de nós oferece…
O homem a terra cavou, do chão a semente brotou:
È a luta pela vida, que cada um de nós oferece…
Enxuga depressa teu pranto, e entoa ligeiro este canto:
Alegria de pobre dura pouco, mas cada um de nós oferece…
Nós damos tudo com amor e é a maneira de dar
Que vale bem mais que o presente: cada um ao Pai se oferece…

Morro da Conceição – Ponte dos Carvalhos – Escada, 19.04.12
à memória de meu amigo, irmão e mestre, que, na noite do domingo de Páscoa de 1967, com um olhar cheio de fulgurante brilho, de repente, surpreendido e deslumbrado pelas maravilhas do Céu, se despedia deste mundo, em meus braços.

Reginaldo Veloso, presbítero das CEBs
Da Rede CELEBRA
Da Equipe de Reflexão sobre Música Litúrgica da CNBB
Assistente do Movimento de Trabalhadores Cristãos – MTC, Recife
Consultor do Movimento de Adolescentes e Crianças – MAC
Teologia: mestrado, PUG – Roma 1962
História Eclesiástica: mestrado, PUG – Roma, 1965.

Deixe uma resposta