Uma visita a Friburgo

Estive este final de semana em Friburgo, para localizar parentes que moram na Estrada do Amparo, a 4 km do centro. Faço algumas observações sobre a situação.
1. Em Friburgo, o número oficial de vítimas na região, de pouco mais de 600 pessoas, é motivo de riso. “São 1.000 só em Friburgo, no mínimo”, afirma uma fonte que trabalha na busca de corpos.
Não consigo entender a neurose em torno das “atualizações” constantes da imprensa em torno do número. Não seria melhor contar as histórias das pessoas?

Rua no centro de Friburgo

2. A imprensa fez um trabalho péssimo. Passavam de helicóptero com o intuito exclusivo de mostrar desgraça – eu assisti essa lógica na Record e na Globo, ouvi relatos de outros. Os moradores querem saber:

(i) de onde falam;
(ii) quem são as pessoas, a família, o sítio;
(iii) de que forma podem ajudar, pois o momento é de crise.
Um helicóptero da Globo chegou a descer num local isolado e encontrou uma mulher em trabalho de parto. Pediram o veículo. A Globo cedeu, mas não sem explorar ao máximo o caso. Chegaram a entrevistar a mulher – repito, em trabalho de parto! – no caminho para o helicóptero.
A mulher sofria, soprava, e a repórter da Globo perguntava insistentemente: “É menino ou menina? Qual o nome dela?” e por aí vai. Jornalismo esgoto da melhor qualidade. É o que, via twitter, Isabella Lychowski (@be11a_) classificou como sadojornalismo.

Entrega de 300kg de donativos no posto comunitário da polícia, comprados pela Obra Lumen de Evangelização. A solidariedade foi o ponto positivo da crise.

3. O cenário em Friburgo é desolador. Algumas pessoas desceram de carro só por curiosidade, uma atitude inacreditável. Há relatos de assaltos (mas nenhum arrastão, um dos mitos). Alguns comerciantes mereciam ser presos, vendiam caixas de leite a 7 reais, garrafa de água a 20. Eu fiquei deprimido em saber que existem pessoas assim, por mais que não seja uma novidade.
O boato da suposta barreira que teria cedido e estava prestes a inundar toda a cidade não fazia sentido, pois não havia sequer barreira no local apontado. O pior de todos os boatos era o de que uma creche com 60 crianças havia sido levada pela chuva. Outra mentira.
Os bombeiros fazem um excelente trabalho, mas imagine você o que é ficar retirando corpos o dia inteiro e não ter o seu trabalho reconhecido. O salário de policiais e bombeiros está entre os piores do Brasil, e o Governador se nega a apoiar a PEC 300. “Os políticos vão para a TV falar do trabalho exemplar deles nestes momentos, mas em 3 anos meu marido recebeu aumento de 0,5%”, me conta uma esposa de um bombeiro.
Uma casa de três andares está claramente em risco, próximo à Estrada do Amparo, mas moradores se negam a deixá-la.

4. A demagogia do governador Sergio Cabral terá de ser registrada para a história: sua base eleitoral é uma das responsáveis pelo caos na questão da habitação. Não há política firme de combate à especulação imobiliária, uma das principais responsáveis pelo cenário visto em Friburgo e outras localidades. Ele denuncia o que ele mesmo representa: o político eleitoreiro.
Pessoas endinheiradas compram a seu bel prazer imóveis para lucrar futuramente (às vezes imediatamente), aumentando custos de locação e, consequentemente, expulsando a população mais pobre para as áreas de risco. O governo pode fazer algo imediatamente: IPTU progressivo para quem especula. Já dá certo em muitos lugares. Mas muita gente poderosa vai perder eleitor e dinheiro se fizer o correto. É melhor deixar morrer. A mídia pouco fala disso, só no momento da crise e olhe lá.
Região central de Friburgo.

5. Inúmeros especialistas criticam a política urbana na área de moradia, apontando que a ênfase maior deve ser na organização do que já existe (áreas de risco, encostas etc) e no combate à especulação imobiliária. A presidenta Dilma não respondeu à seguinte questão: se o programa de habitação der todos os bilhões necessários para construção de novas casas, onde serão construídas? Sob qual critério serão cedidos os terrenos? Sob qual plataforma legal? A especulação será combatida?
Dilma chegou e saiu perdida da região serrana. Na correria, prometer bilhões e bilhões é fácil para qualquer governo federal. Mas para fazer o quê? Pouco foi dito sobre isso.
Além disso, é da base dela, Dilma, o relator do projeto de alteração do Código Florestal. As mudanças de responsabilidade do deputado Aldo Rebelo, que pertence a um partido dito “comunista” (o PcdoB), ampliam ocupações de áreas como as que conheci em Friburgo. Pretende, sem meias palavras, “legalizar o que já é fato consumado”, afirmam defensores das mudanças.
Moradias em encostas foram uma das causas da morte de mais de 1.000 pessoas na Região Serrana do Rio. O deputado Aldo Rebelo quer legalizá-las, a pedido do agronegócio e dos ruralistas. Se conseguir, preparemo-nos para a intensificação das tragédias.

Aldo Rebelo fecha com os ruralistas para vender essas áreas para o agronegócio – ele efetivamente negocia do lado dos ruralistas –, ataca o Greenpeace e outros movimentos sociais na luta contra o desmatamento e divulga em sua página artigo de gente como Denis Lerrer Rosenfield, “filósofo” gaúcho que, entre outras coisas, afirma que o Brasil não precisa de reforma agrária. Em outros tempos, Rosenfield só conseguiria publicar seus artigos em meios como VEJA e Estadão. Hoje está do lado de “comunistas” como Rebelo.
Se aprovadas, as alterações promoverão pelo menos mais 10 anos de tragédias como esta, ano após ano. Grande trabalho, deputado Rebelo. Procurado hoje o dia todo, Rebelo usou uma velha tática dos políticos da extrema-direita: “Não foi encontrado”, “Não retornou as ligações” e por aí vai.
A força da água foi tão forte que as bombas do posto da Petrobras, no centro de Friburgo, não resistiram.

6. Os governos preferem fazer o que sempre fazem: como existem muitos “responsáveis”, eles apontam as responsabilidades alheias. É claro que existem muitos moradores que insistem em ficar em área de risco.
O que não costumam comentar – imagine o leitor o porquê – é que seria necessário aumentar a fiscalização para lacrar essas casas em áreas de risco. Para isso, precisaria acabar também com os políticos que dão cobertura, em troca de voto. E são, veja só, estes mesmos governantes que fazem e fiscalizam as leis. Que coisa, não? Cabral é fruto dessa configuração política, e não um opositor, como gosta de se colocar.
A maior parte das ruas em Friburgo precisa de apoio e está coberta de lama.

7. Eu tenho muitas histórias horríveis de mortes de famílias, tragédias inacreditáveis. De que adianta contar? Eu não me formei jornalista para ficar tocando o terror. Se não tem qualquer informação válida, não tem porque noticiar.
Área de acesso à Estrada do Amparo e à Chácara do Paraíso, em Friburgo.

Área de acesso à Estrada do Amparo e à Chácara do Paraíso, em Friburgo.

8. Uma curiosidade. Comentam em uma roda: “Paulo Azevedo morreu”. Umas quinze pessoas se alegram. Ele é ex-prefeito de Friburgo e o comentário é de que ficou rico com tragédia parecida em 2006 e assassinou um vereador à luz do dia (e não foi preso). Posso afirmar que todas as pessoas que conheci e visitei estão felizes com o acontecimento, “uma notícia boa entre tantas ruins”, comentam.
Área do acampamento da Assembleia de Deus, km 4 da Estrada do Amparo. Por lá também houve vítimas, cujos corpos estavam sendo resgatados dentro do possível pelos bombeiros.

9. Existe uma consequência óbvia e uma consequência em geral ignorada.
A consequência óbvia é o risco de doenças, tema em que as autoridades sanitárias estão, ao que me pareceu, tratando bem.
A consequência em geral ignorada é o trauma. Depois de apenas um dia em meio à tragédia, não conseguia dormir. Cada vez que fechava o olho, começavam as imagens de terror a povoar a noite. Era estradas que caiam, corpos que sobrevoavam os sonhos, mantimentos destruídos e casas pegando fogo. “Fiquei três dias sem dormir”, conta uma moradora de uma área isolada.
A reação da maior parte das pessoas não é adequada (e nem poderia ser): alguns bebem, outros perdem o controle, outros vão jogar ‘video game’ ou tentar ocupar a mente de qualquer forma, isso mesmo em meio ao caos. Alguns reagem com maestria, ajudando quase que 24 horas por dia quem precisa, mas a maioria não consegue reagir imediatamente. É um momento de fato traumático. Não é nada fácil reagir. Aos poucos todos vão acordando do que parece ter sido um grande pesadelo.
Visão do carro em uma rua próxima à Estrada do Amparo, Friburgo. Esta região foi destruída e isolada, mas com menos vítimas do que em outros lugares. O bairro de Córrego Dantas, por exemplo, praticamente desapareceu.

A mesma estrada.

Na região próxima à Estrada do Amparo, quase todas as famílias ficaram isoladas, sem luz, sem água e sem informação sobre o que estava acontecendo.

10. Por fim, perceba que a crise expõe pelo menos uma situação: a sociedade sabe reagir. A solidariedade é gigantesca. Em poucas horas, o Brasil inteiro está doando todo tipo de recursos. Centenas de voluntários estendem as mãos. Bombeiros e outros agentes públicos, mesmo mal pagos, correm para socorrer vítimas e minimizar danos. Neste ponto, estamos bem.
O que devemos nos perguntar, no entanto, está relacionando ao que vem pela frente: além de reagir, saberemos agir para o bem comum? Mais do que na reação, é decisivo que a ação seja permeada de solidariedade. Principalmente na união contra os demagogos de sempre, que invariavelmente tentam se passar por redentores da pátria.
Outro ponto pertinente é pensarmos sobre as implicações ambientais ao qual todos nós estamos submetidos. É possível continuar “crescendo” do ponto de vista econômico sem levar em consideração os riscos ambientais que são inerentes à destruição do meio ambiente? Manteremos o mesmo padrão de consumo irresponsável?
A empresa de energia fez um bom trabalho em Friburgo, após os deslizamentos.

Casa do governo próxima à entrada da Estrada do Amparo (RJ-150), em Friburgo. O acesso foi totalmente destruído.

Casa do governo próxima à entrada da Estrada do Amparo (RJ-150), em Friburgo. O acesso foi totalmente destruído.

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(*) Gustavo Barreto, jornalista. Todas as fotos de minha autoria e todas as fontes de minha responsabilidade. Lembro que comentários podem ser feitos livremente, abaixo, sem censura. Contato pelo @gustavobarreto_.

6 comentários em “Uma visita a Friburgo”

  1. É, no mínimo, confortável saber que existe alguém trabalhando em prol da verdadeira notícia, de conteúdo compromissado, sincero e qualitativo.
    Foi a primeira reportagem que vi, sobre Friburgo, julgano toda a situação em caráter exemplar. Parabéns.

  2. Concordo com boa pare das opiniões de Gustavo Barreto, mas tenho algumas objeções. A que vale a pena comentar aqui é que sempre que acontecem problemas graves que viram notícias, os paladinos da justiça usam a palavra para fazer política: muita hipocrisia e demagogia de todos os lados. Todos sabemos que o Brasil não é um paraíso, tem problemas, e graves. Melhor do que falar, falar e falar, é fazer. Não esperar a hora crítica, mas fazer quando algo deve ser feito. O problema é que nada é feito, tornando as catástrofes grandes oportunidades de se fazer política contra tal e tal governos. A tragédia sempre deu, historicamente, a oportunidade para minar a autoridade ou a imagem de pessoas que não têm responsabilidade sobre a desgraça. Na verdade, todos somos reponsáveis, mas é preciso eleger um cristo, um bode para espiar as nossas faltas. É muito cedo para apontar responsabilidades. O que é preciso é agir, se for possível. Se me fosse dada a oportunidade, iria com toda a minha energia enfiar o pé na lama da Serra de Petrópolis para ajudar, para cavar, servir água, abrir estradas, levar alívio às comunidades isoladas, o que me faria sentir muito mais útil do que estar aqui fazendo esse comentário. “Too many cameras and not enough food.” Fala-se demais.

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