Comunidade

genteComunidade, a vida mais perto. Não é por acaso, que o mundo atual se volte cada vez mais para o comunitário, para as esferas de vida e ação mais próximas da pessoa, e, por que não dizê-lo, ao interior da própria pessoa, que é também comunitário, ainda que nos suceda muitas vezes que o esqueçamos.

Desde crianças, ou melhor dizendo, a partir do momento em que começamos a deixar para trás nossa infância, algo em nós começa a se perder. Deixamos a unidade, e vamos para o fragmentário. Saímos de um mundo em que nos movíamos com segurança e confiança, para um mundo em que se é obrigado a pensar e calcular, prevenir-se, desconfiar.

Mas pode se fazer o caminho de volta. De fato, a memória guarda todas as lembranças de todos os tempos vividos. Também, é claro, os da infância. E como é que pode ser vigente, ou melhor, por que é que é vigente, hoje como sempre, o comunitário?

Em que sentido, e como podemos recuperar esta dimensão, numa sociedade em mudança rápida e anonimato, em que muitas vezes se perdem os valores básicos do respeito, da confiança, do crer que essa outra pessoa que está ali, pode ser se não um colaborador ou colaboradora, pelo menos alguém que não nos causará dano nem se aproveitará de nós?

Como restabelecer a confiança em um mundo de pessoas muitas vezes desenraizadas, pessoas que perderam a noção de si mesmas, de quem são, do lugar donde vieram, de suas lutas, dos trabalhos árduos que tiveram que levar a termo para chegarem a ser quem são hoje?

Não creio que haja respostas prontas, e menos ainda respostas únicas. Creio que há vários caminhos de reencontro do comunitário em cada ser humano. Não pretendo perder tempo com generalidades, e sim falar de experiências. Coisas que vivo hoje, como diz a canção.

Tenho a impressão de que o reencontro com o eu criança é um ponto de partida importante para este reencontro do comunitário em mim. Como posso me trazer de volta, se hoje me transformei numa pessoa importante, ou pelo menos ocupada, cheia de contas a pagar, com um trânsito que me tira do sério, com familiares que às vezes também põem a prova todas as minhas capacidades de coexistência com os demais?

Posso ensaiar caminhos simples. Minha mãe transformou-se numa referência muito importante em meu caminho de volta a esta simplicidade. Outras pessoas muito queridas, no ambiente familiar mais próximo, também são referências importantes, na medida em que são pessoas que não julgam os demais pelo dinheiro ou pela posição social ou pelo nível intelectual, mas que tratam as pessoas como tais, como gente.

Eu me criei neste espaço, com estes valores. E recriei, numa medida notável, estes valores em meu círculo de amigos e de pessoas com as quais interajo, nos vários movimentos sociais ou redes de que faço parte. Mas, mais além, como diz Julio Cortázar, está no mundo. Não o mundo pensado, mas a rua, as pessoas, com valores e formas de agir que não coincidem necessariamente com os desta rede mais próxima de que participo.

Aqui é onde me parece que pode ser interessante partilhar algumas experiências oriundas do que a gente aprende quando começa a interagir na rede da Terapia Comunitária Integrativa. A gente vai perdendo uma sensação de estranheza, vai perdendo uma sensação de estar perdido, sem rumo, sem solução. Vai recuperando uma espécie de inocência. Aprende que a gente tem mais coisas em comum com as pessoas em volta.

Outro dia, me encontrava num aeroporto, eu me pus a olhar as pessoas. Notei que havia uma diferença grande entre minhas formas anteriores de olhar as pessoas, e percebi que este novo olhar tinha a ver, tem a ver com o que fui aprendendo na Terapia Comunitária Integrativa.

Simplesmente as pessoas que eu via, não pareciam tão estranhas ou distantes. Acostumei-me a coexistir com pessoas muito diferentes entre si, de distintos lugares, profissões, formas de ser, etc. Isto criou uma proximidade. Este é um dos sentidos de comunidade aos quais estou me referindo aqui.

Devo esclarecer que essas notas não têm por objetivo uma discussão sociológica sobre o que é a comunidade, mas antes, um diálogo a partir da experiência, do qual, no entanto, não podem nem devem estar ausentes as contribuições da sociologia, valiosíssimas por certo.

Quando falo de comunidade, refiro-me a esta perda de um sentimento de estranheza. Este é um sentido primeiro, elementar, entretanto muito importante para o processo de reconhecimento da pessoa por ela mesma, o processo pelo qual a pessoa volta a ter noção de quem ela é.

À medida que a pessoa volta a encontrar-se muito semelhante aos demais, o que não implica que se creia igual aos demais, mas sim muito parecida, cria-se uma familiaridade. Nas rodas de Terapia Comunitártia Integrativa, muitas vezes coexistem pessoas de vários níveis sócio-econômicos.

Estudantes e donas de casa, pessoas semi-analfabetas e doutores ou professores. Pessoas de várias idades. Rompem-se as divisórias sociais. A gente começa a encontrar-se com gente, como gente, e não a partir de uma posição social ou a partir de um papel social.

Lembro-me de uma mulher em Souza, no interior da Paraíba, o Estado em que moro. Era uma formação em TCI. A mulher disse, em certo momento: “Eu pensava que era só esposa, agora me dou conta de que posso ser eu mesma.” E tinha muita alegria. Nunca me esqueci disto. E não é um caso isolado.

Muitas pessoas chegam para as formações com posturas muito fixas. O militante social ou sindical, o professor, o funcionário público, etc. No processo formativo, os papéis começam a ceder lugar para que apareça a pessoa. Isto é o que chamo de comunidade, em um sentido primeiro ou elementar. A partir daí, a pessoa pode voltar a começar a relacionar-se consigo mesma e com os demais, a partir de outro lugar, um lugar mais seu, poderíamos dizer.

As máscaras sociais dão trabalho para se manter. Quando volta essa inocência primeira, o menino ou a menina interior, restaura-se uma tranquilidade bastante grande. Isto que estou comentando aqui, é uma experiência, mas é uma experiência bastante difundida.

À medida que a gente vai desfazendo o estranhamento, o medo, o outro deixa de ser tão ameaçador, ou deixa de ser ameaçador completamente. Abre-se um espaço para um tratamento mais ameno ou mais amigável, potencialmente, com pessoas novas, desconhecidas.

De algum modo, agora eu sei que essa pessoa que eu não conheço, não vai ser tão diferente de outras que eu já conheço. E isto já é outra pequena aproximação a outro grau de comunidade. Outra possibilidade de encontro menos agressivo, menos violento, porque menos preconceituoso.

Há uma espécie de crédito prévio, digamos assim. A experiência dirá qual será o rumo da relação que se poderia estabelecer, ou não. Mas, de antemão, evita-se o medo que conduz à violência. As outras pessoas, à medida que eu estou mais em meu próprio centro interior, mais enraizado em minha própria experiência e em minha própria história de vida, não são tão diferentes de outras pessoas que conheci e conheço, entre as quais, eu próprio.

Isto não é estar indo em uma direção de homogeneidade, mas antes pelo contrário, é estar desfazendo o conceito de massa, de coisa alheia e potencialmente perigosa, porque imprevisível, em direção a algo mais familiar. E isto é, mais uma vez, em algum sentido, comunidade.

Comunidade é o comum, mas não apenas como uma questão de palavras, mas como algo comum que volta a ti, algo comum do qual te vês de novo a fazer parte. A gente pode ter-se distanciado dessa sensação de si que nos fora própria, no começo da vida.

As normas sociais, a formalidade, a necessidade de sermos aceitos. A gente termina não sabendo mais quem é. Quando a gente começa a ver, não mais ilhado, mas reintegrado na trama social da existência, recupera esta sensação de comunidade, de ser parte do que é comum. O que é próprio do ser humano, da vida humana.

Quando a gente recupera essa sensação de pertença, de ser parte e fazer parte, a comunidade está muito perto. Isto já é comunidade, em um sentido muito essencial e muito simples. As distintas socializações às quais fomos submetidos ao longo da vida, podem ter conseguido estabelecer uma distância com respeito ao ser real, o ser autêntico que cada um de nós é.

Não digas isto, não rias, por que tu és assim. A gente incorpora noções negativas sobre nós mesmos, não confia mais em si mesmo, não se quer mais bem, Isto é algo muito comum, mas pode e deve ser revertido, se é que a gente quer ser feliz de novo. Se é que a gente quer viver de novo uma vida em paz, com os conflitos normais da existência, mas com a sensação de pertença à realidade, sem a qual a vida é um inferno.

Sei que aqui foram dadas apenas algumas pinceladas, a partir de experiências pessoais. É um convite para irmos mais longe. Para seguirmos buscando caminhos de recuperação de noções de pertença das quais depende em boa medida a possibilidade de uma existência plena. Todos somos seres individuais, únicos, mas esta unicidade e originalidade não nos separam, e sim nos assemelham e nos unem à continuidade da vida, nos integram à totalidade da humanidade.

Tradução: Alder Júlio Ferreira Calado

Um comentário sobre “Comunidade”

  1. Gracias por este texto de Alder sobre el potencial curativo de la comunidad.
    Estoy totalmente de acuerdo. Y esta experiencia / conocimiento / sabiduría se simboliza en nuestra tradición religiosa por la naturaleza trinitaria (comunitaria) de Dios, que es el modelo segun el que se nos ha formado ….

    Somos intrínsecamente productos sociales. Nacid@s de una relación sexual entre dos seres humanos, hemos pasado los primeros meses de nuestra vida dentro del cuerpo de un ser humano (nuestra madre) y seremos soltad@s – totalmente indefens@s y dependientes en el seno de una comunidad que nos nutre, nos proporciona cuidados, lenguaje, el significado y el sentido de pertenencia.

    Hay un sentido profundo de la palabra re-ligare – (volver a) ligar/vincular a algo o alguien, que es donde se originó la “religión”.

    Y sí, la comunidad significa sin duda hoy en día de ser rescatados como individuo para evitar que nos convirtamos en un átomo del anonimato de la masa. El bautismo en el que se le confiere a una persona su nombre y se le da la bienvenida en el seno de la comunidad es el ritual que usamos para significar este hecho.

    Esto nos reenvia al debate … sobre el futuro de IMWAC, como una organización para la reforma de la iglesia.

    ….la importancia de la descentralización del espíritu de iniciativa que resulte en que grupos de fieles adultos se reunan para compartir su busqueda, su experiencia espiritual.

    Por supuesto que existe el peligro de que el pietismo. De espiritualismo. Creo que es genial que Francisco Papa nos exhorte a salir del centro cálido y confortable para ir a los márgenes, a contribuir en llevar esperanza a los desesperados. A actuar políticamente.

    Un saludo
    Elfriede

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