Vargas leu Foucault (*)

“O novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta”. [FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. 8.ed. São Paulo: Loyola, 1996/1970, p. 26]

A Carta Testamento do ex-estadista Getúlio Vargas nos dá margem a algumas divagações interessantes, sob a ótica da sociedade disciplinar de Foucault [2]. Logo no começo, Getúlio parece estar de fato denunciando algumas das práticas anunciadas por Foucault. Pode-se concluir, em uma análise superficial, que Vargas estaria falando sobre os procedimentos externos de exclusão do discurso. “Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação”, escreve Getúlio no primeiro parágrafo de sua última carta.

Tendo ou não consciência desse sistema de exclusão, Vargas faz-se de vítima e, ao mesmo tempo, possui claramente uma “vontade de verdade”. Dizendo-se cercado por este sistema de exclusão, tenta desqualificar o discurso de seus opositores. Faz-se de “resistência” do verdadeiro e, como os sofistas, enxotado. Temos a nítida impressão de que Getúlio é um homem solitário em sua luta política, abandonado por todos. Só resta em sua carta a luta e o herói – no caso, ele mesmo. Como coloca Foucault, o discurso de que Vargas estaria isolado pode significar seu próprio desejo de estar isolado – mesmo que não esteja – e “sair da vida para entrar na História”.

Há algo de religioso em sua fala. Algo de doutrinário. “Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado”, proclama. Após morto, Getúlio se faz presente no coração de cada trabalhador, de cada lutador, de cada ser humano, como um Deus da resistência. Uma consciência imanente que Vargas toma para si. A doutrina, explica Foucault, “vale sempre como o sinal, a manifestação e o instrumento de uma pertença prévia” [3]. No caso de Getúlio, claramente uma pertença de status social. E de classe, talvez. Nacionalidade, certamente.

“Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência”, escreve. O conceito que Vargas traz nesta frase está longe de ser novo, e o ex-estadista se aproveita do acontecimento de sua volta para fazer nascer diante dos olhos do povo um discurso já pronunciado. Nas palavras de Foucault, “todas as coisas, tendo manifestado e intercambiado seu sentido, podem voltar à interioridade silenciosa da consciência de si” [4].

Penso existir uma mistura de diversos conceitos universais que legitimam a Carta de Getúlio, algumas vezes misto de religiosidade e defesa de classe, “renunciando a mim mesmo, para defender o povo”. Havia algo maior, deve ter pensando, e isto me transcende. O messianismo [5] contido no discurso contradiz suas aspirações a homem atravessado pelo povo.

A bandeira de seu nacionalismo exacerbado parece ser um traço do que Foucault chama de “apropriação social dos discursos” [3]. Um sentimento que faz-se acreditar que, se Getúlio era um sujeito tão nacionalista, todos os seus inimigos só podiam ser antinacionalistas. Acusou-se, mais recentemente, toda e qualquer oposição à guerra no Iraque de ato antipatriótico. O mesmo parece acontecer quando o líder da ditadura mais violenta do século passado no Brasil[6] afirma que seus opositores “não querem que o povo seja independente”. Ao falar que luta contra a espoliação do Brasil e do povo com tanta sinceridade e, ao mesmo tempo, solitude, parece querer induzir o leitor a pensar que é o único, proibindo “todos os outros” [3].

Gustavo Barreto é co-editor da revista Consciência.Net. Texto de 20 de junho de 2003. Esta análise não pretende revisar nem discutir profundamente aspectos históricos. É parcialmente restrita a aspectos do discurso de Getúlio Vargas, baseada na leitura do livro A Ordem do Discurso, do filósofo francês Michel Foucault.

Carta Testamento: “Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História”. Leia aqui.

NOTAS

[1] É conhecida a lacuna de 16 anos entre a morte de Vargas e o pronunciamento de Foucault.
[2] FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. 8.ed. São Paulo: Loyola, 1996/1970.
[3] A Ordem do Discurso, p. 43.
[4] A Ordem do Discurso, p. 49.
[5] “Fiz-me chefe de uma revolução e venci”.
[6] FAUSTO, Boris. História do Brasil. 8 ed. SP: Edusp, 2000, págs. 361 e 376.

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