Muitos me perguntam porque acredito tanto nos direitos humanos universais, em seus princípios de igualdade. Acho lúcido responder, mais uma vez, a partir do ocorrido abaixo.
O portal G1 produziu a seguinte manchete: “Professora é espancada por travestis após ‘esbarrão’ dentro de Rodoviária” (http://glo.bo/1gBf3uY).
A verdade, o que de fato aconteceu, é eliminado já no título, quando o editor decidiu que os dois agressores, em vez de “agressores”, “pessoas” etc, seriam “travestis”.
Eles não são travestis? São. Mas antes de tudo são duas pessoas. Dois cidadãos. Se cometerem algum crime, serão cidadãos julgados de acordo com a lei — e de acordo com o dinheiro que eles têm, como qualquer cidadão num país desigual e capitalista como o nosso.
Podemos, a título de curiosidade, tentar vender a seguinte manchete: “Professora é espancada por héteros após ‘esbarrão’ dentro de Rodoviária”.
Ou ainda: “Professora é espancada por cristãos após ‘esbarrão’ dentro de Rodoviária”
Mais: “Professora é espancada por profissionais liberais após ‘esbarrão’ dentro de Rodoviária”
Não é preciso nem um único segundo dentro de uma faculdade de jornalismo para entender que esses títulos nunca seriam produzidos e, possivelmente, na maior parte dos casos, o ocorrido nem sequer viraria notícia. Esbarrões são comuns, a violência está dentro das pessoas que, reagindo, agem agressivamente o tempo todo nas grandes cidades. Todos veem acontecimentos como estes todos os dias, por todo o país.
Aí, claro, o pastor deputado Marco Feliciano, consciente da lacuna da educação em direitos humanos que temos, se aproveita dessa manchete e comenta em seu twitter: “Se fosse ao contrário a imprensa gritaria HOMOFOBIA e a culpa seria minha” (http://bit.ly/1gBfHZF).
Confunde, propositalmente, candidato ao senado que é e sempre hábil em aparecer diante de falsa polêmicas, o seu público (incluindo “prós” e “contras”).
A homofobia existe, mas não ocorre sempre que “algum” LGBT é morto. Se duas pessoas brigam por um esbarrão, a briga é pelo esbarrão. Nada mais. Assim como não há violência contra a mulher quando uma mulher morre de câncer ou em um acidente de carro.
No entanto, se há um componente de ódio por motivos de gênero ou qualquer outro vínculo identitário — nacionalidade, etnia, raça etc. — então há que se levar em conta a discriminação.
Utilizando toda a má fé que lhe é peculiar, Feliciano decide ampliar o que o G1 começou: os travestis devem saber que, a qualquer tempo, o que quer que façam, serão estigmatizados. Fazem sucesso? Travesti se deu bem na vida. Cometem alguma ilegalidade? Travesti errou. E por aí vai.
Nunca — em hipótese alguma — é resgatada a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ela está no princípio de nossa convivência e de nosso diálogo diário. Com ou sem consciência disso, sendo eu ou você o Feliciano ou não, toda vez que nos esquecemos de que cada cidadão é, antes de tudo, independente de suas marcas culturais ou identitárias, a priori igual a todos os demais, perdemos um pouco mais nossa humanidade e deixamos de lutar, diariamente, por esses ideais.
Os princípios não se aplicam automaticamente, precisam necessariamente de executores.
Marco Feliciano — um cidadão, como todos nós — tem uma posição única de liderança atualmente e a usa para fazer o que tantos, com a mesma habilidade, fizeram ao longo da História: nutrir o ódio diário pelas minorias e incentivar a violência e a segregação contra aqueles que não considera seus iguais.
Assim foi nos guetos alemães nos anos 30 e 40, assim é há mais de 60 anos com os palestinos, assim pode ser com qualquer um que decida que algum ser humano vale menos ou mais do que qualquer outro.
E eu humildemente acho que cabe a nós, da igrejinha dos direitos humanos, lutar contra isso sem rancor, para evitar o mesmo sentimento de ódio que tantos amam. Mas nunca, em hipótese alguma, esquecer nossa humanidade comum. (Comente em http://on.fb.me/1bfRxwa)
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Sabe o que eu acho engraçado?
Eu sou defensor de direitos humanos há 15 anos — num mundo como hoje, isso parece até profissão, tamanho nosso atraso — e abertamente, pra quem quiser, onde for, me posiciono a partir dos valores dos direitos humanos, da igualdade e do respeito pela dignidade humana. Eu não tenho vergonha, pelo contrário, tenho orgulho e quem quiser saber os motivos, pode perguntar, a qualquer tempo.
E o pessoal do “bandido bom é bandido morto”? Do “tá com dó leva pra casa”? Onde estão?
A Rachel Sheherazade e qualquer outra figura reacionária, pública ou não, simplesmente não consegue sustentar 5 minutos de debate — e é por isso que simplesmente não aparecem. Escondem-se onde não há como ter debate.
Estão escondidos na TV, no Facebook ou nos sistemas de comentários dos portais de notícias. Por falta de argumentos, se aglomeram em seus nichos, sem diálogo. Quando é para discutir IDEIAS, publicamente, somem. Nunca vi alguém defender, em qualquer lugar que já estive — encontros, mesa de bar, onde for — uma posição tão absurda como a de rebaixar um ser humano como essa senhora o fez.
Sabe qual o nome disso, pra mim? Covardia. Pura covardia.
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Tô lá no Mundial — um dos supermercados mais baratos do Rio de Janeiro –, o da Saens Peña, quando um homem, em seus 40 anos, uma camisa tipo de academia escrito “Tai chi chuan”, começa a reclamar com o menino que estava recolhendo os carrinhos.
“Que saco! Fica atrapalhando aqui! Que saco!” — disse o homem.
O menino, cabeça levantada, argumenta, depois de muita reclamação: “Atrapalhando está o senhor que não me deixa trabalhar. Se eu não tirar os carrinhos, aí é que vai atrapalhar todo mundo”.
Mais dois intermináveis minutos de reclamação, quando o homem começa (ignorando ainda por cima o argumento lógico do menino): “Não tem que tirar carrinho agora! Tira depois que fechar, oras! Fica aí até 2, 3 da manhã tirando carrinho, mas não me atrapalha!”
Depois de duas tentativas de humilhar o menino — coisas como “o cliente tem sempre razão, você tá errado!” –, eu, do lado dos dois, não poderia me segurar. Em tom alto e firme (tal como ele com o menino), me dirigi diretamente ao homem:
“Atrapalhando está o senhor, mesmo! Não tá vendo que ele tá trabalhando? Que se ele não tirar o carrinho ninguém passa? E outra coisa, você não vai ficar humilhando ele nem a pau. Ele é igualzinho ao senhor, dois seres humanos, a diferença é que ele tá trabalhando, e o senhor reclamando.”
Silêncio por alguns segundos, inclusive da enorme plateia na fila e de alguns curiosos.
Quer dizer: humilhar alguém numa posição supostamente inferior, tranquilo. Falar de igual pra igual, já complica.
Ele responde pra mim: “Eu não tô falando com você, tô falando com ele”.
Eu respondo: “Antes de humilhar o menino, vai ter que me humilhar primeiro!”
No que o homem lindamente responde: “Não tô humilhando ninguém, você é que tá rodando a baiana aí, vai procurar um terreiro!”
Com um argumento tão genial, chegava ao fim tão brilhante debate público.
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OBS. Faltou eu ter efetivado a sugestão da minha esposa e perguntar pra ele qual era o problema dele com os terreiros e com as baianas, mas fica para uma próxima…
Jornalista, 41, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis em https://amzn.to/3ce8Y6h). Acesse o currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0384762289295308.
SENSACIONAL!!! Obrigada por contribuir na luta contra a homofobia!