Brutalidade e esperança – por José Pablo Feinmann

Foto: Página/12.
Foto: Página/12.

A esperança causa dano? É possível uma militância política sem certezas? Como pedir a alguém que arrisque sua vida por uma causa sem assegurar-lhe, ao mesmo tempo, que essa causa triunfará?
Por José Pablo Feinmann (filósofo argentino) – do jornal argentino Página/12, edição de 09/07/2017 – Tradução: Jadson Oliveira (o destaque acima e a disposição dos parágrafos são desta edição)
Estas linhas são motivadas pela brutalidade com que a repressão exibe impudicamente sua face na Argentina.
Numa obra teatral do pós-guerra, o grande expoente “existencialista” do pós-guerra dessa guerra que chamam “segunda” e também “mundial”, Jean Paul Sartre, colocou uma frase terrível na boca de um de seus personagens: “A esperança causa dano”. A obra era “Mortos sem sepultura” e muitos militantes da esperança (que os há e aos montes: a esperança é uma profissão-de-fé e até para muitos um negócio) atacaram Sartre por seu “pessimismo”, seu “nihilismo” e – como não – sua “desesperança reacionária”.
Estes campeões da esperança eram, sobretudo, stalinistas que punham sua fé no horizonte infinito aberto pela Revolução Russa de 1917 e sustentado pelo camarada Stalin nesse presente, cuja luminosidade o nihilista Sartre (por sua condição de ideólogo burguês) era incapaz de ver. Sartre não se retratou e deixou intacta a frase que havia escrito: “A esperança causa dano”. O que nos leva à simples pergunta que motiva estas linhas: Qual é a relação entre esperança e política?
Acaso ilustre algo sobre a questão um breve relato (digamos) conceitual. Não faz muito me referi a um caso, um recorte. Uma “situação”. Finalizava um desses dias em que tudo – mas tudo mesmo – sai mal no planeta que a gente habita e, naturalmente preocupado, perguntei a um jornalista que tinha à mão (um grande jornalista, na verdade) o que podíamos fazer para que as coisas fossem diferentes.
Em suma, para mudá-las. (Velha e venerável pergunta que Marx celebremente formulou na Tese 11 sobre Feuerbach: não basta que a filosofia interprete o mundo, deve transformá-lo). Muito calmo e seguro, meu amigo respondeu que, por enquanto, não podíamos mudar as coisas mas apenas conseguir que fossem menos brutais.
Dias depois alguém, quase encolerizado, me detém e me diz que como posso dizer algo assim, que “o senhor é um reformista”, diz, “as coisas temos que mudá-las, lutar para que sejam menos brutais é absurdo, jamais vão ser menos brutais porque o sistema que as produz é, em si mesmo, brutal”. Havia, aqui, duas formas da “esperança”. Lutar para que um sistema brutal seja menos brutal é lutar contra todo esse sistema, dado que se a brutalidade é sua essência lutar contra ela é lutar contra “todo” o sistema, mas sem a certeza de poder mudá-lo.
Não sei se a esperança causa dano, mas o excesso de esperança deteriora a práxis política.
Tomemos uma obra maior da literatura política. Um grande texto da modernidade, um “manifesto” que “A Liga dos Comunistas” pede a Marx e Marx abre o texto ao nível de Shakespeare, a partir da altura literária do “Hamlet”, apelando ao “fantasma” que percorre a Europa, o comunismo, utilizando, antes de Freud e Lacan, esse conceito e até estendendo uma mão a Jacques Derrida para que se liberte da prisão da linguagem, se meta no barro da história e fale dos “espectros” de Marx. O que tem de fazer Marx ante o pedido dos militantes comunistas? Escrever um “manifesto”, isso é o que lhe pedem. Um “manifesto” a serviço da práxis histórica do proletariado. Deve entregar “certezas”. Ou por acaso é possível uma militância sem certezas? Como pedir a alguém que arrisque sua vida por uma causa sem assegurar-lhe, ao mesmo tempo, que essa causa triunfará? Aqui está o erro e também a tragédia.
As passagens fracas do “Manifesto” (aquelas contra as quais os pós-modernos investiram) são suas passagens proféticas. Marx escreve um “credo” secularizado. A dialética histórica entrega uma certeza irrefutável: o proletariado enterrará a burguesia. Não, dirá anos depois, em torno de 1940, no meio da catástrofe, Walter Benjamin: “Nada corrompeu tanto os operários alemães como a certeza de que nadavam a favor da corrente”.
E Brecht fará um comentário impecável: “Penso com terror que pequeno é o número dos que estão dispostos a não malentender algo assim”. O que é “não malentender algo assim?” Algo árduo de incorporar à práxis política: Não há corrente. Não há uma dialética histórica que leve necessariamente ao triunfo. Não há certezas nem garantismos absolutos.
Se para conseguir a adesão do militante tenho que enchê-lo de certezas, de profecias garantistas, estou debilitando-o. Necessito lhe entregar crenças (um “manifesto” é isso: vem a manifestar uma crença), mas se o encho de certezas, de esperanças, de horizontes de firme plenitude, estou debilitando-o. Tão logo a “realidade” lhe mostre suas resistências. Tão logo sinta, perceba que a história “também” a fazem os Outros, e que implica derrotas, triunfos, mas frequentes e cruéis retrocessos, nos dirá: “Como, não era seguro nosso triunfo? Não estava escrito nas leis da história?” Não, não há leis da história.
A esperança não causa dano, porém seu excesso cega. E essa cegueira é a antessala da derrota. Então, por enquanto, busquemos que as coisas sejam menos brutais. Este, hoje, é o horizonte. Depois veremos.

4 comentários sobre “Brutalidade e esperança – por José Pablo Feinmann”

  1. A intimação é muito pertinente, principalmente, para nós, que vivenciamos esta esperança durante toda nossa caminhada por caminhos diferentes. Eu creio que a praxis transformadora ainda tem espaço na nossa forma de agir cotidianamente, mesmo com ímpeto menor na disposição. Não a esperança Stalinista, como salvadores dos males do capital, mas esperança de influenciar, organizar de outras formas a luta por vida melhor. Esperança na formação através de experiências, ainda embrionárias, que surgem em alguns lugares, a Economia Solidária que verifico em alguns territórios, aqui na Bahia; O SOT, o sistema orgânico do trabalho, que surge em Tocantins, e outras experiências diferentes do modo capitalista de produção. A esperança ainda vive!

  2. A intimação é muito pertinente, principalmente, para nós que vivenciamos esta esperança durante toda nossa militância política por caminhos as vezes diferentes. Eu creio que a praxis transformadora ainda tem espaço na nossa forma de agir cotidianamente, mesmo com impeto menor na disposição e priorização . Não a esperança stalinista, como salvadores dos males da sociedade capitalista, mas a esperança de influenciar, organizar através de outras formas a luta de vida melhor. Esperança na formação através de experiencias, ainda embrionárias, que surgem em alguns lugares, a exemplo da Economia Solidária que acontece em alguns territórios baianos, e o Sistema Orgânico do Trabalho – SOT, iniciativa que que surge no estado de Tocantins, e outras experiencias fora do modo capitalista de produção. Formação politica é o instrumento de avanço que precisa ser retomado em todas estancias dos movimentos sociais.

  3. Sempre desconfio de quem acha que tem certezas demais. Sempre tenho muitas dúvidas e isso não me impede de seguir e até de transformar impossibilidades.

  4. Creio que a frase de Sartre tem um contexto no qual ele coube perfeitamente bem. Eu, hoje, com a experiência de dupla frustração de utopias, política e religiosa, digo que a esperança desarma o espírito. Mas a esperança fundada na palavra, no discurso, forma sutil de poder do falante sobre o ouvinte. A esperança, porém, assentada no real, na concretude da vida nunca causa dano, pelo contrário, dá força, anima. É a esperança que move o povo simples pela conquista de um trabalho, de uma casinha, uma melhor formação para seus filhos.

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