Fim do show; hora do bode expiatório

Terminado o show de operações militares no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, após o qual, miraculosamente, todos os ataques terroristas cessaram (suspeito, não?), e o governo, como sempre, teve sua imagem fortalecida, “especialistas” começam a procurar razões fundamentais para explicar o problema da violência na cidade, principalmente no que tange ao tráfico de drogas.

Como já é de praxe, a idéia de que os consumidores de drogas estão entre os maiores culpados por essa situação volta à tona, sendo, inclusive, tema da capa da primeira edição de dezembro da revista Isto É, “Consumo: a parte mais difícil do combate às drogas”. Com um ar melodramático, a matéria é assim iniciada: “Enquanto emissoras de tevê exibiam na quarta-feira 1º as toneladas de drogas apreendidas no Complexo do Alemão, na zona norte do Rio de Janeiro, o escritor J., 57 anos, assistia às imagens envolto em fumaça. Sentado na poltrona de seu confortável apartamento no Leblon, na zona sul, ele fumava mais um dos cigarros de maconha que volta e meia costuma acender. “Uso desde os 19 anos”, conta. Apesar da distância que o separa das favelas de onde a polícia expulsou os traficantes, J., assim como outros usuários, é apontado pelas autoridades como um dos financiadores da gigantesca engrenagem das facções criminosas”.

Certo, não há dúvidas de que os usuários de drogas financiam o crime indiretamente. É uma questão lógica e não há o que discutir quanto a isso. No entanto, penso ser válido tecer alguns comentários que poderiam jogar um pouco mais de luz sobre essa questão, que é mais complexa do que prevêem mantras simplistas como “sem consumidores, não há tráfico”, etc. A isso, seguirão ainda algumas reflexões relacionadas ao uso de drogas, que podem acrescentar algo mais à discussão.

1 Quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha? A pergunta pode ser aplicada ao uso e comercialização mundial de drogas. Só que, nesse caso, não há dúvidas de que a utilização de entorpecentes, em termos individuais e coletivos, precedeu em muito a comercialização em “escala industrial”, seja por razões culturais, religiosas ou medicinais. O problema é que, ao longo da história, algumas drogas – como o álcool – foram inseridas e regulamentadas no meio social, não obstante sua nocividade, enquanto outras, como a maconha, muito em função de preconceitos, foram proibidas. Como se sabe, a erva era muito usada por trabalhadores mexicanos nos EUA, que a usavam para relaxar em meio às estressantes e árduas tarefas a que eram submetidos e, no Brasil, por escravos. Por isso, em terras tupiniquins, era associada a rituais religiosos africanos, o que não era bem visto pela alta sociedade (católica) brasileira.

2 Da mesma forma que, quando a “chapa esquenta” no Rio de Janeiro, sobra mesmo é para os negros pobres favelados, assumem também o papel de bode expiatório os consumidores de drogas. Não que não tenham culpa no cartório. Sim, de fato têm. Mas me parece extremamente conveniente ao governo culpar pobres e drogados por um problema que, para início de conversa, diz respeito a uma das mais rentáveis atividades em todo o mundo, que é o tráfico de drogas. Trata-se de uma questão que envolve, por exemplo, o controle de fronteiras, portos e aeroportos (por onde chegam armas e drogas) e, por conseguinte, envolvem autoridades de todos os escalões, e poderosos políticos e empresários. Bem, é mais fácil culpar os maconheiros e os favelados, não?

3 Segurança ou saúde pública? Já era hora de o governo tratar a questão das drogas como algo da ordem de saúde pública e não como um problema de segurança nacional. Por que, após anos de combates sangrentos nos morros cariocas que apenas geraram mais guerras e penitenciárias superlotadas; depois do fracassado Plano Colômbia, em foram despejados centenas de milhões de dólares pelo governo americano para conter o tráfico no país; e mesmo com ex-presidentes como Fernando Henrique Cardoso terem chegado à conclusão de que não é pela via da violência que se irá resolver essa situação, permanece a insistência em manter o tema como caso de polícia? Sejamos pragmáticos: o Estado perde muito mais dinheiro combatendo o tráfico de drogas pela via armada do que se tivesse que disponibilizar médicos e leitos em hospitais para aqueles que exagerassem no uso de drogas. Porém, é óbvio que o lobby da indústria armamentista pesa nessa hora…

4 Drogas sim e drogas não. Por que o álcool e o cigarro, que comprovadamente fazem mal à saúde, são legalizados enquanto a maconha e a cocaína são proibidas? É de amplo conhecimento que o álcool é responsável pelo colapso de diversas famílias “bem nascidas”, enquanto que o cigarro mata mais de 200 mil pessoas por ano somente no Brasil. Alguém já ouviu falar de overdose de maconha? Quanto à cocaína, apesar de muitos sucumbirem ao vício, outros fazem uso comedido da droga, como médicos que a utilizam para agüentar estafantes plantões noturnos em hospitais.  Isso sem contar alimentos, repletos de hormônios e substâncias viciantes, que são responsáveis pelos alarmantes índices de obesidade atuais, além da assustadora quantidade de casos de câncer mundo afora; e desconsiderando ainda todos os remédios de tarja preta que são vendidos em farmácias (outra indústria trilionária), cujos efeitos são extremamente danosos à saúde humana.

5 A escadinha. É verdade que muitos entre os que experimentam maconha, cigarro, ou cocaína, seja em que ordem for, acabam se familiarizando com o mundo das drogas, estando, portanto, mais propensos a experimentar novas substâncias. No entanto, a ideia de que, ao se tornar usuário de maconha, o usuário passará para drogas mais pesadas é falaciosa. Primeiro, porque uma coisa não leva necessariamente a outra, variando de caso para caso. Segundo, porque a “onda” da maconha é diferente dos efeitos sentidos com a cocaína, a heroína ou o crack. Há pessoas que gostam da forma como o organismo reage a uma droga, mas não dos efeitos causados pelo uso de outra substância. E não é preciso fazer uso para saber dos efeitos, pois todas as informações estão disponíveis nos mais variados meios, além de, claro, pela via de transmissão oral.

6 A imagem do drogado. As pessoas em geral costumam guardar imagens-padrão daqueles que usam drogas: vagabundos descabelados que não falam coisa com coisa; enfermos prestes a morrer; pessoas sofridas, infelizes e com a vida completamente desestruturada. Bem, não é sempre assim que ocorre no mundo real. Quando menos se espera, pode-se descobrir que o professor sério, bem vestido e exigente da universidade fuma um baseado; que o médico da família gosta de dar um teco de vez em quando; que aquela cantora infantil tão bem apanhada foi vista na rave “fritando” ou que um jornalista, engenheiro, advogado de sucesso curte dar uns tapinhas com freqüência. Claro que não é o caso de sair por aí fazendo propaganda das drogas, mas é igualmente equivocado tachar a priori todos aqueles que usam entorpecentes como vagabundos ou bandidos.

7 Pulsão de vida x pulsão de morte. Sempre haverá aqueles que dirão, quando confrontados com argumentos favoráveis à legalização das drogas, “para que liberar algo que mata?” Observação pertinente, sem dúvida, porém limitada. Todos nos matamos de alguma forma, queiramos ou não. Do mesmo modo que nosso psiquismo é regido pelo que Freud chamou de pulsão de vida, é, de forma equivalente, tocado pela pulsão de morte, numa constante dialética. O uso de drogas, portanto, é apenas uma das diversas formas pelas quais nos matamos, como ao comer em excesso, estressar-se diariamente a troco de nada, tomar remédios sem necessidade, ou simplesmente viver: porque isso implica necessariamente em estar morrendo todos os dias.

Em resumo, não adianta sair dizendo por aí que é preciso acabar com os usuários de droga; que reside aí, nessa fantástica eliminação, a principal resposta ao problema da violência no Rio de Janeiro. Como na relação de complementaridade entre pulsão de vida e morte, entre riqueza e pobreza, paz e violência e uma série de outros dualismos, a violência social – urbana, especificamente – também é parte de uma dicotomia cujas fronteiras são bastante difusas. Isso não significa que devemos aceitar de bom grado tal sintoma e, no caso em questão, ajoelhar-se perante o tráfico de drogas e as desgraças ocasionadas em função da disputa pela distribuição e pelo uso de entorpecentes. Deve-se sim fazer frente a essa questão, mas não encará-la como constitutiva de um mal a ser varrido do mundo.   Um bom começo seria redirecionar as políticas públicas para além das midiáticas e espetaculares ações de confronto – especialistas em enxugar gelo – e da aposta cega sobre a completa cessão do consumo de drogas em todo o planeta.

apreensão

4 comentários sobre “Fim do show; hora do bode expiatório”

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  2. TODOS nós (sociedade) temos que assumir as nossas responsabilidades! INDECENTE é continuar matando pobres (normalmente jovens/adolescentes) p causa dessa maldita droga, como, aiás, vem acontecendo há muito tempo…

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