As palavras não sentem, não sofrem. Mas expressam sentimentos e sofrimentos. Quando as pronunciamos podemos fazer sentir e sofrer; podemos sofrer e senti-las. As palavras transmitem o saber, mas este pode se resumir à abstração conceitual da realidade, ao conhecimento teórico. Aprendemos com Dom Quixote que as palavras têm a capacidade de expressar o mundo imaginário e o que só existe na mente do delirante.
No entanto, as palavras podem representar o real sem que este tenha sido vivenciado. Um bom exemplo, é o conhecimento enciclopédico que alguns demonstram sobre a geografia, pontos turísticos etc., sem nunca terem ido além do espaço geográfico que habitam.
Stanislaw Ponte Preta, em excelente e divertida crônica*, relata o diálogo entre um indivíduo que visitou Paris e outro, que nunca foi lá, mas questiona se o primeiro esteve neste ou naquele marco turístico da cidade. Modestamente, e quase que envergonhado, ele responde que não e justifica-se. Até que, após muitas perguntas e falas sobre as belezas da cidade luz, o viajante imagina que seu interlocutor esteve em todos os lugares. Não, não esteve, nunca saiu do Brasil. Conhecia apenas pelos cartões postais, fotografias, etc.
O filme Gênio Indomável é outro exemplo excelente. Já que não posso inserir a cena, leiamos o diálogo entre o jovem Will Hunting (Matt Damon) e o experiente Sean Maguire (Robin Willians):
“Se te perguntar sobre a arte”, fala Sean Maguire ao jovem, “me dirá tudo sobre o tema. Michelangelo, sabe muito sobre ele: sua obra, aspirações políticas, ele e o papa, tendências sexuais, tudo. Mas não pode falar do cheiro da Capela Sistina. Nunca esteve lá, nem olhou aquele teto lindo. Nunca o viu.”
“Se perguntar sobre mulheres, me dará uma lista de favoritas. Já deve ter transado algumas vezes, mas não sabe o que é acordar ao lado de uma mulher e se sentir realmente feliz. (…) Se perguntar sobre a guerra, vai me citar Shakespeare, “outra vez ao mar, amigos”. Mas não conhece a guerra. Nunca teve a cabeça de seu melhor amigo no colo e viu seu último suspiro, pedindo ajuda”.
E assim continua… Farei apenas mais uma referência ao diálogo entre estes personagens:
“ – Você é órfão, não é?
– Acha que sei como você se sente, quem você é, porque li “Oliver Twist”? Você se resume a isso?”
Esta conversa, na verdade quase um monólogo, porque o jovem Will Hunting se quase não fala nesta cena, sinal de que as palavras do terapeuta o tocam diretamente. O interessante é que o roteiro deste filme foi escrito pelo próprio Matt Damon e Ben Aflleck, ambos jovens. Não é, portanto, uma questão de idade, de geração. Os jovens colocam na boca do experiente psiquiatra palavras que expressam bem o saber fundado na experiência da vida.
Na vida real temos jovens enciclopedistas – por exemplo, o aluno que não lê os textos sobre o tema da aula, mas tem sempre algo a falar; ou mesmo que lêem e tomam o texto pela vida. Também há professores do mesmo tipo que parecem ter saído de algum livro, sabem tudo conceitualmente e se referem à vida real como se esta fosse um filme ou uma obra literária. Em ambos os casos, há o distanciamento entre pensamento e ação, entre o saber e vivência. Talvez por isso a sabedoria popular acredite que quem lê muito fica com a mente fraca. Sou favorável à leitura, mas me parece cinzento e triste resumir a vida à experiência literária e/ou teórica.
* In: Ponte Preta, Stanislaw. O melhor de Stanislaw Ponte Preta: crônicas escolhidas; seleção e organização de Valdemar Cavalcanti. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004.
** Assista a cena citada (agradeço à Rita Louzeiro pela informação): Gênio Indomável – A Cena (legendas português)
Antonio, simplesmente excepcional. Não sei como resumir, mas é forte o sentimento de que precisamos sentir, em vida, este texto com mais frequência. Abraços.
Ótimo texto, Antonio. Essa cena está disponível no youtube, acabei de ver: http://www.youtube.com/watch?v=McL5BmYd_6Q
é belíssima!!
Abraços.