Morituri non te Salutant!
Carlos Alberto Lungarzo
Prof. R. UNICAMP
O PL 478, ressuscitado em 2010 após de ter sido “abortado” em 2007, teve um substitutivo em 2010, onde se adiciona a frase: “Ressalvados (sic!) o disposto no Art. 128 do Código Penal Brasileiro”. (O “s” está no original.)
Alguns propugnadores deste projeto dizem que o substitutivo conserva os direitos reconhecidos pelo CP (aborto legal em caso de estupro e risco de vida). Uma leitura mesmo rápida dos 14 artigos mostra que vários deles são contraditórios com o art. 128 do CP, supostamente “ressalvado”. Apenas um exemplo. O art. 4º diz: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar ao nascituro, com absoluta prioridade, o direito à vida… etc.” (Grifo meu).
“Prioridade” quer dizer “primeiro lugar em importância”, como sabem os operadores jurídicos, que adoram o latim. Então as outras opções são secundárias. Assim sendo, a vida da portadora do embrião é secundária e o trauma de ter sido estuprada também. Ora, quando há contradição ou ambiguidade decide o juiz. Se a portadora não encontra, por acaso, um dos juízes humanitários que perfazem menos do 7% da magistratura brasileira, o art. 128 do CP passará a ser letra morta.
Vamos ver algumas das consequências que terá esta lei:
- Ainda hoje, é infrequente que uma grávida por estupro encontre um médico público que faça o aborto permitido no art. 128 do CP, pois teme ser perseguido por fanáticos ou condenado por um juiz que aduza falta de provas do estupro. Ora, com a bolsa estupro, o médico continuará desprotegido e poderá lavar as mãos: “A senhora tem direito à bolsa-estupro”.
- Hoje, uma grávida com um câncer curável, pode fazer quimioterapia. É verdade que até que o juiz decida que o aborto é legal, a mulher já morreu. Mas, com a lei será ainda pior. Os médicos terão medo de ser acusados de crime, pois o art. 4º afirma a absoluta prioridade do embrião.
- Pelo art. 11º, par. 2, “É vedado o emprego de métodos para diagnóstico pré-natal que causem à mãe ou ao nascituro, riscos desproporcionais ou desnecessários”. Como os inventores da lei não acreditam na ciência, o juiz decidirá se há ou não risco. Se ele decidir que há, o diagnóstico não poderá ser feito, aumentando inclusive o risco no parto para ambos.
- A pesquisa de células tronco será fundamental para no futuro curar centenas de doenças físicas e mentais. Ora, como o embrião portador da célula morrerá, os biólogos serão tratados como criminosos. (art. 2º e 3º)
- Todos conhecem alguém que teve um aborto involuntário. Mas veja o art. 5º: “Nenhum nascituro será objeto de qualquer forma
de negligência …, sendo punido na forma da lei, qualquer atentado, por ação ou omissão…” (Grifos meus). Você pode pensar: “Para punir-me, devem provar que eu cometi uma negligência”. Isso seria verdade num autêntico estado de direito. Em instituições dirigidas por fanáticos inquisidores, o que vale é a crença do juiz que, em 90% dos casos, será contrário à mulher.
- O pár. único do art. 2º disse que os embriões in vitro, mesmo não implantados, também são nascituros. Um médico que manipule um embrião fecundado pode, por erro ou acaso, deixar “morrer” o nascituro. Aí ele será punido por aborto.
- As leis penais castigam não apenas os crimes, mas as tentativas de crime. Então, se uma mulher tomou um remédio para abortar, mesmo que não dê certo e o filho nasça normalmente, será culpável de tentativa. Se alguém a denuncia, pode ser julgada e condenada.
- O acórdão do STF que permite abortar um feto sem cérebro será inoperante. Pelo art. 4º a vida do nascituro tem prioridade mesmo sobre seu cérebro. (sic!)
- Se a mulher estuprada decide aceitar não abortar, ela tem direito (teórico) à bolsa estupro, mas (art. 13-II-1º), só se o estuprador não puder sustentar o filho, pois ele é tratado como pai legítimo. A vítima do estupro ficará obrigada a frequentar o sujeito que a violentou e a discutir com ele, por exemplo, o valor da pensão.
10. A mulher estuprada pobre pode ser coagida moralmente pelos “nascituristas”, principalmente os religiosos, para não abortar. Ela terá sua saúde mental prejudicada, pois já o estupro produz numerosos traumas, e o dar a luz ao fruto do estupro, em grande quantidade de casos, rigorosamente documentados internacionalmente, aumenta esses traumas. E ainda sofrerá mais pressão psicológica.
11. Todo crime deve ser tratado humanamente, mas isso não significa aplaudir o criminoso. O estuprador pode ser eventualmente perdoado, mas não premiado! A bolsa estupro é um prêmio ao estuprador e uma humilhação para a vítima.
12. Que acontece quando a vítima é uma criança, como aconteceu em Recife em 2009, e o bispo excomungou os médicos? Deve morrer por causa da gravidez e, se sobrevive, tornar-se mãe criança? O Estatuto não abre nenhuma exceção para este caso.
13. Suponha que a mãe aceita a humilhação de BOLSA ESTUPRO. Quem disse que vai ser paga? Numa sociedade onde a corrupção é rompante, há centenas de truques para não pagar a bolsa, pois é quase impossível provar um estupro. Não esqueçamos que no Brasil milhares enriquecem vendendo milagres, lucrando com a saúde pública e os bancos de sangue. Os generosos “nasciturófilos” estão mais interessados em ganhar dinheiro do que em doá-lo.