Urge mudar o paradigma da política de segurança pública

A espetaculosidade – versatilidade, severidade e disposição – das operações punitivas importa mais que sua eficácia, que, de qualquer forma, dada a indiferença geral e a curta duração da memória pública, raramente é testada. (BAUMAN, 1999: 128-129)

Os recentes ataques promovidos pelo crime organizado no Rio de Janeiro abalam, uma vez mais, a sociedade brasileira, que, numa infeliz coincidência, ainda vivia a ressaca das comemorações – por sinal, recheadas de promessas e discursos tão emotivos quanto oníricos – pela escolha da cidade como sede olímpica em 2016.

Como invariavelmente ocorre em situações como essa, as autoridades prontificaram-se a convocar coletivas, quase sempre evocando a “imediata punição aos responsáveis pela desordem urbana” e anunciando “ações enérgicas” financiadas por estrondosas quantias de dinheiro.

Logo em seguida, a Grande Mídia, como de costume, pôs-se a publicar notícias para comunicar à população as medidas que seriam tomadas para “resolver” a situação. Exibindo clara predileção pelas fontes institucionais, como políticos e oficiais da PM, as matérias mostram armas e drogas sendo apreendidas; bandidos – assim classificados pela polícia carioca que, não raro, “atira e depois pergunta” –, quase todos pretos e pobres, ou quase pobres de tão pretos, sendo presos ou mortos. É como se os textos explorassem o efeito de uma catarse coletiva, purificando o espírito dos cidadãos revoltados com a bandidagem, e paralelamente, realizassem as fantasias dos fascistas de plantão.

Em meio às declarações que dominaram o espaço na mídia, merece destaque o discurso do presidente Lula que, diplomático e populista como ninguém, falou o que o público gosta de ouvir e reconforta-se por acreditar: “Vamos fazer o que for necessário para limpar a sujeira que essa gente deixa no Brasil inteiro. (…) [não é possível que] meia dúzia de pessoas consigam ser chefes de meia dúzia de pessoas criando uma imagem negativa e vitimando inocentes no Brasil.” (G1, 19/10/2009).

A culpa pela desordem remontaria, portanto, a um grupo minoritário de pessoas, todos, certamente, “maus por natureza”; indivíduos que precisam ser exterminados ou excluídos integralmente da sociedade (presos) – como se não fossem produtos do próprio sistema socioeconômico vigente – para, assim, haver paz outra vez.

Política de segurança ineficiente

Mas que paz é essa? Houve efetivamente algum tipo de pacificação em todos esses anos de repressão, chacinas, superlotação de presídios, transferência de presos de alta periculosidade para o Paraná, etc.? Quantos mais terão que morrer para que essa paz quase que utópica chegue? Quantos lares mais de famílias honestas e trabalhadoras nas favelas terão que ser invadidos por policiais apontando armas em suas cabeças e estuprando as mulheres da família?  E quantos policiais ainda terão que morrer?

De meados da década de 80 – quando os traficantes de drogas começaram a ter capital suficiente para armar-se a fim de tomar outros pontos de varejo –, aos dias de hoje, a política de segurança pública do Rio de Janeiro tem se baseado no mesmo modelo: o confronto direto. E, apesar de sua continuidade, das armas e drogas apreendidas diariamente, das milhares de pessoas (entre inocentes e bandidos) mortas devido a esses confrontos, os níveis da violência não apresentam nenhuma melhora evidente na cidade.

A estratégia do confronto direto parece manter em dia o a razão oficial para a criação da polícia, ainda no século 19: a repressão aos grupos excluídos da sociedade, em que se incluíam escravos e trabalhadores livres. Qualquer manifestação que contrariasse a ordem social dominante era considerada caso de polícia, o que, em termos, segue ocorrendo atualmente. A principal diferença reside no fato de que ambos os lados estão muito mais armados, e, com isso, as mortes são cada vez mais freqüentes. Só em 2008, mais de 1100 pessoas morreram em confrontos com a polícia no Rio de Janeiro. No mesmo ano, a taxa de homicídios na cidade foi de 35 mortos por 100 mil habitantes, segundo o Instituto de Segurança Pública do estado, proporção que não fica muito atrás da taxa de homicídios no Iraque – em média, de 50 mortes por cada 100 mil habitantes –, considerando-se que esse país está oficialmente em guerra, e sofre constantemente ataques terroristas que matam centenas de pessoas de uma só vez.

No entanto, apesar da violência gerada por esse modelo, o discurso e a prática da segurança pública continuam os mesmos: “Vamos sufocar esses traficantes sem dar trégua. É botar a mão no fuzil e cair pra dentro. A sociedade quer respostas. Vamos caçar esses bandidos”. A frase, proferida por um coronel (!) da Polícia Militar do Rio de Janeiro, foi publicada, sem nenhum pudor, na capa do jornal O Globo, na edição do dia 22 de outubro, ratificando o ultradireitismo inerente ao modus operandi da segurança pública do estado.

Ora, num país que se gaba por ser referência na América Latina de uma democracia plenamente estabelecida, não pode ser aceitável que autoridades falem e ajam dessa maneira, como verdadeiros exterminadores de bandidos. Se o Brasil é realmente um país democrático, se quer fazer parte do conselho de segurança da ONU e tornar-se uma das potências mundiais, não pode simplesmente atropelar os direitos humanos, como vem fazendo numa de suas principais metrópoles (imaginem o que não ocorre nas terras ermas do interior do país!), onde 46 pessoas, entre bandidos e inocentes, morreram vítimas das operações policiais em pouco mais de uma semana. E, para responder ao coronel, sim, a população quer respostas, mas não dessa forma, com operações genocidas que põem em risco a população das favelas, tornando sua vida ainda mais sofrida, para caçar traficantes que serão substituídos no dia seguinte.

Discursos padronizados

Também ratificando a manutenção da controversa política de segurança, o ministro da Justiça, Tarso Genro, por sua vez, utilizou o clássico recurso de apelar para o aumento da repressão e a novas medidas de segurança.

A grande solução para o Rio de Janeiro é a continuidade da ocupação territorial. Ocupação que se dá num determinado momento por presença de força, mas se dá, sobretudo, à ocupação através da implementação de programas preventivos voltados para a segurança pública (G1, 21/10/2009)

E, claro, fez questão de anunciar que o Ministério da Justiça estará “completamente destravado” para atender às necessidades do Rio de Janeiro. Assim, poderá gastar mais que os R$ 100 milhões para o combate ao crime, quantia já prévia e estrategicamente divulgada a fim de arrefecer a pseudo-revolta (os protestos da população limitam-se, no mais das vezes, a comentários na internet e nas seções de cartas dos jornais) dos narcotizados cidadãos cariocas.

A fala do ministro já era previsível, pois se insere numa espécie de padrão, numa ordem discursiva, que formata os discursos institucionais acerca da violência, baseando-se em consensos mundialmente estabelecidos. Tal fenômeno é fundamentado teoricamente por Zygmunt Bauman em “Globalização: as conseqüências humanas” (1999), obra em que desmistifica tais enunciados, revelando a estratégia política que há por trás dos mesmos. Para o autor, todas essas medidas costumeiramente anunciadas aumentam a popularidade dos governos, dando-lhes a imagem de severos, capazes e decididos. Consistem sobretudo em ações de curto prazo, a fim de garantir visibilidade imediata.

Destoando ligeiramente desse discurso-padrão, especialistas entrevistados pelo G1 (Para especialistas, maior controle de fronteiras pode inibir armas ilegais, 20/10/2009) ressaltaram que deve haver maior controle nas fronteiras para inibir o tráfico de drogas e armas. Ou seja, o problema da violência no Rio, segundo as fontes, é de âmbito nacional e internacional e, portanto, é preciso um trabalho conjunto entre as três esferas do governo, além de ações diplomáticas junto a governos de países vizinhos.

O que foi proposto pelos especialistas representa um avanço, sem dúvida, no paradigma de combate ao crime organizado. No entanto, a medida esbarrará em diversas dificuldades, uma vez que o tráfico de drogas e armas compreende duas das mais lucrativas atividades do mundo. Há tanto dinheiro e pessoas envolvidos que a economia mundial já depende de tais atividades (não é novidade que a corrida armamentista foi responsável, por exemplo, pela sustentação e reaquecimento, em épocas de crise, de economias como a dos EUA e URSS). Por isso, acabar com os sistemas de produção e distribuição de drogas e armas vai de encontro a interesses supranacionais, que envolvem não só máfias e quadrilhas, mas políticos de alto escalão, que estão acima de qualquer suspeita e/ou julgamento.

Mudança de paradigma

A limitação das políticas de segurança à repressão ao tráfico de drogas, sem a combinação com outras políticas públicas, mostra-se ineficaz não só no Brasil, mas em outras partes do globo. Vide os resultados do bilionário Plano Colômbia, por exemplo. A parceria entre o governo desse país e a maior potência bélica mundial, os EUA, não rendeu frutos significativos mesmo com o exorbitante gasto de US$ 6 bilhões de dólares desde sua implementação em 2000. O objetivo de reduzir pela metade a produção de coca e cocaína, entre esse ano e 2006 nunca foi contemplado, tendo a produção das substâncias aumentado respectivamente 15% e 4% nesse período. O tráfico de drogas segue, portanto, fortalecido no país, cujo território é, em boa parte, dominado por guerrilhas e grupos paramilitares, a ponto de o tão festejado governo Uribe não poder ser considerado soberano.

Isso prova, ao contrário do que prega o discurso político em momentos de calamidade pública, que gastar mais dinheiro na compra de armas cada vez mais potentes ou no deslocamento de tropas militares para atuar no combate ao crime organizado, não resolverá, por si só, a questão da segurança pública. O que se faz atualmente no morro Santa Marta, na zona sul carioca, por exemplo, é claramente uma estratégia para atrair visibilidade e votos para o governo do estado do Rio de Janeiro; muito mais do que algo que irá transformar a realidade das favelas da cidade. Além de ser inviável estender o mesmo efetivo policial e orçamento a todas as mil favelas do Rio, o projeto de UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) segue batendo na mesma tecla, procurando resolver a questão da segurança social e da penetração do estado nas favelas por meio do uso da força policial.

É preciso haver mudança no paradigma de combate ao crime. E isso deve passar pela compreensão dos fatores que influem na segurança pública. Não se trata apenas da repressão ao tráfico de armas e drogas, mas da promoção de políticas habitacionais, educacionais, de saúde, etc., que não se limitem ao assistencialismo e sejam direcionadas às camadas sociais menos favorecidas.  Se isso não está ocorrendo de forma adequada, é porque há interesses particulares sendo contemplados, em detrimento do que é importante para a nação.

O que deve, acima de tudo, ser combatido são os crimes de colarinho branco, que desviam milhões, bilhões de reais, provocam guerras, afetam comunidades ou populações inteiras e incitam a mesma violência e desordem tão enérgica e duramente reprimidas pelas autoridades do país. Mas, como já é de conhecimento dos brasileiros, os responsáveis por esses crimes de alto-escalão dificilmente são punidos, pois vivem a rastejar pelas brechas da lei ou velar-se sob eufemismos travestidos de um falso tecnicismo, como “promoção do livre comércio”, que disfarça o roubo dos recursos de nações inteiras, ou “enxugamento”, que corresponde a roubar famílias e comunidades de seu meio de subsistência.

Já é hora de os cidadãos despertarem dessa disfunção-narcotizante que lhes assola, motivada principalmente pelo bombardeio diário de informações, e exigirem mudanças na atitude e posicionamento das autoridades quanto à questão de segurança pública. Não cabe mais o tratamento displicente e populista dessa problemática pelos governantes, nem sua retórica vazia que parece dispensar ao público a condição de ignorante e ingênuo. Os tempos são outros: seja no asfalto ou na favela, a população está melhor informada e vem adquirindo expertise na temática da violência.

Não há mais porque vestir narizes vermelhos: os palhaços, agora, situam-se exclusivamente no picadeiro de Brasília e em extensões sujas como a Alerj, onde, aparentemente, só entra quem tem porte de arma e ligação com as milícias; por tabela, com o tráfico.

2 comentários em “Urge mudar o paradigma da política de segurança pública”

  1. acho que antes de tudo precisamos entender que educação, sustentabilidade, emprego, politicas publicas para jovens pobres, uma urbanização mais inteligente que não crie muros repartindo as cidades, legalização responsavel, a reducação das policias antiquadas e com complexo de ditadura ainda…..tudo isso é segurança pública se é que me entendem.

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