O "monstro" da hipocrisia está à solta

O que eu, você, João Hélio e Ezequiel Toledo Lima temos em comum? Uma reflexão sobre a criminalização da infância e adolescência.
Penso numa sociedade contemporânea idealizada. Nela, os monstros (bem como os deuses) ficaram na Idade Média, ou em outros tempos em que “chuva”, por exemplo, era um sinal dos céus. Hoje sabemos que “chuva” é um fenômeno físico, que muda inclusive com a ação do homem. E que a mesma chuva forte que cai na Finlândia e em São Paulo tem consequências diferentes, por conta do que chamamos de política.
A política é uma forma de ação organizada dos homens, que utilizam suas técnicas e ensinamentos para desenvolver projetos coletivos. A política muda muito de acordo com a cultura de cada país, de cada povo, de cada etnia, de cada momento histórico. A cultura seria, hoje, um dos principais locais de embate da sociedade pós moderna, esta sociedade em que a informação ganha tanta importância.
E por que eu digo isso? Porque o “monstro” que costumamos inventar é uma enganação. Uma farsa. Hitler, por exemplo, não era um monstro. Pelo contrário: entendia muito bem a sociedade em que vivia. Estava amplamente inserido nela. Levado ao poder em 1933, sustentou mais de 90% de apoio popular em muitos momentos e escondeu, por meio de seu aparato midiático, todas as barbaridades que cometeu. Se não o tivesse feito desta forma, teria sido denunciado publicamente e cairia muito rapidamente.
Mas não. Hitler usou todo o seu poder político para se fazer no poder e sustentar uma rede de genocídio e escravidão inéditos numa Europa que se julgava o berço da civilização, da cultura. É uma das principais vergonhas dos europeus, até hoje: como é possível haver escravidão numa civilização “avançada” do século XX? E como foi possível que o povo indiano, a partir da ação não-violenta e contra um dos impérios mais bárbaros que existiu (o inglês), conseguisse a independência de uma imensa nação? Isso é possível graças à política.
A função dos “monstros”
A saída do “monstro” é fácil, está aí a chave para entendermos o debate sobre os assassinos do garoto João Hélio. Falar em “bem” e “mal” é, afinal, a saída da novela das oito, que assim pode criar esquemas de fácil entendimento para que as pessoas, que atualmente sofrem de uma espécie de “normopatia”, possam se adequar a esquemas culturais e, desta forma, criar uma identidade atualmente em falta no “mercado”. É, afinal, o que fazemos: ir à escola, não jogar papel na rua, entrar numa universidade, casar, ter filhos, arranjar um emprego, desejar a riqueza, se aposentar. Tudo muito “normal”. E cada vez mais normal, até o ponto em que a diferença é suprimida. Que o outro é completamente esquecido.
O “monstro”, assassino de João Hélio, é o outro esquecido. Produto de NOSSA sociedade, desta que todos nós fazemos parte. Estão todos no mesmo barco: na sociedade. Não adianta eu ser um bom samaritano, porque na sociedade não há lugar especial, daqueles que se pode comprar na igreja. Pelo menos não há tantos assim. Os problemas da sociedade, se profundos, um dia acabam chegando a você de uma forma ou de outra.
O “monstro” em questão, por exemplo, é um jovem, pobre, negro, mora no Rio de Janeiro, não teve educação adequada, sua família é totalmente desestruturada. Tudo isso é “normal” para a sociedade, não é o tipo de coisa que gera passeatas na Zona Sul do Rio. Agora, esta mesma sociedade – aquela que não se importa com a educação pública, universal e de qualidade, pois já decidiu pela privatização do ensino – deseja ver esta mesma pessoa, da NOSSA sociedade, expulsa, execrada, “deletada” da nossa memória social.
É o que uma determinada classe média faz, por exemplo, com os gays ou com os negros, apenas com a restrição de não poder fazê-lo em público (porque é politicamente incorreto). É o ponto em comum entre Hitler e um conservador contemporâneo: extinguir a “raça” de gays, ou a “raça” de negros. Cada sociedade injusta escolhe o outro mais cômodo.
Dois pesos, duas medidas
É útil, no momento em que se criam certas figuras públicas, reforçar a identidade do jovem assassino de João Hélio: é um “monstro”, alguém que “sabia o que estava fazendo” e mesmo assim o fez, e com uma confiança tal que até “judiou” de João Hélio. Aqui, perceba, a identidade dele é reforçada. Mas nem sempre é assim.
Os jovens e as crianças, via de regra, são tidos como membros em formação: em rápido processo de aprendizado, retêm com grande presteza o que lhes é passado pelos adultos (pais, professores, celebridades). Olham, observam, interpretam e copiam.
Isso é sempre verdade, seja qual for o psicólogo que você consulte. A não ser, claro, que você queira transformar um determinado jovem em um monstro. Aí o discurso muda. “Este garoto nasceu com o diabo no corpo”, diriam alguns. Talvez seja interessante fazer uma reflexão sobre isso.
Destaquei por conta do debate da maioridade penal, ainda em 2007, que raramente são divulgadas, nestes casos, estatísticas sobre quantas crianças estão fora das escolas por falta de vagas ou sem moradia adequada. Não tentam esclarecer como funciona uma escola ou como os professores se relacionam com a comunidade ou com os pais. Nada disso é primeira página. Relações muito mais absurdas, como a idade de um adolescente infrator, são destaque nas primeiras páginas. [1]
A nova estratégia
Há, neste momento, uma diferença importante entre o que ocorreu em 2007, naquele “debate” público, e agora, com a lembrança do triste caso do garoto João Hélio. À época, importantes telejornais registravam que “existem seis propostas para reduzir a maioridade penal que entraram em pauta nesta semana no Congresso…”. Este tipo de informação conduzia, de certa forma, uma campanha pela redução da maioridade penal, colocando este aspecto como central para a diminuição da violência – e quem não deseja que a violência seja reduzida?
As vozes de organizações da sociedade civil que tratam do tema da infância e da adolescência raramente eram ouvidas, conforme denunciamos então.
Agora, três anos depois, o caso está sendo conduzido com foco na construção voluntária da figura do “monstro”, como destaquei. Não que não houvesse este discurso antes. Contudo, alguém que repete hoje informação da mídia, sem ao menos pensar sobre o tema, basicamente idealiza a crueldade dos assassinos de João Hélio. A sacralização da maldade é um dos elementos centrais da “argumentação” pró-demonização dos infratores. E para isto está trabalhando a mídia: descreve minuciosamente o ocorrido.
E o problema da concentração de poder nos meios de comunicação também é central, conforme descrevi na mesma entrevista citada, de 2007. Reproduzo: “(…) não há controle social, não há pacto social, não há diversidade cultural. Se houvesse, não haveria problema em um grupo fazer pressão pela redução da maioridade. Teríamos outros seis, sete grupos, com seis ou sete outras propostas diferentes. Em algum momento, chegaríamos a um consenso. Avançaríamos, apesar das diferenças. Isto não acontece em um país onde, em centenas de anos, todas as grandes mudanças políticas se deram de cima para baixo. Felizmente, a meu ver, essa cultura sofre uma forte resistência, uma forte contracultura.”
Relembrando, ainda, que o mínimo de investigação sobre a violência na juventude – estudos de casos internacionais, literatura sobre o tema etc – nos faz admitir que estamos falhando na formação da nova geração. O modelo que adotamos, cujo principal traço é o consumo, já é por si só uma violência brutal e cotidiana contra os jovens. É um erro fatal aceitar a violência simbólica como menor que a violência física. Rubem Fonseca publicou um conto definitivo sobre o tema denominado “O Cobrador” (1979). Não há sociedade possível com esse modelo de consumo e concentração de riquezas.
O que fazer, então?
Afirmei à época: “Temos que tratar desse importante e complexo tema em partes. Por exemplo, analisar a situação das crianças de 0 a 5 anos. Como estão sendo tratadas? Há hospitais e creches suficientes? Há apoio do governo para pais que tenham dificuldade em criar seus filhos? Estamos reprovados já nesta questão”. E há, ainda, muitos outros temas – as tais medidas socioeducativas, casas de recuperação, educação especial, exploração infantil, mídia dirigida a crianças, e por aí vai.
Ainda: “São muitos os temas. Perceba que, já nos primeiros passos, falhamos. Em todos os outros, há falhas graves, como o pouco investimento de recursos (não só financeiros). Pense sobre todas essas questões e depois perceba a inutilidade que é incluir na pauta a questão da maioridade. É um foco no problema que é trágico, culturalmente enraizado, incrivelmente equivocado.”
Certamente, o sensacionalismo não ajuda em nada na mobilização popular, qualquer que seja esta, na busca por soluções.
Vamos falar de casos trágicos? Temos dezenas, centenas. Temos as redes de comunicação popular no Rio de Janeiro, como a Renajorp e a Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência, denunciando semanalmente casos de desrespeito aos direitos humanos. Um jovem vai à padaria e é morto com uma bala nas costas, a origem comprovada é da Polícia Militar. A cada policial morto no Rio em conflito, 41 civis são assassinados, indica um estudo de 2007. Um laudo da OAB indica que 19 pessoas foram mortas no Complexo do Alemão sem qualquer indício de confronto, no mesmo ano. E todos os meses, todas as semanas, às vezes por dias consecutivos, temos casos como estes.
E o que pedem as famílias, quase sempre pobres, inocentes, civis? O que desejam? Vingança? Redução da maioridade penal? Não, pedem justiça.
E a justiça, nesta concepção que se costuma ter da palavra, depende de uma ampla reforma, uma mudança radical na forma como os recursos são gastos. Perceba que o processo pelo qual passava o Rio de Janeiro foi aprofundado: uma série de eventos esportivos se aproxima; os recursos serão priorizados – como destacado amplamente na própria mídia – apenas em áreas próximas a todo e qualquer complexo esportivo.
Não consigo visualizar a inserção de recursos em bairros como Guadalupe e Santa Cruz, aqui no Rio de Janeiro, caso Guadalupe e Santa Cruz não estejam no caminho da Copa do Mundo ou das Olimpíadas. Este modelo, como destaquei, está sendo aprofundado e assim será até, pelo menos, 2016. E não entremos na denúncia das remoções de moradores de comunidades populares, por conta dos mesmos eventos.
A identidade e o coletivo em debate
Lembro que o compositor MV Bill e o sociólogo Luiz Eduardo Soares argumentavam que uma criança comete atos de violência como quem dá um grito para uma sociedade, que a ignora sistematicamente. Notavelmente, este é um tipo de abordagem que merecia um pouco mais de atenção. É um contraponto, que possui distintas discussões embutidas, incluindo opiniões divergentes dentro de uma mesma vertente.
Uma das faces da pós-modernidade, que alguns sociólogos denominaram neoliberalismo cultural, é exatamente a individualização (ou, pior, a sacralização e naturalização) de uma situação que é social.
Há, no caso dos “monstros”, a tentativa de um encerramento da História como processo, como condutora dos acontecimentos atuais. Torna-se algo quase que pessoal: um criminoso matou meu filho e deve morrer por isso. Como a legislação não permite, ele deve ir para a cadeia e apodrecer por lá.
Conforme destacado, é uma saída fácil, até mesmo confortante, porém pouco produtiva. A política do olho por olho já se demonstrou um tiro no escuro e, por conta disso, praticamente todos os países do planeta decretaram seu fim, inclusive por meio de suas constituições. Há focos de resistência, por exemplo, em países como Estados Unidos, Irã, Afeganistão, China. Mesmo aí, a sociedade civil e boa parte da comunidade internacional frequentemente se levantam contra tais políticas.
O caso Ezequiel
O debate atual, ao meu ver falso, se dá em torno do fim que um dos assassinos de João Hélio – Ezequiel Toledo Lima, atualmente com 19 anos e que não possuía maioridade penal à época – deveria ter. Proteção policial? Assistência psiquiátrica? Prisão?
Na prática, é no mínimo curioso que pessoas que nunca se debruçaram sobre o tema façam artigos emocionados lamentando que o tal “monstro” esteja “solto” – certamente, concordo eu, sem condições de ficar sem amparo e proteção de alguma família. Portanto, proteção legal.
São pessoas que, sem medo de errar, adotam o seguinte procedimento:
1. Vivem de falar mal de “ONGs” e dos “direitos humanos” (às vezes usando artigo definido, “o direitos humanos…”), como se estes fossem ameaças a uma sociedade que deveria ser regida por “homens de bem”;
2. Nestes momentos, em que um jovem infrator “menor” suscita tal discussão, passam a ser instantaneamente “especialistas” e “ativistas” pró-direitos da criança e do adolescente, exigindo que os direitos de determinadas crianças sejam plenamente respeitados, a despeito de outras determinadas crianças que, por sua origem, são relegadas ao esquecimento.
3. Como “solução” brilhante para os graves problemas de nossa sociedade – cujos resultados são distintos, entre eles o brutal crime cometido por Ezequiel –, pedem a redução da maioridade para 16 e até 14 anos, “fim das infinitas possibilidades de progressão da pena” e “implantação de trabalhos forçados (sic) nas cadeias” (citando um leitor do jornal O Globo).
Vale relembrar o início desta reflexão: “A política é uma forma de ação organizada dos homens, que utilizam suas técnicas e ensinamentos para levar à frente projetos coletivos. A política muda muito de acordo com a cultura de cada país, de cada povo, de cada etnia, de cada momento histórico.”
É uma grande conquista da nossa sociedade, em tal estágio cultural no qual nos encontramos, a civilidade e o fim da tortura e do desrespeito aos direitos humanos. Àqueles que, angustiados com sua própria inércia diante da política, fica a dica, a partir do caso suscitado por Ezequiel Toledo Lima, de buscar no futuro uma saída coletiva e uma participação maior no conjunto da sociedade.
A ignorância e a estupidez constatadas em tempos pós-modernos pode ser verificada, em primeiro lugar, na forma despolitizada com que os cidadãos (des)tratam a democracia, acreditando que um voto a cada quatro anos, a busca individual da riqueza e um artigo de vez em quando no jornal resolvem o problema.
E, como uma das consequências dessa dinâmica, a violência da desigualdade social retorna de modo difuso para toda a sociedade – foi com o João Hélio, mas poderia ter sido com a minha mãe ou com a minha irmã. Somos todos parte de uma mesma sociedade, com rumos determinados pela ação coletiva. Às vezes, lamentavelmente, contando com toda a força de nossa inércia.
Se alguém acha que mudaremos nossa condição social com leis que criminalizam crianças e adolescentes e cercam com grades todos os infratores de nossa sociedade, trate de se levantar agora e colaborar de modo realmente produtivo. Do contrário, cá entre nós, qualquer palavra será vazia e em vão.
(*) Gustavo Barreto, jornalista, radialista e produtor cultural, coordena a Revista Consciência.Net.
[1] Vide entrevista ao Ibase, a Jamile Chequer, em http://www.novae.inf.br/site/modules.php?name=Conteudo&pid=547

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