Uma visão das comunicações no Brasil

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Gustavo Gindre, 40 anos, é membro do Coletivo Intervozes e conselheiro eleito pelo terceiro setor no Comitê Gestor da Internet (CGI.br). Nesta entrevista, analisa os mercados de TV aberta e fechada, o PL 29, o impacto da revolução digital, a Conferência de Comunicação, a TV digital e o acaso da indústria fonográfica.
Com o fim da ditadura, a expectativa era que o monopólio privado da Globo, um dos sustentáculos daquele regime, ruísse. Um quarto de século depois, meia dúzia de famílias, com os Marinhos à frente, continuam controlando a mídia no Brasil. Por que o país não avançou neste setor? Vamos continuar assim?
Roberto Marinho soube se aproveitar muito bem do período imediatamente anterior à ditadura militar e do pós-64 para se constituir na voz do conservadorismo modernizador que então chegava ao poder. Com isso, ele deixou de ser um mediano empresário de mídia para se tornar o dono de mais da metade do bolo publicitário brasileiro. Contudo, o projeto dos Marinho não estava vinculado diretamente à ditadura e poderia sobreviver a ela. Para isso, os Marinho souberam construir uma rede de proteção que os blindou contra a ação de futuros governos. De um lado, a teia de concessões de rádio e TV de suas afiliadas envolve quase todas as oligarquias regionais, que possuem um peso enorme no Congresso Nacional. De outro lado, aqueles que ousavam se insurgir eram massacrados na arena pública do telejornalismo, deixando claro o alto preço a ser pago. Assim, não foi surpresa que os sucessivos governos tenham tido pouca, ou nenhuma, vontade de enfrentar o problema da oligopolização da mídia brasileira. E que a Constituição de 1988 tenha sido extremamente tímida ao tratar da comunicação.
A novidade no setor televisivo é a Record, um patinho feio evangélico infiltrado no clube das famílias que controlam as grandes redes. A Record representa um sopro de renovação ou apenas replica o modelo verticalizado (produção inhouse da programação) das outras emissoras? É positivo para o país ter um grupo de mídia tão forte controlado por uma igreja fundamentalista?
No seu surgimento, a Globo, graças ao acordo com o grupo estadunidense Time-Life, pôde torrar muito dinheiro até adquirir a liderança de audiência e um padrão técnico inéditos no país. Esse acordo ilegal deu a Globo uma vantagem competitiva que seus concorrentes não conseguiam alcançar. Agora, pela segunda vez na história, surge um radiodifusor que obtém recursos de fora do seu negócio e que pode passar um bom tempo gastando dinheiro até adquirir audiência e know how. O que a Record faz com a Universal é correlato ao que a Globo fez com a Time-Life e justamente por isso assusta a emissora dos Marinho.
Mas, embora represente concorrência, a Record não inova no modelo de negócios e não aporta no mercado nacional duas características essenciais que são a produção regional e de caráter independente. Sem estes elementos democráticos, a Record é apenas uma versão piorada da vênus prateada. Mas, eu não diria que a Record é ligada a uma igreja fundamentalista. A Universal é uma mistura de preceitos pentecostais e um target de mercado muito bem explorado. E essa combinação não faz nenhum bem à democracia brasileira. No uso do espectro eletromagnético do rádio e da TV, um bem público e finito, este tipo de prática que mistura negócio e religião deveria ser sumariamente proibida.
Por favor, descreva o processo que levou o governo federal a convocar a Conferência de Comunicação. O que se pode esperar de concreto deste encontro?
O governo Lula representava uma grande esperança de mudança no campo da comunicação, mas, infelizmente, avançou muito pouco, após quase sete anos. A Conferência surge, portanto, como uma resposta à insatisfação dos movimentos sociais em relação às promessas de democratização da comunicação. Uma tentativa de responder à sua base militante de sustentação política.
Contudo, as pressões dos grandes grupos de mídia (instalados também dentro do próprio governo) vêm conseguindo neutralizar o debate. Recentemente o governo assumiu como sendo sua a proposta de organização da conferência feita pelos empresários e que impõe 40% de votos para os donos de meios de comunicação e a necessidade de 60% +1 de votos para aprovar um tema. Ao agir assim, o governo deixou claro que as chances de mudar alguma coisa no campo da comunicação são muito pequenas e com isso a Conferência corre o risco de se tornar mais um elemento de frustração.
Por outro lado, sua própria realização, com conferências municipais e estaduais, já colocou o tema da comunicação na agenda nacional e vem contribuindo para que rádios comunitárias, militantes pelo software livre, canais comunitárias, acadêmicos, sindicatos e as mais diferentes ONGs se reconheçam como membros de um mesmo movimento social, que reivindica o exercício pleno do direito humano à comunicação. Esse ganho (de organização de um movimento social) talvez seja o melhor resultado da Conferência. Até porque a luta não se encerrará nela.
O Brasil tem um setor de TV aberta desproporcionalmente grande, se comparado a outros países. Por que a hegemonia das redes de TV aberta sobreviveu ao advento da TV paga e novas tecnologias? Esta realidade pode mudar com a Internet?
Porque os grandes grupos de mídia, com a Globo a frente, privilegiaram a TV aberta como carro-chefe de seus negócios e não tinham nenhum interesse em canibalizar a sua galinha dos ovos de ouro. Como estes mesmos grupos controlavam a TV aberta, a TV paga foi mantida em patamares “aceitáveis”, ou seja, restrita às classes A e B. Hoje a penetração da TV paga é de apenas 12% dos domicílios, contra mais de 90% da TV aberta.
A Internet apresenta duas grandes mudanças nesse cenário. De um lado, a convergência tecnológica traz para o mercado de mídia as gigantes de telecomunicações, cujo faturamento é algumas vezes superior ao conjunto da mídia nacional, inclusive a Globo, e uma presença muito maior de capitais transnacionais. De outro lado, a Internet impõe um cenário de mídias interativas que contraria todo o modelo de negócio da radiodifusão. A Globo, por exemplo, consolidou um modelo de negócio onde ela detinha quase 100% do controle editorial de seus conteúdos e isso não é replicável na Internet. Creio que estamos vivendo o lento ocaso dos grupos radiodifusores, que dificilmente terão, no cenário da Internet, o mesmo peso que tinham no mundo analógico. Isso, por outro lado, não significa que o cenário será melhor, mas, apenas, que será diferente, com novos desafios.
O fato das redes produzirem sua própria programação relegou os produtores independente de TV a um papel secundário, mas houve avanços nos últimos anos. O deve ser feito para estimular a produção indie? O que representaria a aprovação do PL 29?
Os avanços da produção independente na radiodifusão foram quase nulos. O que temos é a venda ilegal de espaços na programação, por parte das emissoras de menor porte (Band, Rede TV e CNT, por exemplo).
Já o PL 29, que representa a criação de uma única lei para toda a TV paga brasileira (hoje perdida num cipoal de leis, decretos, portarias e normas), é um marco fundamental para construir um mercado do audiovisual que consiga ser auto-sustentado (dependendo cada vez menos do dinheiro público, direto ou indireto). A principal arma para que isso ocorra são as cotas tanto para conteúdo nacional (em especial o de caráter independente) nos canais (inclusive aqueles das majors estadunidenses) quanto para canais nacionais nos pacotes que são vendidos ao consumidor final.
Porém, dada à pressão dos grupos de mídia, interessados em se manterem no papel de donos do gargalo por onde passa o conteúdo nacional, cada nova versão do PL 29 tem aparecido mais desidratada. Com cotas menores e menos incidência do poder regulador.

E a aparente contradição entre o fuzilamento que o governo Lula sofre na mídia e os seus índices de popularidade é uma prova desse fenômeno. Infelizmente, parece que apenas o governo Lula ainda não percebeu isso e se mantém numa postura dócil em relação aos grandes grupos de mídia.

Em 1989, a mídia teve um papel decisivo na eleição de Collor. Em 2006, o candidato a presidente apoiado pelos grupos de mídia não conseguiu vencer. O Jornal Nacional não é mais o mesmo? A TV aberta não tem mais o mesmo papel central na formação da opinião?
Fazer uma afirmação categórica neste sentido demandaria uma pesquisa mais apurada, com dados empíricos que eu não possuo. Contudo, é fato que a TV aberta (no Brasil e no mundo) tem cada vez menos influência na construção da agenda nacional, embora seu poder não deva ser menosprezado. A sensação que eu tenho é que essa agenda tem se tornado muito mais complexa nos últimos anos, com a entrada de novos atores sociais. E a aparente contradição entre o fuzilamento que o governo Lula sofre na mídia e os seus índices de popularidade é uma prova desse fenômeno. Infelizmente, parece que apenas o governo Lula ainda não percebeu isso e se mantém numa postura dócil em relação aos grandes grupos de mídia.
O que representou a escolha do padrão japonês para a TV digital aberta no Brasil? Que grupos se beneficiaram? O Brasil tenta convencer seus vizinhos a aderir ao padrão sino-brasileiro. Que países já aderirão ou devem aderir? Qual a importância para o Brasil de unificar a região em torno do padrão?
O debate da TV digital deve ser dividido em dois. O primeiro debate era aquele sobre a escolha do conjunto de tecnologias que o Brasil viria a adotar. Este não era um debate condicionante para tornar a TV aberta mais ou menos democrática. Seu grande impacto ocorreu no campo da produção de ciência e tecnologia nacionais. Infelizmente, o Brasil desconsiderou quase toda a sua produção interna (exceto pelo middleware Ginga, mas que nem mesmo vem sendo embarcado nos conversores) e, ainda por cima, adotou uma política industrial subordinada aos interesses de um único país, no caso o Japão. Mais uma vez nos mantivemos como colônia agroexportadora, insensíveis à necessidade de dominarmos tecnologias de ponta e os royalties daí derivados.
Isso tudo apenas para que a Globo mantivesse sua antiga relação comercial com a Sony e a NEC. E, ao mesmo tempo, pudesse transmitir o sinal para recepção móvel no canal de UHF em que também transmitirá o sinal para recepção fixa. Ou seja, a Globo se livra da opção de ter que adotar a figura do operador de rede e abrir mão do controle absoluto que ela exerce sobre o bem público do espectro eletromagnético.
O segundo debate é aquele sobre o modelo de implementação da TV digital, que deveria contemplar a introdução de novas emissoras (privadas, estatais e públicas) e de serviços interativos (especialmente aqueles não vinculados diretamente à programação das emissoras, como educação a distância, tele-medicina, e-bank, e-mail etc). Esta agenda poderia ser implementada com tecnologia japonesa, européia ou mesmo brasileira, mas implicava enfrentar o desafio da democratização da TV aberta brasileira. Mas, o governo preferiu manter exatamente o mesmo número de emissoras que temos hoje em dia e relegar a interatividade a um papel de mero serviço de valor adicionado a ser prestado pelos radiodifusores. Ao invés de educação à distância, teremos a chance de conhecer o perfil do galã da novela ou votar on line pela eliminação de alguém no Big Brother. A introdução da TV digital aberta no Brasil, infelizmente, fracassou nestes dois campos.
Sabemos que a migração para a TV digital aberta está mais lenta que o esperado. Qual a sua avaliação deste processo?
Uma TV que mantém o mesmo número de emissoras atuais e que não tem nenhum elemento de interatividade é exatamente a mesma TV de hoje, com uma imagem melhor. Se eu não tenho condições econômicas para comprar uma TV de alta definição, eu não ganho rigorosamente nada com essa tal de TV digital e vou usar meus poucos recursos disponíveis para tentar comprar um computador e pagar a assinatura de um provedor de acesso a Internet.
Se, por outro lado, eu tenho uma TV de alta definição, meu interesse, muito provavelmente, estará voltado para acessar os canais pagos em alta definição.
Com isso, qual o público com dinheiro e interesse suficientes para comprar uma TV de alta definição, um conversor para o ISDB japonês e assistir a mesma novela das 20h de sempre ou ao Pânico na TV? A TV digital no Brasil nasceu com cara de analógica e por isso não parece ter muito futuro.
Poucos setores como o fonográfico sofreu tanto com o advento da Internet. Por favor, descreva este processo. Qual a situação atual desta indústria e qual são as suas perspectivas?
O capitalismo é um processo civilizatório calcado na aposta de que tudo possui valor de troca e pode ser levado ao mercado. Séculos atrás já foi motivo de muito espanto para alguns de nossos ancestrais que terra e trabalho pudessem se tornar uma mercadoria. Agora, vivemos uma nova fase desse processo, onde o capitalismo procura radicalizar a idéia de que o conhecimento também pode ser confinado às relações mercantis.
Contudo, este mesmo capitalismo produziu inovações tecnológicas que libertaram o conhecimento dos seus suportes físicos (papel, fitas magnéticas, discos de acetato etc). Ocorre que o conhecimento é algo que pode ser divisível ao infinito e que, portanto, não está sujeito às regras de escassez que determinam o valor de troca de uma mercadoria.
A indústria fonográfica foi apenas a primeira a sentir os impactos dessa contradição. Hoje não faz mais sentido pagar pelo suporte da música, uma vez que eu posso obtê-la diretamente por meio digital. Com a ampliação da capacidade de transmissão de dados (vídeo) e com o surgimento de leitores portáteis (impresso), este impacto também será sentido pela indústria do audiovisual e dos livros, respectivamente. É apenas uma questão de tempo.
Existem dois caminhos possíveis para o desdobramento desta crise. Um seria a construção de novos modelos de negócio que consigam constranger o conhecimento ao seu papel de mercadoria mesmo sem que seja necessário o uso de suportes físicos para o seu transporte. Dado o fato de que a informação pode ser replicada ao infinito, um modelo como este não poderá prescindir de fortes elementos de repressão.
Outro caminho, menos provável e mais interessante, é o questionamento, no seu cerne, da própria idéia de mercadoria, a partir da revolução digital.
De uma forma ou de outra, contudo, a indústria fonográfica que surgiu no início do século XX está à beira da morte. O máximo que seus dirigentes conseguem é mantê-la ligada aos aparelhos que lhe garantem uma sobrevida, ainda que em coma profundo.
VOD, VoIP, Twitter, P2P, YouTube, RSS… O digital está apenas no início. Como será a mídia e a comunicação em 20 ou 30 anos?
A Internet é o paradigma das comunicações no futuro. Sobre isso não resta muita dúvida. Coisas como interatividade e consumo por demanda irão orientar a indústria cultural nas próximas décadas. E TV, rádio e jornal, como conhecemos, tendem a migrar para este ambiente de hipermídia.
A forma exata desse processo e quais serão os atores de mercado que irão triunfar, eu não me arrisco a prever. Contudo, essa migração não significa que alcançaremos o reino da liberdade, mas apenas que teremos novos desafios pela frente.
Ao invés da repressão às fontes de informação (característica da imprensa escrita e da radiodifusão), teremos a abundância desmedida de informações e o problema de como tornar algo efetivamente relevante. No lugar da censura, o controle pelo mercado, mapeando comportamentos até mesmo no nível dos indivíduos e oferecendo opções de consumo para desejos que você nem mesmo sabia que tinha. São desafios novos, para os quais a reflexão acadêmica e a ação dos movimentos sociais ainda não parecem estar preparadas.
A TV paga passou por profunda transformação com a entrada das teles (Telmex, Telefonica, Embratel e Oi) e a consolidação do setor (fusão da Sky e Directv e aquisições da NET). Qual o futuro deste setor?
O primeiro grande desafio da TV paga no Brasil é resolver o cipoal regulatório onde ela está inserida. Esse novo marco legal deverá definir um papel para as operadoras de infra-estrutura (que poderão ser as teles) e um papel para os diversos outros agentes econômicos que lidarão com o conteúdo audiovisual. O ideal é evitar que estes dois setores não se oligopolizem internamente e que haja um cruzamento de concentrações, de um setor para o outro (por exemplo, com as teles tendo canais de TV paga ou a Globo sendo acionista de uma operadora).
Para isso, é fundamental criar regras que limitem a concentração de propriedade. Nesse campo, o maior desafio é regular a atuação da NET Brasil, que hoje “empacota” os canais de televisão para mais de 80% do mercado de TV paga (NET Serviços, Sky e outras franqueadas). E a Globo é dona de 100% da NET Brasil.
O segundo grande desafio é aumentar a participação do conteúdo nacional nas grades dos canais e conseguir construir canais nacionais (além daqueles da Globosat). Para isso, é preciso ter uma política contundente de cotas. O terceiro desafio é expandir a base atual para além do irrisório índice de 12% de penetração. O quarto desafio é lidar com o cenário de convergência, onde a banda larga passa a ser o carro-chefe do tripleplay (voz, dados e audiovisual).
Com certeza, a entrada das teles e o enfraquecimento relativo da Globo são mudanças no cenário da TV paga brasileira. Mas, sem um novo marco legal, ainda não é possível dizer se estas mudanças representam uma melhoria no modelo atual.
Portanto, é fundamental que a sociedade civil se engaje nessa luta. O que está em jogo não é apenas a regulação da TV paga, hoje disponível para apenas 12% das residências brasileiras, mas a criação de um ecossistema sustentado para a produção do audiovisual nacional.
(*) Entrevista publicada na edição de setembro de 2009 no Jornal dos Economistas – Corecon/RJ.

5 comentários em “Uma visão das comunicações no Brasil”

  1. Car@s amig@s,
    nao assistam o PIG, nao percam seu precioso tempo revirando o lixao da mídia imperialista!
    Como alternativa ao nosso lixao televisivo, segue algumas dicas de tv saudável e inteligente para quem tem uma banda larga disponível:
    Assista ao vivo
    http://www.telesurtv.net/noticias/canal/senalenvivo.php
    http://www.vtv.gov.ve/envivo.html
    A telesur é a multiestatal bolivariana e a VTV é a estatal venezuelana.
    Há tambem os ótimos sítios:
    http://www.vermelho.org.br
    http://www.paulohenriqueamorim.com.br
    com notícias brazucas e mundiais.
    Valeu?
    “Se informe com credibilidade e de quebra aprenda espanhol!”

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