Honduras, dois anos depois do golpe de Estado

Em 28 de junho de 2009, Yolanda Chavarria, uma das Avós da Resistência, acordou às 5h e, como de costume, ligou o rádio. O fato de todas as estações estarem fora do ar lhe fez lembrar imediatamente do golpe de Estado de 1963 que expulsou o então presidente Ramon Villeda Morales do poder. “Há um golpe de Estado”, pensou Yolanda, “de novo”.
Não foi só o corte de comunicação via rádio que lhe fez chegar a essa conclusão. Desde que o presidente Manuel “Mel” Zelaya começara a campanha da 4ª Urna – que pretendia consultar a população a respeito da convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte – havia uma forte campanha midiática de ataque contra ele. Não apenas isso, o próprio Congresso Nacional, liderado por Roberto Micheletti, estava contra o presidente e havia desautorizado a consulta.
No dia 25 de junho, chegou à base aérea hondurenha o avião da Venezuela que trazia as urnas do plebiscito. Através do extinto canal 8 e do jornal impresso Poder Cidadão, os únicos meios de comunicação que apoiavam o ex-mandatário, Zelaya convocou a população a ir buscá-las. Contratou 25 ônibus e foi no primeiro deles, pendurado na porta, agitando o chapéu de vaqueiro. Ao chegar ao local os soldados haviam bloqueado a entrada. “Eu sou o presidente da república e ordeno que abram a porta”, disse Zelaya. Três dias depois, sofreu um golpe civil-militar e foi expulso do país.
Aquele episódio foi um êxito simbólico, nos deu uma sensação de poder, mas o poder real é outra coisa”, lembra Edgardo Cruz*, que na época trabalhava numa empresa de publicidade que, segundo ele, também funcionava como um centro de lobby político. “Sou testemunha de que o diretor da empresa disse a Mel: Vão te dar um golpe de Estado”. Em 2007, numa dessas reuniões metade de trabalho publicitário, metade de lobby, Edgardo presenciou o seguinte diálogo entre Zelaya e Carlos Flores Facussé, ex-presidente do mesmo partido que Zelaya, o Liberal, e atual empresário do ramo automobilístico: “Olha, Mel, você já não está em campanha política. Tire esse chapéu e desça do cavalo”, disse Facussé, referindo-se a Cafecito, cavalo de Zelaya.
“Sou de Olancho”, respondeu Zelaya, “como quer que eu venha? Um olanchano anda de chapéu e de cavalo. Além disso, esse cavalo faz pelas relações exteriores de Honduras mais do que qualquer um dos meus embaixadores”.
“Comporte-se, senhor presidente”, rebateu Facussé. “Quer me ensinar a governar?”, respondeu Zelaya.
Rumo ao “poder”
Afinal, que poder tinha Zelaya quando estava no comando da presidência de Honduras, frente aos empresários e à embaixada estadunidense? No último dia 28 de junho completaram-se 2 anos desde que a população acordou com a rádio fora do ar e com a televisão transmitindo somente desenhos animados e partidas de futebol – em que a seleção hondurenha era triunfante. No marco dos dois anos do golpe de Estado, a população em resistência, após intensos debates sobre qual a melhor forma de chegar ao “poder”, decidiu criar uma Frente Ampla de Resistência Popular (Farp), durante a última assembleia nacional “Da resistência ao Poder”, realizada em 26 de junho.
A Frente Ampla foi considerada uma alternativa ao bipartidarismo vigente no país e possibilitará a participação eleitoral em 2013. Durante o discurso de abertura da Assembleia, defendeu que este deve ser um instrumento político que “combata a oligarquia; que se oponha à exploração do homem pelo homem e que não deixe que uma elite sequestre o poder do Estado para manter seus privilégios”.
No entanto, para criar a Frente Ampla, a maioria dos 1.500 delegados teve que revogar os acordos da assembleia anterior, realizada em fevereiro, que havia decidido pela não criação da Frente Ampla e não participação em processos eleitorais até que houvesse “condições necessárias”.
Para Rafael Alegria, dirigente da Via Campesina, a conjuntura mudou com o retorno de Zelaya ao país, alcançado após o acordo de reconciliação nacional assinado por ele e pelo atual presidente Porfírio Lobo Sosa, no marco do processo de mediação promovido pelos presidentes venezuelano Hugo Chavez e colombiano Juan Manuel Santos. “Agora, devemos sim ir ao próximo processo eleitoral para disputar o poder com a oligarquia, que governa esse país nos 115 anos de vida republicana”, disse.
Já para Carlos H. Reyes, economista e dirigente sindical, criar uma Frente Ampla pode ser perigoso na medida em que a Frente Nacional de Resistência Popular pode começar a ter métodos de partidos políticos tradicionais, que separam a luta política da luta social. “Um dos costumes dos hondurenhos é que o operário vai votar no seu patrão, o camponês no latifundiário, o pequeno comerciante no capitalista. Isso se deve a um fenômeno de confusão ideológica, que tem sua base no fato de que se tem dividido a luta social da luta política”, justificou.
Outra preocupação de Reyes é sobre o real poder que a Frente Ampla terá, caso ganhe as eleições em 2013. “Aprendemos duas coisas sobre a institucionalidade hondurenha com esse golpe de Estado: a primeira é que o poder está fora do Estado e a segunda é que o povo carece de poder. Manuel Zelaya, por exemplo, não conseguiu nem fazer reformas mínimas, a oligarquia não deixou”.
De fato, o ingresso de Honduras na Alba e no Petrocaribe, o aumento do salário mínimo em 65% e a unidade com os países do sul não agradaram a oligarquia local – que tem representação no próprio partido de Zelaya – nem a embaixada americana. “E veja que Mel não reverteu o modelo neoliberal em curso, somente deteve algumas coisas”, lembra Carlos Reyes.
No mesmo dia do aniversário do golpe, em 28 de junho de 2011, Zelaya foi expulso do Partido Liberal, acusado de “promover o socialismo no país” através da criação da Farp. Quando soube da notícia, o ex-presidente estava em San Pedro Sula, cidade considerada a capital econômica do país, no evento de comemoração dos dois anos de resistência frente ao golpe. “São os mesmos que apoiaram o golpe e que sequestraram o Partido Liberal. Não representam ninguém, não têm legitimidade e são eles que serão expulsos pelo povo, através do voto”, disse Zelaya à multidão.
A expulsão de Zelaya não atrapalhou seus planos de unir liberais e resistência na Frente Ampla, sob o modelo que chama de liberalismo pró-socialista. Segundo ele, este modelo consiste na junção das duas filosofias, nas partes em que coincidem, “a busca do direito e da justiça para o bem comum e a liberdade a que todos nós aspiramos”. Os principais aliados de Zelaya do Partido Liberal seguirão com ele para a Farp.
Dois anos de resistência popular


Como Yolanda era delegada da 4ª Urna, seguiu com sua urna até o colégio onde ia acontecer o plebiscito. “Então, fui com a minha urna até a casa presidencial. Ali estavam as pistolas. Protestamos e fizemos a 4ª Urna. Nos atiraram bombas, mas não eram tão fortes como agora. No dia seguinte, formamos a frente de resistência ao golpe de Estado”, lembrou a avó da resistência.
A frente, que depois se chamaria Frente Nacional de Resistência Popular (FNRP), se manteve meses ininterruptos nas ruas e dois anos em resistência, em um país que foi sempre considerado “pacífico” e submisso aos Estados Unidos. Nos anos 1980, por exemplo, Honduras era base dos Contras – exército contra-revolucionário apoiado pelos EUA, que pretendia minar a revolução sandinista na Nicarágua.
Para Carlos Reyes, um processo como este era antes impensável em Honduras. “Em essência, me parece que o povo entendeu que está imerso em um processo de luta de classes. Isso antes não se entendia”, analisou Reyes. “Porém, é claro que não vamos passar para um processo de construção de poder desde as bases de uma hora pra outra. Ainda nos perdemos nos ambientes de tradicionalismo político”, ponderou o dirigente.
Nesses dois anos de luta, a FNRP realizou grandes marchas, greves nacionais, barricadas e plantões em frente à embaixada brasileira, quando o governo de Lula deu abrigo a Zelaya. A repressão, porém, também foi em grande medida: a resistência contabilizou mais de 300 mortos, segundo relatórios de organizações de direitos humanos. Destes, cerca de 45 são da comunidade LGTB, 40 trabalhadores rurais da região do Baixo Aguán e 13 jornalistas. Praticamente todos os casos estão impunes.
A reconciliação
Perto de completar os dois anos em que Honduras amanheceu sem seu presidente eleito nas urnas, a resistência hondurenha conseguiu concretizar sua principal demanda: a volta de Manuel Zelaya ao país. O coordenador-geral da FNRP foi recebido por milhares no aeroporto de Toncontin, em Tegucigalpa, no dia 28 de maio. O acordo que permitiu o seu retorno também previa a volta de todos os exilados “em condições de segurança e liberdade, com reconhecimento pleno de seus direitos segundo a Constituição e as leis de Honduras”.
Porém a aparente “reconciliação” entre Zelaya e Porfírio Lobo ficou estremecida com a prisão domiciliar de Enrique Flores Lanza, ministro do governo Zelaya e braço direito do ex-presidente. Durante sua primeira manifestação de rua, Zelaya acusou o atual presidente de descumprir o acordo de Cartagena e pediu que a população analisasse se Porfírio Lobo “agiu de boa fé”. Flores Lanza voltou do exílio junto com Zelaya e, um mês depois, foi acusado de corrupção pela justiça.
Outro ônus do acordo de reconciliação foi a volta de Honduras à Organização dos Estados Americanos (OEA) imediatamente após o retorno de Zelaya ao país. A nação centro-americana foi expulsa deste organismo internacional, por unanimidade, após o golpe. Para Berta Cáceres, coordenadora do Conselho Cívico de Organizações Populares e Indígenas de Honduras, esse acordo de reconciliação e a reintegração de Honduras à OEA permitem a impunidade do golpe de Estado. O exemplo mais claro disso, é que o comandante militar que executou o golpe, Romeo Vásquez Velásquez, é hoje presidente da empresa pública de telecomunicação de Honduras, a Hondutel.
Os países membros da OEA deveriam ter considerado as graves violações de direitos humanos e a falta de democracia em Honduras. Agora, o governo continuador do golpe terá acesso a mais recursos para aprofundar a privatização, o neoliberalismo e a repressão”, analisou a dirigente indígena.
* Nome fictício

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