Teologia feminista – Inventivos aportes: elementos do legado de três teólogas feministas: Elisabeth Schüssler Fiorenza, Ivone Gebara e Teresa Forcades

“E, no entanto, o mundo se move”… no âmbito macrossocial e ao interno das Igrejas cristãs, notadamente da Igreja Católica Romana, a despeito de um longo processo de profundas desigualdades sociais – incidindo, de forma articulada, em distintas esferas (econômica, política, cultural, religiosa), inclusive nas relações de gênero, em recorrentes relações de exploração, dominação e discriminação, de um lado, mas, por outro lado, também de múltiplas e incessantes formas de resistência e de experiências portadoras de alternatividade…
Por aí muitas águas estão fluindo e ainda por fluir. Tomemos o caso da ousada e inventiva contribuição que nos vêm oferecendo mulheres teólogas, em distintas partes do mundo, em especial as da corrente feminista. Nessas breves linhas, restrinjo-me a acenar ligeiramente para elementos da densa contribuição de três delas: Elizabeth Schüssler Fiorenza, Ivone Gebara e Teresa Forcades.
Do anátema ao diálogo?
Após a chegada do Papa Francisco ao governo da Igreja Católica Romana, há apenas um ano, apresentando-se, desde o início, como Bispo de Roma, vêm-se observando sucessivos sinais de restituição da esperança na mensagem evangélica, na força da Palavra. O que o Papa nos traz, bem o sabemos, não é propriamente algo novo, a não ser quanto ao seu estilo de vida de simplicidade, pobreza, entusiasmo, ternura, extraordinária disposição ao diálogo com todos, sua alegria de viver e de conviver. E isto já é MUITO EXPRESSIVO, considerando as pesadas sombras de retrocesso em relação ao núcleo fundante do Evangelho, que se vem observando em torno de quatro décadas de pontificados reacionários.
Por outro lado, o que tem pregado e testemunhado o Papa Francisco, em seu primeiro ano de governo, ainda que pareça novidade, evoca relevantes aspectos do jeito de muitas das forças vivas da chamada “Igreja na Base” ou, antes, “Igreja dos Pobres”, expressão tão cara ao Papa João XXIII. Na esteira dessas forças vivas da Igreja Católica Romana, incluem-se experiências fecundas tais como a das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), a Teologia da Libertação, o Centro de Estudos Bíblicos (CEBI), as Pequenas Comunidades de Religiosas inseridas no meio popular (PCIs), várias pastorais sociais, entre outras. Todas duramente desencorajadas, perseguidas ou reprimidas, durante o pontificado de seus predecessores imediatos, um dos quais recém-canonizado… não sem protesto de tantos e tantas, seja por conta dos critérios de canonização, seja com relação ao próprio sentido do processo de canonização para os dias de hoje.
Entre os grandes desafios colocados, inclusive à proposta pastoral do Papa Francisco, sintetizada em sua recente Exortação Apostólica “Evangelii Gaudium”, um tem a ver com a enorme dívida da Igreja Católica Romana (e de outras igrejas cristãs), ao longo de séculos!, em relação às Mulheres. Seja quanto ao reconhecimento de seus direitos à plena cidadania ao interno da Igreja (não bastasse sua marginalização no quadro das sociedades), de que é prova sua exclusão das tomadas de decisões em questões fundamentais da vida eclesial na qual elas são maioria. A partir de quando, em relação às mesmas, vai-se passar do anátema ao diálogo?
Reclamos da Teologia Feminista
Desta questão trata a Teologia Feminista que, estando ao mesmo tempo próxima e com nuanças diferenciadas da Teologia da Libertação, constitui uma outra fecunda experiência eclesial (não apenas no interior da Igreja Católica). Sobretudo a partir dos anos 60 e 70, e de modo ainda mais fecundo, a partir dos anos 80, vem desempenhando um papel-chave nas incessantes buscas de reforma da Igreja Católica, no caso, de modo a tomar a sério o protagonismo das mulheres na tomada de decisões nas sociedades e nas igrejas cristãs, em especial na Igreja Católica Romana.
Desde suas origens, a Teologia Feminista encontra muitas afinidades fundamentais com a Teologia da Libertação. Em vários casos, dela surgiram figuras de referência da Teologia Feminista. Dentre essas afinidades destacam-se: o partir da realidade concreta da vida cotidiana, devidamente contextualizada; a valorização da vida nas suas distintas manifestações; o compromisso com a causa da libertação dos pobres, sendo estes os protagonistas de sua libertação; o modo inovador de interpretar a Bíblia; a luta por mudanças significativas nas igrejas e nas sociedades…
Reconhecidas essas e outras afinidades entre a Teologia Feminista e a Teologia da Libertação, importa também ter presentes suas diferenças, inclusive no próprio lidar com as afinidades. A Teologia Feminista pode até despontar como uma das múltiplas expressões das Teologias da Libertação, mas é fundamental que, ao se fazer isto, não se proceda de modo a ocultar ou a escamotear suas diferenças. Uma delas: a Teologia da Libertação, salvo raras exceções, tem sido protagonizada, desde suas origens, fundamentalmente por homens, e desde a ótica predominante dos varões, enquanto a Teologia Feminista empenha-se sobretudo em identificar/descobrir e promover, não apenas o protagonismo das mulheres como produtoras de saberes (também) teológicos, mas igualmente desde a perspectiva feminista, sem ignorar a participação solidária dos homens nessa aventura, a partir mesmo das muitas pesquisas bíblicas enfocando o protagonismo das mulheres nas comunidades cristãs primitivas. A isto voltarei mais adiante.
Breve notícia biobibliográfica das teólogas em apreço
Como acima mencionado, aqui trato especificamente de apresentar elementos de contribuição da Teologia Feminista, a partir do aporte de três teólogas que gozam de notável respeitabilidade no universo da Teologia Feminista: Elisabeth Schüssler, Ivone Gebara e Teresa Forcades. Comecemos por uma breve notícia biobibliográfica sobre cada uma delas.
I) Elisabeth Schüssler Fiorenza nasceu na Romênia, em 1938, e, durante a Segunda Guerra Mundial, foi morar com sua família no Oeste da Alemanha, aí tendo tido sua formação acadêmica. Em 1963 – já no tempo do Concílio Vaticano II -, veio a obter sua Licenciatura em Teologia, pela Universidade de Würzburg, num tempo em que era algo incomum ter-se alguma mulher inscrita num curso de teologia em meio a homens que faziam teologia em função de se tornarem padres. A perspectiva de Elisabeth, porém, era distinta: queria tornar-se uma teóloga leiga, mais do que em função da Igreja Católica Romana, a serviço do mundo. Sua tese de Licenciatura foi publicada em 1964, sob o título “Der vergessene Partner: Grundlagen, Tatsachen und Möglichkeit der beruflichen Mitarbeit der Frau in der Heilssorge der Kirche” (“As parceiros esquecidas: fundamentos, práticas e possiblidades de contribuição profissional da Mulher nas inquietações com a salvação da Igreja”). Na Universidade de Würzburg, também concluiu seu Mestrado em Teologia, enquanto em Münster, obteve seu Doutorado, anos depois, com a tese denominada “Priester für Gott: Studien zum Herrschafts- und Priestermotiv in der Apokalyse” (Padre para Deus: estudos sobre o Reino e o motivo do presbiterato no Apocalipse”). Passou a protagonizar um período de intensa produção teológica, na perspectiva feminista. Dentre seus principais livros, podem ser destacados: “O Apocalipse” (1976), “Convite ao Livro do Apocalipse: comentário sobre o Livro do Apocalipse com texto integral da Bíblia de Jerusalém (1981), “Em memória dela: uma reconstrução teológica feminista das origens do Cristianismo” (1983), “Pão Não Pedra: o desafio da interpretação bíblica feminista” (1992), “Discipulado de Iguais: uma ekklesiologia feminista crítica da Libertação” (1993), “A Força da Palavra: as Escrituras e a retórica do Império” (2007), “Horizontes em transformação: explorações na interpretação feminista” (2013).
Com base em parte de sua obra, e, em especial, numa de suas conferências, cuido de sublinhar aspectos que considero mais relevantes de seu legado.
De fato, entre as figuras de referência mais notórias da Teologia Feminista, Elisabeth Schüssler Fiorenza ocupa um lugar de destaque até entre as pioneiras (a exemplo de Dorothee Sölle, Ivone Gebara) e as mais recentes (como Teresa Forcades). Trata-se de uma teóloga e pesquisadora internacionalmente respeitada e reconhecida, especialmente no campo da epistemologia e da hermenêutica bíblica e no da teologia feminista. É co-fundadora dos famosos Cadernos de Estudos Feministas em Religião e colaboradora da conhecida revista de teologia Concilium. Autora de vasta produção bibliográfica, inclusive com livros traduzidos em cerca de doze línguas.
Recentemente, pus-me a ouvir uma de suas conferências disponibilizadas na internet (cf. http://www.youtube.com/watch?v=dUDlV8B1aHw ),
pronunciada em 2007, da qual vários aspectos gostaria de sublinhar, nas notas que seguem. Ela retomava, então, pontos-chave do seu livro The Power of Word and the Rhetoric of Empire (“A Força da Palavra e a Retórica do Império”).
Na ocasião, coube a Dra. Jane Via, vice-coordenadora do evento, fazer uma tocante apresentação da conferencista, destacando, entre outros pontos, que ”estamos diante de uma mulher que, ao longo de sua vida, pelo seu trabalho, tem ajudado a mudar o mundo.”
“Se vocês” – prossegue a apresentadora – “não forem afetados pelo desastre global e se o nosso mundo sobreviver nesses próximos cem anos, aqueles que estiverem vivos poderão olhar para trás, e para esta noite, e dizer: Eu estava lá, e vi Elisabeth Schüssler, eu a ouvi falar.”
Sublinha, a seguir, sua contribuição à Teologia Feminista, desde suas origens: “Nos anos 1960, quando o pensamento feminista estava apenas emergindo, no contexto da religião, e quando o feminismo era apenas um vislumbre na escuridão do pensamento patriarcal inconsciente e pervasivo, lá estava Elisabeth Schüssler.”
E na mencionada conferência, propriamente dita, que aspectos convém realçar, de passagem?
Como já dito, seu propósito é de destacar algumas questões do seu livro “A Força da Sagrada Escritura e o a retórica do Império”. Lembra que, em grande parte dos anos 1970, estendendo-se pelos anos 80 e 90, circulou um discurso imperial, de caráter político, com tonalidade religiosa, servindo-se até de textos bíblicos, com propósito de legitimar, com tal discurso apelativo à linguagem religiosa, a política militarista dos Estados Unidos e das superpotências mundiais.
A quem se dá ao trabalho de conferir não poucos discursos de autoridades dos países das grandes potências – notadamente em tempos de guerra -, há de perceber como a linguagem religiosa, em geral, e, em particular, a Bíblia tem desempenhado uma parte importante nos discursos públicos. Daí, conclui Elisabeth Schüssler Fiorenza, a importância de que especialistas em Bíblia exerçam sua tarefa crítica, especialmente quando o Império recorre abusivamente à linguagem bíblica a serviço dos seus interesses. Lembra, a justo título, que o discurso bíblico pôde prestar-se, e continua podendo, a ser interpretada numa linguagem a serviço dos interesses colonialistas. Tanto a expansão colonialista quanto a discriminação sexista.
Faz parte da estratégia das grandes potências recorrer ao imaginário coletivo, às consciências individuais e grupais, como meio de ideologização. Também, a formulações teológicas, inclusive usando citações bíblicas a serviço dos interesses hegemônicos.
Na mencionada conferência, Elisabeth Schüssler Fiorenza, em busca de analisar esse processo de dominação das consciências, trata de sublinhar três aspectos: primeiro, situa o contexto histórico em que se inscreve a origem desse processo; em seguida, cuida de expor os fundamentos de sua própria abordagem analítica; em terceiro lugar, cuida de desconstruir a retórica do Império, na exploração das Escrituras, e, por último, propõe uma nova interpretação da Sagrada Escritura, ajudando-nos a desconstruir tal estratégia imperial de lidar com as Escrituras, a serviço dos seus interesses.
Quem se dá ao trabalho de rastrear a literatura pertinente (disponível em várias línguas), percebe que tal têm sido a qualidade e o volume de produção teológica por figuras de referência da Teologia Feminista, a exemplo de Elisabeth Schüssler Fiorenza, que não deixa de causar estranhamento uma declaração, feita de passagem, numa entrevista, pelo bom Papa Francisco, acerca do lugar da Mulher na Igreja Católica, acenando para a necessidade de uma “teologia da mulher”. É claro que, por mais empenhado que se queira, um papa não pode conhecer tudo. Podem escapar-lhe até coisas importantes, como foi o caso.
Com efeito, revela-se impressionante a produção teológica abordada por mulheres de grande envergadura teórica, também no campo da Teologia. E de reconhecida qualidade, em especial por conta de sua inovação. Um único exemplo: ainda não se tem uma dimensão satisfatória, por exemplo, da categoria “Quiriarcado” (“Kyriarchy”), cunhada por Elisabeth Schüssler Fiorenza. Por meio desta categoria inovadora, esta teóloga vem assumindo, já há algum tempo, que as formas de opressão compreendidas nas relações de gênero devem ser compreendidas num contexto bem mais amplo do que permite a categoria gênero, uma vez que as relações de gênero se acham organicamente vinculadas a, e interagentes com formas outras de exploração, dominação e discriminação presentes em outras situações socialmente produzidas: da esfera econômica às relações étnicas; da esfera da política às manifestações culturais. (cf. por ex.:
http://muse.jhu.edu/journals/jfs/summary/v025/25.1.pui-lan.html)
Suas pesquisas se acham associadas às de muitas outras teólogas feministas, a exemplo das teólogas Luise Schottroff, Silvia Schroer e Marie Theres Wacker, autoras do excelente livro “Exegese Feminista – Resultado de pesquisas bíblicas, a partir da perspectiva de mulheres” (cf.
http://books.google.com.br/books?id=SbBIR27O59oC&pg=PA51&lpg=PA51&dq=quiriarcado&source=bl&ots=IWP4vr6Wko&sig=finMW_0CPZ36cisC0x8RgRRfIq4&hl=pt-PT&sa=X&ei=lA4uU7rsAafV0QHSmIGgDA&ved=0CDQQ6AEwAQ#v=onepage&q=quiriarcado&f=false )
Por ocasião das comemorações de seu 70º aniversário, foi publicada uma avaliação percuciente de sua contribuição, a densidade de suas formulações teológicas, desde a perspectiva feminista, cumprindo destacar seu notável aporte tanto à teologia feminista quanto aos estudos de hermenêutica bíblica feminista, bem como sua ampla contribuição aos estudos pós-coloniais do Cristianismo.
(cf. http://muse.jhu.edu/journals/jfs/summary/v025/25.1.pui-lan.html)
II) Ivone Gebara – É brasileira, nascida em São Paulo, em 1944. É Religiosa, da Congregação das Irmãs de Nossa Senhora, Cônegas de Santo Agostinho, tendo entrado para a vida religiosa aos 22 anos, já após sua graduação em Filosofia. Parte expressiva de sua vida – mais de trinta anos! – passou no Nordeste do Brasil, mais precisamente convivendo com os pobres de Camaragibe, na região metropolitana de Recife, Pernambuco, seja como integrante da Equipe de formadores atuando junto a Dom Helder Câmara, seja como professora do Instituto de Teologia do Recife (ITER), por dezessete anos, até ao fechamento do mesmo, em 1989, por determinação do Vaticano sob João Paulo II, seja assessorando grupos de jovens teólogoas (como em João Pessoa), associações de mulheres, comunidades de religiosas, grupos de leigas e leigos, em diferentes partes do Nordeste, do Brasil, da América Latina, da América do Norte… No ITER, Ivone Gebara ensinava Antropologia Filosófica e Teologia Sistemática. (cf.
https://www.youtube.com/watch?v=-qAy8iRMuAo ).
(cf. entrevista sua, concedida a Mônica Teixeira, em 2013, no Programa “Complicações”).
Obteve seu Doutorado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Doutorado em Ciências das Religiões pela Universidade Católica de Lovaina, Bélgica.
Após o encerramento forçado das atividades do ITER, dedica-se a pesquisar, a escrever e a ministrar palestras a convite de diversas instituições acadêmicas e teológicas, nos mais distintos países, inclusive da América do Norte, da América Latina e da Europa. Tem-se dedicado, também, à publicação de livros (cerca de trinta) e de numerosos artigos.
Tem apreço pela Teologia da Libertação, comprometida que sempre foi com a causa libertadora dos pobres – algo bem testemunhado em sua convivência com o povo simples em Camaragibe, em especial com as mulheres das classes populares. Mas sentia-se incomodada com a posição de certos teólogos da Libertação, que, sabendo-a empenhada na causa feminista, entendiam ser a teologia feminista algo de fora, dos Estados Unidos, sem muito a ver com a causa dos pobres. Atitude que, em vez de desencorajá-la, passou a ser enfrentada como um desafio, e passou a aprofundar cada vez mais as questões-chave da Teologia Feminista.
Passa, assim, a pesquisar, a ministrar cursos, a pronunciar conferências, além de escrever, interessada que é por hermenêutica bíblica, na perspectiva feminista, novas referências ecoteológicas, além de fundamentos e novos referenciais teológicos em relação ao discurso religioso. Não hesita em tomar a defesa da LCWR (a conferência que reúne as lideranças das Religiosas dos Estados Unidos), frente à perseguição movida pela Congregação da Doutrina da Fé do, de sombrias evocações, já tendo ela própria sido alvo de punição pelo Vaticano, por suas posições em relação ao aborto. (cf., por ex.:
https://www.youtube.com/watch?v=-qAy8iRMuAo ). Soa(va) sempre estranho a ouvidos patriarcais (ou “quiriarcais”) que haja algumas abelhas a produzirem mel com sabor diferenciado da norma (normose)…
De suas pesquisas têm resultado relevantes publicações de livros e artigos. Dentre seus cerca de trinta livros, destacam-se:
– “Trindade: palavra sobre coisas velhas e novas. Uma perspectiva ecofeminista“ (1994);
– “Teologia Ecofeminsta. Ensaios para repensar o Conhecimento e a Religão” (1999);
– “Rompendo o silêncio. Uma fenomenologia feminista do Mal” (2000);
– “A Mobilidade da Senzala Feminina. Mulheres Nordestinas, Vida Melhor e Senzala (2000);
– “As águas do meu poço. Reflexões sobre experiências de liberdade (2005);
– “O que é Teologia Feminista” (2007);
– “O que é Cristianismo” (2009)
Em recente entrevista sua a Mônica Teixeira, do Programa “Complicações” (ver “link” acima), ao responder à pergunta sobre o que complica, na Igreja Católica?, ela sublinha que as complicações não vêm apenas da sociedade em direção à Igreja, mas “algumas posturas da Igreja também trazem complicações para a sociedade.” E, provocada, pontua várias dessas complicações:
– a estrutura da Igreja (forma e conteúdos) não permite assimilar os valores da Democracia, seus espaços. Funciona com base em uma concepção teocêntrica;
– por trás desta postura antidemocrática (pelo menos “intra-muros”), estão seu conceito de “Poder” e seu conceito de “Deus”, rigidamente trabalhados, de modo a não permitir-lhe abrir-se à possibilidade de uma pluralidade observável na experiência de tantos povos;
– embora ao interno da própria Igreja apareça uma certa diversidade de concepções de “Poder” e de “Deus”, a oficialidade da Igreja Católica segue engessada em seu propósito de homogeneização, de uniformização;
– empenha-se obsessivamente em defender que seu conceito de “Deus” funda-se na vontade divida, da qual só ela é a legítima intérprete e guardiã;
– tal como sucedeu ao longo do processo de colonização, inclusive na América Latina, seu papel segue sendo o de tutelar os fiéis, parte destes não raro aferrados a esta mesma idéia: para a oficialidade falar de batizados implica falar de toda a sociedade…;
– em decorrência dessa atitude de tutela, assimilada e reproduzida pela hierarquia e certos grupos de leigos, concede-se à hierarquia um poder extraordinário de controlar as consciências, ao tempo em que desenvolve muito pouco valores como a autonomia, “convida muito pouco as pessoas a refletirem sobre suas próprias crenças”;
– tudo isto gera conflitos, porque a sociedade hoje, no Brasil e no mundo, já não aceita passivamente essa tutela sobre a sociedade, em matéria de decisões sociais.
– essa tutela se manifesta de várias formas. Uma delas é por meio dos programas televisivos emitidos especialmente pelas igrejas neopentecostais e também pela Igreja Católica. Aí há um forte perigo de dominação das consciências, à medida que expressivas parcelas das massas populares vão em busca de curas e de milagres, tornando-se reféns desse controle de consciências. Isto não quer dizer negar a característica da condição humana, em busca de amparo junto a forças superiores para os seus desafios.
(cf. http://www.youtube.com/watch?v=Bfm-p-tonnU ).
“Eu acho que já existem alguns sinais de um resgate da tradição cristã, a partir de outras chaves de leitura, como a chave feminista, a chave ecológica. Essas chaves já percebem que há muitos valores na tradição cristã que poderiam ser afirmados de uma outra maneira. (…) Qual é a crítica que a Teologia Feminista faz às teologias cristãs – não é apenas á teologia católica? Você faz uma imagem de um Deus que é, na realidade, a imagem do rei, do imperador, ou do governador ou do presidente ou da autoridade masculina, de tal forma que, quando você pergunta – e eu fiz isso muitas vezes com grupos populares: “Deus é homem ou é mulher?” (…) Imediatamente, a resposta é: “É homem!”.
(cf. http://www.youtube.com/watch?v=Bfm-p-tonnU ).
Importa ressaltar, como o fez a própria Ivone Gebara, que não se trata de uma questão meramente conceitual, abstrata. Isto tem profundas consequências práticas, no cotidiano eclesial, bem como na forma de gestão, em geral, especialmente quando se trata de quem decide. Do fato concreto da representação oficial da Igreja ser masculina, decorrem situações graves. Quem decide os rumos da Igreja nos concílios, nos sínodos? Por que é a mulher nunca fala em nome da Igreja?
Dentre as contribuições oferecidas pela teóloga Ivone Gebara ao novo pensar teológico que desponta, pelo menos três aspectos merecem destaque privilegiado:
– repensar nossos conceito de “Deus” e de “Poder”;
– a força transformadora da chave feminista;
– o potencial inovador da chave ecológica.
1) Quanto ao primeiro aspecto, já não é mais aceitável, para as teologias cristãs, manter um conceito de “Deus” como um ser no além, fora de nós, a fazer milagres por nós, ou a mudar o mundo sem nossa participação. É fundamental assumirmos uma imagem de um Deus como mistério presente em nós, os humanos, mas presente também nos elementos da natureza, na comunidade dos viventes e, de forma privilegiada, nos humanos. Esta força, esta energia a nos inspirar luz e coragem para enfrentarmos os nossos desafios.
2) Já não é mais aceitável ignorar as mulheres como co-protagonistas da vida da Igreja. Já não basta um certo discurso de reconhecimento de que elas são importantes. Urge mudar profundamente a forma de organização eclesial, de modo a incluí-las nas instâncias oficiais de decisão. Já não basta convidar algumas delas como “observadoras” ou figuras de bastidores, como sói acontecer em concílios e sínodos. Há que se reconhecer seu lugar legítimo de protagonistas em todas as instâncias decisórias da vida eclesial.
3) Eis um ponto comum entre Teologia da Libertação e Teologia Feminista! De fato, já há algum tempo, a dimensão sócio-ambiental vem sendo assumida por ambas, como expressão, resultado e reelaboração das experiências mais recentes que se dão no seio da sociedade e das igrejas cristãs, em seu leque de organizações de base, notadamente graças ao empenho mais explícito de algumas figuras representativas dessas correntes, das quais podemos destacar as figuras de Ivone Gebara (Teologia Ecofeminista) e Leonardo Boff (Teologia da Libertação). Graças às contribuições inventivas de Ivone Gebara, por exemplo, temos podido avançar, mais e mais, a consciência da responsabilidade dos Humanos na produção de catástrofes sócio-ambientais. Do ponto de vista especificamente teológico, tem sido de importância capital a contribuição da hermenêutica bíblica, no esforço gigantesco de releitura dos textos sagrados, para uma necessária ressignificação dos relatos bíblicos e de outros textos sagrados.
Em uma de suas intervenções na Argentina – dentre tantas que é convidada a fazer, pela América Latina -, em solidariedade às lutas das “Madres de La Plaza de Mayo”, Ivone Gebara advertia para o risco de certas correntes de pensamento baixarem a guarda em relação aos avanços das conquistas das mulheres, sob o pretexto de que elas já dispõem de muitos espaços (no Parlamento, no Executivo, etc.), de sorte que se tem que trabalhar com outras prioridades… Equívoco! As conquistas logradas até aqui estão longe de fazerem justiça à condição feminina, nos diferentes espaços públicos. A hora é de seguir avançando bem mais e pelas mais distintas esferas da realidade. (Cf. https://www.youtube.com/watch?v=9k5nrcC0Tf0 ).
III) Teresa Forcades di Vila – Tem um percurso atípico, esta teóloga feminista, de geração mais recente. Catalã, nascida em Barcelona (Espanha), em 1966, de família sem tradição católica ou mesmo sem maior apelo ao Sagrado. “Só aos quinzes anos é que li o Evangelho.” Um dos elementos biográficos a sinalizar para sua trajetória religiosa – relativamente tardia, aliás, pois somente após seu curso de Medicina, já aos 31 anos, é que entra para a vida religiosa – tem a ver com parte fundamental de sua educação escolar, feita num colégio particular de freiras. Mas, isto não se dá de modo automático nem imediato.
Após seu curso de Medicina iniciado em Barcelona, segue para os Estados Unidos, onde prossegue seu curso, na área de Saúde Pública, concluído o qual decide aprofundar seus estudos, desta feita, inscrevendo-se num curso de Doutorado nesta área. Só a partir daí, decide entrar para a vida religiosa – das Irmãs Beneditinas, em Barcelona. Desponta sua segunda paixão pelos estudos, agora na área da Teologia, em que também obtém seu Doutorado, em 2009.
Uma carreira acadêmica fulminante e também atípica, dada a feiiz interação entre as áreas de saúde, do feminismo e da teologia, em aceso diálogo com as quais vai também incursionar pelas ciências sociais, ao menos no plano da militância ético-política. Disto dão prova seu empenho em defesa do processo constituinte catalão, como também intervenções suas, a partir da área da saúde, como a entrevista concedida, na Venezuela, acerca da polêmica sobre o caráter da gripe/influenza H1N1, e de consequências políticas daí decorrentes, ou como em outra intervenção, em entrevista concedida a um Programa de uma emissora espanhola “Tierra de Sueños”, sobre a tendência de mercantilização da saúde, inclusive pela onda de medicalização da sociedade, tendência bem expressa numa formulação feita por Ivan Illich, por ocasião de uma conferência: “A obsessão pela saúde converteu-se numa patologia.” (cf. http://www.youtube.com/watch?v=AqwCNrg8HIQ ). A este respeito específico, vale a pena ler o denso artigo de Ivan Illicha, “La obsesión por la salud perfecta, un fator patógeno predominante” em http://www.taichichuaneskola.com/pdf/la_obsesion_por_la_salud_perfecta.pdf
Teresa Forcades di Vila apresenta, com efeito, uma trajetória impactante, que, de certo modo, explica parte significativa de suas concepções. Na entrevista concedida a “Vida de Sueño, Treesa Forcades di Vila analisa os determinantes sociais da saúde, bem como os dilemas da Igreja Católcia Romana. (cf. https://www.youtube.com/watch?v=TaeBaZFk4AI ).
Uma característica comum entre as teólogas feministas de referência internacional é sua notável mobilidade por distintos países. É também o caso de Teresa Forcades, solícita a sucessivos convites para participar dos mais diferentes espaços de reflexão e de interlocução, tal como lhe ocorreu, também, por ocasião do I Encontro Ecuménico de Espiritualidad Liberadora, na Venezuela. Sua presença é também reclamada pelos meios de comunicação locais (cf. entrevista no “link”;
http://www.youtube.com/watch?v=LWHGdhCT_hU ). Dada, antes a densidade do que a intensidade de suas participações em espaços similares, não surpreende o estigma de “la monja roja”, que lhe é atribuído. Por ocasião desse encontro na Venezuela, em 2012, destinado a repensar ecumenicamente
– e sob a inspiração da Teologia da Libertação – as distintas expressões de espiritualidade libertadora. Daí se explica, também, o interesse do entrevistador pela Teologia da Libertação, a começar do seu significado. Forcades não hesita em afirmar que a Teologia da Libertação corresponde “ao que há de mais original e fundamental do Cristianismo. Sua consistência reside na proclamação de que não se pode falar de Deus, sem falar-se da realidade de justiça social.” E passa a fundamentar biblicamente, a partir de Mateus, 25, onde vem expresso o critério fundamental do Evangelho acerca da proposta de Jesus: “Eu tive fome, e me destes de comer…” Ou seja: a primazia do critério consiste na defesa e promoção da justiça social. Em outra passagem, isto assim é dito: “Procurai, antes de tudo, o Reino de Deus e sua justiça, e tudo o mais vos será dado por acréscimo.” (cf. Mt 6, 33).
O entrevistador também mostrou-se interessado em saber acerca de uma aparente retomada da Teologia da Libertação, após anos e anos de perseguição. A este propósito, importa frisar, na resposta da teóloga Teresa Forcades dos aspectos: primeiro, com relação a essa retomada que acontece ainda no âmbito das correntezas subterrâneas, que se ela se dá “de baixo para cima”, também nesse momento, não como dádiva da alta hierarquia. Em segundo lugar, em que pese algum sinal de aparente simpatia emitido, em 2012, por um membro da hierarquia, mais precisamente pelo Cardeal Gerhard Müller, prefeito da Congregação da Doutrina da Fé, ao tempo em que manifesta cuidado de extrojetar da Teologia da Libertação toda a influência do Marxismo (ver, por ex., http://www.aciprensa.com/noticias/la-teologia-de-la-liberacion-necesito-desmarcarse-del-marxismo-dice-cardenal-muller-50384/#.U3I0QoFdVKY ), isto não autoriza a pensar numa aprovação…
A este respeito, surge, na entrevista mencionada, a questão relativa à acusação de marxismo sofrida pela Teologia da Libertação. Ela responde que tem reinado muita confusão por aí, seja por conta da enorme ambiguidade sobre o que os acusadores tomam como Marxismo, seja em função das distintas versões caricaturais sobre o mesmo. Quanto a ela, prefere inspirar-se na leitura criteriosa feita pelo filósofo Enrique Dussel, uma das referências-chave dos fundamentos filosóficos da Teologia da Libertação. Dussel, reconhecido especialista em Marx, tratou, em um de seus livros, de recuperar as “metáforas teológicas de Marx”, para o que muito se valeu dos antigos profetas, de quem recolhe preciosos elementos para insurgir-se contra a alienação, característica da sociedade capitalista.
Com relação ao seu aporte mais expressamente específico na área da Teologia Feminista, desde alguns de seus textos, entrevistas e exposições, cumpre destacar alguns aspectos centrais. Antes de tudo, vale destacar suas principais obras:
– La Trinitat avui (A Trindade hoje). Publicacions de l´Abadia de Montserrat, 2005;
– Els Crims de les grans companie farmacèutiques (Os Crimes das grandes companhias farmacêuticas), Cristianisme i Justicia, 2006;
– La teologia feminista en la historia. Fragmenta Editoria, 2012.
Uma preocupação inicial que levanta, tem a ver com o que se entende por Teologia Feminista. Após inscrevê-la no quadro das teologias críticas, a ela se refere como produção de uma reflexão tecida a partir do chão da realidade concreta, abordando as distintas formas da presença do Mistério na história, na vida humana, de mulheres e de homens. Como teóloga feminista, também Forcades di Vila cuida de trazer a lume, desde a perpectiva feminista, todo um longo percurso da produção teológica em que o sujeito feminino resutou (e resulta ainda) grandemente invisibilizado, ocultado. Hoje como ontem, as pesquisas dão conta da proeminência de figuras femininas, inclusive teólogas cujo lugar, porém, resultou apagado ou ignorado, em virtude de sucessivos modelos de patriarcado, ao longo da História. Mulheres teóloga houve, sim, na Idade Antiga, na Idade Média, na Idade Moderna e na Idade Contemporânea – mostra em seu livro sobre a teologia feminista na história – que tiveram uma notável contribuição, reconhecida até por alguns homens de grande notoriedade da história da Igreja.
Eis por que também faz questão de distinguir entre teologia feminista e teologia feminina. Esta tem sempre como sujeito uma mulher no exercício da produção teológica, não necessariamente na perspectiva da Teologia Feminista, pois, no caso de uma teologia feminina, a perspectiva pode ser até de concordância com a teologia dominante, feita sob a ótica patriarcal. E também pode suceder que se trate de uma teologia que endosse a dominação das mulheres sobre os homens. Não se trata, pois, de Teologia Feminista. Esta, além de poder até ser produzida por varões, ainda que normalmente o seja por mulheres, ainda assim a perspectiva tem que ser sempre em defesa da igualdade e de combate a qualquer dominação, seja a dos varões sobre as mulheres, seja a destas sobre os varões. Trata-se, aqui, de uma ótica de horizontalidade e de combate de privilégios, de parte a parte. Dá como exemplo a figura de São Gregório Nazienzo, do século III, que denunciava o privilégio de varões sobre as mulheres. Por ex., denunciava como opressivo o tratamento da época, de, por um lado, condenar-se a mulher quando flagrada em adultério, e, por outro, de nada cobrar-se do homem adúltero. Isto é uma perspectiva teológica feminista.
Outro aspecto relevante está voltado para o seu itinerário metodológico. Sempre parte de uma experiência concreta vivenciada. Em seguida, trata-se de posicionar-se teologicamente – e aqui a hermenêutica bíblica, por exemplo, tem sido um instrumento de valiosa força heurística, no caso desta teóloga e das demais. Por fim, cuida-se de interpelar a instituição responsável por zelar pelo respeito ao depósito da fé. Aqui se produz uma situação de tensão entre o estabelecido e o apelo de mudança. Tensão que não deve ser interpretada como algo negativo, mas como um momento de redefinição quanto ao que deve merecer renovação.
A partir de tal itinerário metodológico, o quê dizer do seu aporte, no tocante aos fundamentos mesmos da problemática nuclear suscitada pela Teologia Feminista: por que se batem as teólogas feministas e o que apontam como fundamento bíblico-teológico de suas inquietações-chave?
Quanto à primeira pergunta, parte-se da constatação do estatuto marginal ocupado pelas mulheres na Igreja (e na sociedade). Elas se acham excluídas das decisões centrais, nas distintas instâncias da Igreja Católica Romana. Neste plano, as decisões são prerrogativa exclusiva da hierarquia, constituída apenas por varões:
– as mulheres não figuram como protagonistas nos concílios, nos sínodos, nas assembleias das conferências episcopais nacionais e regionais;
– as mulheres não integram as instâncias decisórias diocesanas e paroquiais: estão fora dos respectivos órgãos colegiados;
– é vedado às mulheres vocacionadas aos ministérios ordenados o direito de ordenação (diaconal, presbiteral, episcopal), na Igreja Católica Romana.
Com relação à segunda questão, Teresa Forcades indaga dos fundamentos bíblico-teológicos que respaldem tal situação. Na referida entrevista, ela afirma: “Há uma contradição concreta: o que acontece com as mulheres, quando descubro pelo Evangelho que são chamadas à plenitude em nada inferior à dos varões, e descubro que, na sociedade e na Igreja, em certos âmbitos, a coisa tem caminhado de uma forma que considero injustificável” (cf. http://www.tvplayvideos.com/1,4wMGt2-80E8/educacion/TEOLOG%C3%8DA-DE-LA-LIBERACI%C3%93N ).
Quais as principais contribuições da teóloga Teresa Forcades di Vila à Teologia Feminista? Destaco os seguintes aspectos de seu aporte:
– exercita, com rara maestria, distintas interfaces de saberes diversos, sabendo costurá-los adequadamente;
– expressa ou implicitamente, confere consequência efetiva ao aporte da teóloga Elisabeth Schüssler Fiorenza quanto à contribuição oferecida pela teóloga Ivone Gebara, em sua heurística formulação da categoria “Kyryarchy” (Kiriarquia)
– interconecta bem, em seu discurso (falas e textos), distintas áreas de saberes, a partir de sua área original, o campo das ciências da saúde.
João Pessoa, 14 de maio de 2014.

2 comentários em “Teologia feminista – Inventivos aportes: elementos do legado de três teólogas feministas: Elisabeth Schüssler Fiorenza, Ivone Gebara e Teresa Forcades”

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