23 anos de consciência

Registro da primeira página da revista Consciência.Net de 16 de agosto de 2000.
Registro da primeira página da revista Consciência.Net de 16 de agosto de 2000.
Registro da primeira página da revista Consciência.Net de 16 de agosto de 2000.

Ano 2000. O famoso ano, origem de muitas esperanças e receios coletivos.

Os computadores enlouqueceriam e os algoritmos nos dominariam por completo, alguns disseram. Os relógios não suportariam a pressão dos números e as máquinas seriam responsáveis pelo caos nos dados e, por consequência, em toda a gestão das finanças, das pessoas, dos bens e mercadorias. Era o bug do milênio. A tecnologia, como de costume, abria janelas e, ao mesmo tempo, assustava o século 20 com o anúncio de um novo tempo.

Naquele mesmo ano, dois jovens estavam profundamente incomodados – ao lado de milhões de pessoas pelo mundo – com a verdadeira “década perdida” para as e os trabalhadores. Vinhamos dos anos 1990. O neoliberalismo estava no seu auge. “Mercados” começaram a derrubar e subjugar governos com mais eficiência que o antigo método militarista. Quem não seguisse a cartilha neoliberal era automaticamente excluído do sistema financeiro internacional, na mão de alguns poucos tecnocratas. Poderia ser a “morte” de um país e os que ali viviam.

Para esses dois jovens, o ano 2000 estava a apenas seis do surgimento da Internet comercial no Brasil, por volta de 1994. Abria-se uma janela de oportunidade para se expressar livremente. A juventude, sempre deixada de lado, descobria pouco a pouco a tecnologia como uma ferramenta útil à liberdade de expressão. E assim também sentiam todos os povos excluídos do mundo, em marcha por um mundo melhor. Tínhamos uma esperança renovada.

À época, a Internet era algo muito distinto. Algo que podemos resumir como “linkania” – uma série de páginas online (ou ‘links’) conectados entre si, todos acessíveis por meio de um computador pessoal. Não havia telefones celulares como os de hoje e um computador era um item caro demais para 90% da população brasileira. Além disso, eram poucas opções de leitura. Para se ter uma ideia, existiam apenas 3 mil sites em 1994. Isso mesmo, 3 mil. Hoje, a marca é de 2 bilhões de sites, o correspondente a um quarto da população mundial.

Hoje, a linkania já é coisa do passado. Pouco a pouco, algumas empresas pioneiras de tecnologia criaram as redes sociais. Em poucos anos, o que se oferecia a milhões de pessoas eram determinado não mais pelos desejos e visões de mundo, mas por alguns poucos tecnocratas que tinham acesso aos algoritmos das redes sociais. O poder que antes estava concentrado nas mãos de empresas tradicionais de comunicação passaram para as mãos de empresas de tecnologia. O lucro dá novamente as cartas, mas há quem resista. Estamos novamente nos perguntando, como formulou Noam Chomsky: o lucro ou as pessoas?

Surgia assim em 2000 a Revista Consciência. Um dos criadores foi o antropólogo e sociólogo Renato Kress, cujo pensamento inerentemente multidisciplinar, desde muito jovem, nos fez enveredar por campos como a poesia, a antropologia, a sociologia, a comunicação, a psicologia. O outro era eu.

Ambos cursavam o segundo ano do ensino médio no Rio de Janeiro, estando ainda a dois anos de entrar na universidade. Aquele “eu” a que me refiro está 23 anos distante, porém muito próximo. Eu me pergunto se consegui corresponder aos seus anseios e ambições. Meu objetivo ainda é não desapontar esse “eu” 23 anos mais novo.

Depois da criação da revista, foram tantos e tão importantes os colaboradores que seria injusto nomeá-las e nomeá-los. Um trabalho intenso e desgastante para nós deu resultado: todas e todos estão à disposição do público por meio de seus textos e reflexões. São mais de 30 mil páginas online, apesar de ameaças judiciais que surgiram em algumas ocasiões.

Mas permita-me abrir uma exceção para mencionar, entre essas pessoas valiosas, o sociólogo e terapeuta comunitário Rolando Lazarte, o principal editor atual da revista Consciência. Desde cedo, ele ajudou a constituir nossa identidade – identidad esta permeada pelo inscosciente coletivo mencionado por Carl G. Jung. Esperamos que a renovação seja permanente, e que novos colaboradores se unam a esse projeto.

Além de sua atuação, me lembro que, certa vez, Rolando me contou que havia participado de um projeto de comunicação libertadora há muitos anos, muito antes da nossa revista, enquanto se dedicava a navegar nas águas turbulantes de uma América Latina (e uma Argentina) dominada por governos autoritários e ditaduras sanguinárias. O nome desse projeto? Consciência. Aqui, não há coincidências.

Essa convergência de pessoas e causas comuns se centrava no que há de mais valioso em nossa sociedade: o respeito ao próximo, codificado parcialmente (ainda que de modo insuficiente) nas cartas de direitos humanos que surgiram desde o século dezoito.

O valor máximo da nossa humanidade comum, do milagre da nossa existência e do respeito e dignidade entre todos os seres vivos – incluindo nosso ambiente – é o amor. E com amor, e não ódio, nos guiamos na busca por Justiça e dignidade humana para todas e todos.

Foi esse princípio que me guiou a manter a Revista Consciência por 23 anos. E na revista aprendi muito, e sempre, novos valores, habilidades, princípios. Nem sempre foram dias tranquilos. Por vezes, fomos ameaçados na Justiça e até mesmo em nossas vidas privadas.

É o preço de se expressar em um país dominado até hoje por velhas oligarquias transformadas em elites opulentas e inescrupulosas nesta que é uma das nações mais desiguais do mundo. No Brasil, os 1% mais ricos ficam com 24,6% da renda total. Já o grupo do 0,1% mais abastado do país representa 12,2%, ou um oitavo da renda. Um escândalo que mata e subjuga milhares de pessoas todos os anos.

Passados 23 anos da Revista Consciência, muita coisa mudou. Os algoritmos – e os tecnocratas digitais que os guiam – roubaram a visibilidade que os grupos marginalizados e oprimidos vinham parcialmente conquistando nos anos 2000. As desigualdades cresceram em todo o mundo, não só entre os países, mas dentro dos países. As guerras e conflitos deslocaram um recorde de 100 milhões de pessoas pelo mundo. O cenário não é favorável, e isso precisa ser dito.

Mas algo não mudou. Está intacta. Inacabada e transitória, como deve ser. Trata-se da já mencionada juventude. Não estamos aqui falando de anos vividos. A juventude que tínhamos é nossa energia vital, nosso desejo e satisfação em lutar pela dignidade humana. E buscar o que há de mais humano dentro de nós mesmos. Tão humano que transcende o corpo e se torna etéreo. Sublime, portanto.

Em 2000, eu era jovem. Hoje, 23 anos depois, sou jovem há muito mais tempo, assim como meus amigos da Revista Consciência.

Muitos anos de juventude para todas e todos nós.

Um comentário sobre “23 anos de consciência”

  1. A alegria de lhe ver de volta a este espaço vêm acompanhada da emoção de reviver todo esse trajeto que aqui pincelas. Realmente a memória e a história são o chão que da solidez aos nossos passos. Não posso deixar de perceber o quanto as “coincidências” nos fornecem sinais seguros para nosso caminhar. E o quanto o nosso pertencimento a este e outros coletivos em movimento –gente que faz, pessoas que somam, que se abrem ao crescimento que liberta– é um estímulo para prosseguir na sempre inacabada tarefa de viver mais e melhor. Com alma, com verdadeiro espírito de artistas. Obrigado pela persistência!

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