Tragédia no Rio: quem escolhe o risco?

Boa parte das conversas de cariocas e fluminenses nas mesas de bar, nas bancas de jornal ou no jantar em família, nos últimos dias, têm sido pautadas pela discussão sobre se é ou não razoável insistir em morar numa casa construída em área de risco. Como se houvesse uma fronteira perfeitamente demarcada entre risco e não-risco. Caminhar pelas encostas do Borel, guiada por moradores que vão explicando o mapa caótico dos vários programas de urbanização das favelas, é uma aula e tanto sobre a imprecisão dessas fronteiras.

Gislaine de Oliveira, ou Gisa, viu o chão de sua cozinha cair, no Morro do Borel, depois que a parede dos fundos foi destruída pelo desabamento de pedaços de concreto, durante o temporal da madrugada de terça-feira. De onde veio o concreto que destruiu a parede da casa? Aparentemente dos restos de uma construção derrubada pelo governo, anteriormente.

Gisa comprou a casa em novembro do ano passado, depois de aprovada pelos técnicos do PAC. Ela recebeu 9 mil do Programa para sair de sua antiga casa, cuja localização foi considerada de risco. A casa nova, mais segura, segundo os técnicos do governo, custou 10.600 reais. Gisa pagou do próprio bolso a diferença.

Três pessoas morreram e várias ficaram feridas durante a madrugada de terça-feira, na favela do Borel, Zona Norte do Rio de Janeiro. Muitas famílias perderam casas construídas há 20, 30 anos ou até mais. Patrícia Melo e Andréa são irmãs e moram lá desde que nasceram. Construíram suas casas próximas à casa da mãe. Agora, as três estão desabrigadas, junto com oito crianças.

Celso Cesário Cruz chegou a sair da favela, por algum tempo, para viver no Méier, pagando aluguel. Mas a vida apertou. Ele trabalha recolhendo e vendendo material reciclável. Explica que o papelão baixou de R$0,20 para R$ 0,10 e o ferro de R$ 0,30 para R$ 0,21 o quilo. “Isso pra eles comprarem de mim. Se a senhora for lá comprar deles, é 40 a 50 centavos só o quilo do papel. Dá pra arrumar 15 ou 20 reais num dia, quando dá!” Celso voltou para sua antiga casa no Borel e garante que nunca lhe disseram que fosse área de risco. Agora está desabrigado.

Seu Antônio perdeu a casa onde morava há mais de 20 anos. O filho, Sérgio Luiz, casou e construiu ao seu lado. “Durante o Favela Bairro, a prefeitura já tinha dito que era área de risco, que ia tirar nossa casa. Depois, a Defesa Civil interditou, deu um papel dizendo que a casa estava interditada… Mas ir pra onde?”, pergunta Maria da Graça Davi, esposa de Sérgio. Eles esperavam a vez de receber a indenização que lhes permitiria buscar alternativa de moradia.

O que mudou nos últimos 20 anos, para a área tornar-se de risco? Nada, garante Sérgio. Durante o Favela-Bairro, a Prefeitura esvaziou e derrubou todas as casas que existiam acima da dele e reflorestou a encosta. E por que agora desabou? “As chuvas foram mais fortes!”, avalia.

Mas há casas condenadas que não foram derrubadas. Acabaram invadidas por outras famílias. “Essas famílias, agora, estão lá no Ciep, também!”, critica uma moradora.

Em boa parte das áreas onde houve desabamento é possível encontrar as vigas laranjas colocadas pelos técnicos do PAC. Elas serviram para demarcar as áreas consideradas de risco contempladas pelo programa, antes das verbas acabarem. Houve desastres acima e abaixo delas.

Também são muitas as casas rachadas, parcialmente destruídas ou mesmo sob evidente risco, neste momento, pintadas com as inscrições SMH (Secretaria Municipal de Habitação). Essas inscrições indicam a necessidade de desapropriação identificadas pelos técnicos do Favela-Bairro, da prefeitura. Mas muitas não chegaram a ser desapropriadas. As famílias continuam esperando a continuidade do projeto.

Para onde correr do risco?

É verdade que construir na encosta de um morro é sempre uma opção de risco. Aliás, morar no Rio de Janeiro é uma opção de risco. Mas imagine a confusão se o governador decidisse dizer que quem morre de bala perdida ou acidente de trânsito – bem mais provável do que por desabamento de encosta – morreu por escolher o risco!

No final da semana de chuvas, a discussão entre os desabrigados alojados no Ciep da rua São Miguel, no Morro do Borel, era o aluguel social oferecido pela Prefeitura: R$ 250 por três meses. “Estão prometendo para segunda-feira, vamos ver, né?!”, comenta Rose, da associação de moradores, que não consegue disfarçar certa incredulidade com a eficiência do Estado.

Mas os desabrigados acreditam. “A emergência é porque o interesse é desocupar a escola”, explica Gisa. “Tem que ver o que a gente escuta aqui! Ontem eu saí chorando da reunião. Praticamente colocaram a gente contra a parede. Se não aceitar (o aluguel) é rua!”, desabafa outra alojada. A primeira pergunta de todos é a mesma: “E depois de três meses, como fica?” Nelson Aguiar, administrador-regional da Tijuca, afirma que “não vai ficar ao Deus dará”. E quais serão as próximas medidas? “Eu não posso dizer, neste momento, o que vai ser, quais as possibilidades, mas tem muitas, está vindo uma verba de 90 milhões.”

Difícil confiar! Ainda mais para quem está alojado no Ciep, em frente à antiga creche onde, até hoje, ainda vivem desabrigados das enchentes de 1988. Eles receberam três meses de aluguel social e alguns ainda esperam pelas promessas do governo. Se os desabrigados deixarem o Ciep, liberando o espaço público, fica fácil para o governo se desresponsabilizar. O risco é grande.

Portanto, muitos defendem ficar no Ciep e pressionar o governo por alguma solução. “Eles têm é que nos dar outra casa”, reivindica Andréa Alves que foi obrigada pela Defesa Civil a deixar sua casa, com seus seis filhos. Mesmo que seja longe? “Em qualquer lugar, eu só quero ter meu cantinho”, garante. Quanto ao aluguel de 250 reias, ela afirma que não dá pra alugar nenhuma casa no morro. “Só lá em cima, na área de risco”.

“Tem gente que imagina que vai pegar esses 750 reais e reformar a casa!”, protesta uma desabrigada que tenta convencer os outros a não aceitar o aluguel social. Para as famílias que invadiram uma casa abandonada, por exemplo, o aluguel social pode parecer um ótimo negócio. Para quem perdeu uma casa construída ao longo da vida, ou comprada com todas as suas economias, é uma proposta inaceitável. Mas a resistência é difícil. Falta unidade entre os desabrigados e sobram problemas para sobreviver num abrigo improvisado.

Rose, uma das diretoras da Associação de Moradores do Borel, que ajuda na organização do acampamento, não sabe precisar quantas famílias nem quantas crianças estão alojadas no Ciep. “São 300 famílias em áreas de risco”, afirma com alguma segurança. Mas há os que conseguiram se mudar para a casa de algum parente ou amigo e os que insistem em se manter em suas casas. Dentro do Ciep? Umas 50 famílias, cerca de 80 crianças. Mas nestes números ela confia pouco. É difícil contabilizar.

Apesar de chegarem muitas doações, principalmente da própria comunidade e do comércio ao redor, as condições dos alojados são muito precárias. Falta alimento para as crianças, os horários liberados para utilização da cozinha da escola são restritos, faltam calçados, cobertas, há pressão da direção para desocuparem o lugar… “É horrível ficar aqui. A gente passa cada humilhação!”, desabafa Gisa.

Depois de passar algumas horas vendo e ouvindo as condições em que se encontram os alojados no Ciep, já não parece tão insano o vizinho de Gisa que decidiu continuar em casa, apesar do risco. Manter-se no Ciep, afinal, para muitos é uma escolha de luta por segurança e condições de moradia.

Até terça-feira, dia 13, nem quem queria aceitar o alguel social e tinha o laudo técnico na mão tinha conseguido alguma coisa com a Prefeitura. Quarta-feira, dia 14, os desbrigados decidiram fechar o Ciep para cobrar ação da Prefeitura. Ao que parece, enquanto posa para as câmeras prometendo remover – mesmo que à força – milhares de famílias – prefeito e governador esquecem de garantir as condições mínimas para quem já deixou suas casas.

Um comentário sobre “Tragédia no Rio: quem escolhe o risco?”

  1. sou membro de uma igreja evangélica em duque de caxias e ueria saber como faço para levarmos as doações que arrecadamos , pois gostaríamos de levar também um grupo para podermos cantar louvores e orar com as pessoas que estão desbrigadas .
    existe esta possibilidade?

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