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Francisco de Assis e os movimentos pauperísticos da Idade Média: confluências e dissonâncias

Os Modernistas acabaram por impingir à Idade Média um designativo que não lhe faz justiça: teria sido um longo período de trevas. Como toda época, também o Medievo comporta luzes e sombras; umas mais do que outras. É de justiça contestar essa carga pejorativa ainda hoje imputada à Idade Média. Com efeito, a Baixa Idade Média comporta, mais que a Modernidade, marcas luminosas sobremaneira edificantes, justamente por expressarem a face tenebrosa então vigente.

Do século XII ao século XV, produziram-se durante esse período, ocorrências excepcionais, dentre as quais aqui nos cingiremos aos movimento pauperísticos (também chamados de pobres de Lyon) especial (mas não exclusivamente) no que diz respeito aos aspectos confluentes e eventualmente dissonantes presentes nas experiências profético missionárias protagonizadas pelos Valdenses e pelo legado de Francisco de Assis e seus primeiros companheiros e futuros seguidores (Albigenses, os “Apostolici”, Segarelli, Fra Dolcino, Begardos, Beguinas, reformadores, como Wyclitt, Jan Hus, Thomas Müntzer, sem esquecermos, noutro plano, a saga irreverente dos Goliardos…).

Como sói ocorrer, em situações similares, 1) começamos por fornecer alguns elementos axiais que compõem o cenário sócio-histórico do período-alvo destas linhas; 2) trazemos sucintamente traços biográficos e do legado das figuras de maior referência dos movimentos populares da época em estudo; 3) Vamos pôr em relevo alguns pontos de “afinidades eletivas” (Weber) e de dissonância entre lideranças e bases dos movimentos destacados; 4) Tratamos de sublinhar certas lições que possam inspirar os movimentos populares da atualidade, frente aos desafios hodiernos.

 

1. Traços axiais da Baixa Idade Média

 

Tal qualquer outro período histórico , também a Baixa Idade Média conheceu fatos e episódios sombrios dentre os quais as cruzadas sangrentas, a violenta teocracia conduzida pelos hierarcas (papas, bispos…), a famigerada Inquisição (que foi ainda mais grave nos inícios da Idade Moderna, na Espanha e Portugal), o próprio modo de produção então dominante (o feudalismo). Ao mesmo tempo, importa relembrar um conjunto alvissareiro de fatos e acontecimentos de notória relevância, quer de caráter econômico, quer de ordem política, quer de natureza cultural. Há que, com efeito, se tomar em conta o processo dos próprios modos de produção então vigentes. O sistema feudal foi cedendo terreno à germinação de sementes de um capitalismo comercial – o Mercantilismo – , graças ao crescente processo de aparecimento de pequenos centros urbanos, como as comunas. Estas passam a abrigar, progressivamente, crescentes segmentos da população rural – servos que se vão libertando dos grilhões feudais, que irão constituir um relevante contingente de artesãos, comerciantes ganham força, e sobretudo as desenvolvidas por grandes corporações atraindo no campo da navegação e das grandes viagens de além-mar.

 

No plano político, em dinâmica, relação com a esfera econômica e cultural, novos sujeitos históricos vão emergindo, e passam a disputar cada vez mais – e com vantagens crescentes – com os antigos senhores feudais. Estes ao mesmo tempo, passam a perder força no terreno cultural para o nascente sujeito histórico, caracterizado pela ascenso das atividades mercantilistas próprias do início do capitalismo.

 

Cumpre, não menos, ressaltar, a qualidade de um outro segmento, representado por relevantes figuras femininas no transcorrer deste percurso. Trata-se, com efeito, de mulheres, de alto potencial crítico e criativo. Não por acaso tornadas invisíveis pela própria Modernidade, inclusive, por vezes, tendo suas obras apropriadas por nomes masculinos. Formam um grupo diversificado, no qual fazem parte sábias, cientistas (Trotula de Salerno, 1050-?, Hildegarda de Bingen, 1098-1179; e outras Damas da escola de Salerno, como Mercuriade, que escreveu 4 tratados De crisibus, De Febre pestilenti, De curatione vulnerum et De Ungentis, e outras médicas e cirurgiãs que eram professoras e deixaram vários tratados, do século XI ao XIV:  Rebecca Guarna, Maria Incarnata, Constance Calenda et Abella Salernitana), místicas (Elizabeth de Shonau, Marguerite d´Oignie, Margueirte d´Oingt, Marguerite Porète, Hadewijch d´Anvers, Machthilde de Magdebourg, Angela de Foligno, Béatriz de Nazareth, Cristina Ebner, Juliana de Norwich, Margery Kempe, Marguerite Porete, 1250-1310), exímias mulheres das Letras (Christine de Pizan (XIV- XV), Marie de France (XII) introduziu as fábulas na Literatura medieval, a partir de várias tradições, assim como o gênero “Lais”, Trobairitz (XIII, XIV), alguns nomes: Béatrix de Dia, Azalis de Pocairages, . Sonetistas italiana século XIII: Compiuta Donzella, e também as poetisas de Al-andalus, do século VIII-XIV, ainda no sul da Espanha: Leonor Lopez de Córdoba (XIV). escritoras abadessas Roswita de Gandesreim (X), na Alemanha, introduziu o teatro na Idade Média, escreveu várias lendas hagiográficas, 6 peças e dois épicos. Na França, Heloísa no século XII, deixa cartas e Isabel de Villena, autora de Vita Christi.

 

2. A figura de Francisco de Assis e seus primeiros companheiros.

 

No decorrer de mais de oitocentos anos, desde o aparecimento de Francisco de Assis, dele se tem escrito e relatado. Tem graças a um longo processo de domesticação, que chega até ao presente. Acerca de Francisco, tem prevalecido largamente uma narrativa fortemente etérea, “angelical” acerca desta figura, superestimando-se nele aspectos celestiais, por vezes descolados de sua humanidade, ao tempo em que se subestimam determinados traços humanos. Neste sentido, convém exercitamos uma leitura crítica, também, em relação de diversas de suas biografias. Como é sabido, pela sua relevância histórica, Francisco de Assis despertou especial interesse sobre sucessivas gerações, razão pela qual ele tem sido alvo de diversas biografias. A exemplo da elaborada por Tomás de Celano (1200 – 1265), e, bem mais recentemente, a elaborada por Inácio Larrañaga (1928-2013), autor de “O Irmão de Assis”, sem esquecer a instigante interpretação de Francisco de Assis feita por Jacques Le Goff (“São Francisco de Assis”). Percebemos um Francisco mais concreto, mais nuançado, que é urgente recuperar.

 

A cidade de Assis, situa-se na Itália, na região da Umbria, e do ponto de vista histórico, situa-se em uma encruzilhada, em um cenário dominantemente feudal, por outro lado, os primeiros passos em direção a um processo de urbanização, representado por pequenas aglomerações compostas de pequenos comerciantes, artesãos, e parte de servos da Gleba que conquistaram sua liberdade. Tratava-se de um pequeno centro urbano, que graças às atividades nele desenvolvidas, apresentava um movimento diferente de décadas atrás. Dentre as atividades presentes naquele pequeno centro, o comércio constitui uma atividade de referência, em especial o comércio de tecidos. Destas atividades ocupava-se também, Bernardone, o pai de Francisco, casado com dona Pica. Francisco, em sua infância e adolescência, criou-se nesta família de classe média alta, conhecida pela sua prosperidade comercial. Junto com os jovens de sua cidade de classe semelhante, Franscisco passa a liberar grupos de jovens voltados às noitadas, às diversões próprias daquela época. E assim ia vivenciando seus primeiros anos de jovem, em meio a uma mocidade encantada com as diversões e com as farras próprias da idade. Seu pai, Pedro Bernardone, por outro lado, ia prosperando fortemente em suas atividades de comerciantes de tecidos, inclusive, indo até a França para negociar. Enquanto isso, a mãe, dona Pica Bourlemont, mantinha a formação do filho do jeito que podia. Incomodava, talvez, saber do íntimo entrosamento naquelas farras.

 

À certa altura de sua juventude, Francisco teve a experiência de enfermidade que começa a mexer com sua mente. Dias e meses de recuperação da enfermidade lhe foram bem propícios para fazer um balanço de sua vida e ter, pela primeira vez, um sentimento de apelo da parte de uma força que ele ainda não conhecia. Tratava-se de um primeiro momento de vocação, de apelo, convidando-o a experimentar uma outra vida, o que o fez tomar certa distância de seus amigos, para surpresa deles.

 

Em uma época em que predominavam os valores do feudalismo, uma prática corrente era a da cavalaria, isto é, uma carreira militar da qual os jovens da época participavam regularmente, em especial os pertencentes aos setores dominantes – caso de Francisco, e para tanto, tinham que exercitar a arte da cavalaria, a arte de preparação aos combates, em defesa e promoção dos interesses e valores atinentes, ora da nobreza, ora a hierarquia da Igreja Católica. Isto implicava uma associação que se fazia também, por meio de juramento de fidelidade àqueles para quem se dispunham a combater, na arte da cavalaria. Certa feita, graças a uma convocação feita aos cavaleiros da região, no sentido de combaterem um inimigo, a certa distância de Assis, formaram-se em fileira, vestidos com trajes específicos, e montados em seus cavalos, partiram para o combate. Ao chegarem à região conhecida como Spoleto, eis que o jovem Francisco se sente tocado por um apelo: desistir daquele combate e retornar a Assis. Sem compreender bem a natureza daquela apelo, Francisco se deteve a pensar no sentido daquele chamamento tão estranho, que implicaria a ruptura profunda com laços e promessas assumidas publicamente diante de seus companheiros de cavalaria. Como estes iriam receber a estranha decisão do amigo e líder Francisco? Certamente, o tratariam de desertor, de atitude de medo e covardia, valores profundamente contrários aos assumidos e testemunhados pelos que estavam prontos para o combate.

 

Assumindo então a decisão de não seguir para a batalha, Francisco retorna, assumindo também todas as consequências graves do julgamento de seus companheiros de cavalaria. Retornando à casa, empenha-se na meditação e no esforço de decifrar aquele sempre contanto com o carinhoso apoio de sua mãe, dona Pica. Nos dias seguintes passou a perceber a presença de muitos pobres, de muitos mendigos, a vaguearem pela cidade. Foi tomado de compaixão por esta gente. Francisco não tardaria em aproximar-se dele, tratando-os como seus novos amigos. De vez em quando, fazia questão de preparar em sua casa uma mesa farta, deixando sua mãe perplexa com tal atitude. Perplexidade que aumentava profundamente, ao ver chegarem em sua casa e sentarem-se à mesa preparada por Francisco, vários mendigos. Francisco já não se continha com chamá-los à sua casa. Tratava desde então, de se servir das riquezas do pai, levando aos mendigos roupa e comida farta.

 

Tal atitude não ficaria em segredo. Logo as notícias chegariam aos ouvidos do pai, o rico comerciante Bernardone, que passava a, não apenas estranhar, mas a proibir o filho de continuar desperdiçando os seus bens. Trabalho perdido. Francisco continuaria a fazer o mesmo, ainda que se preparando para punições mais fortes. Com a crescente oposição e perseguição do pai à sua atitude, ainda que, contanto Francisco com o apoio incondicional de sua mãe, Francisco toma a decisão de passar tempos fora de casa. Certa vez chega à conhecida capela ou Ermida dedicada a São Damião, e ao contemplar o crucifixo bisantino que havia na capela, sente-se profundamente impactado ao perceber o chamamento, no sentido de que ele cuidar-se de reformar aquela capela que se achava com fissuras em suas paredes. Tratou Francisco de falar com o padre que animava aquela capela, dele obtendo permissão para a reparação da capela. Não tardaria Francisco a voltar a sua casa, de lá trazendo uma sacola de dinheiro, para entregá-la ao capelão, como contribuição sua à reforma da capela de São Damião. Foi com profundo estranhamento que Francisco, ao abordar o capelão, sentiu que o capelão recusaria sua oferta, dizendo que a reparação se faria por meios pobres, com os braços de quem se dispusesse a reformar a capela. Impactado pela reação do capelão, Francisco cai em si e sente que o capelão tinha razão. Não hesitou em arremessar por perto da capela a sacola de dinheiro, dando a entender que estaria de acordo com a recusa feita pela capelão, razão pela qual, dali em diante, ele próprio se prestaria aos trabalhos de reforma, dispondo-se a chamar outras pessoas da região a se juntarem, na mesma perspectiva.

 

E assim, a vida daquele jovem filho de rico comerciante, foi se transformando fortemente, o que constitui um insulto ao pai, cujo plano era o de ter o filho como seu sucessor e herdeiro dos negócios da família. Não se conformando com a nova vida do filho, Bernardone convida uma turma para ir atrás de Francisco e trazê-lo de volta à casa, ainda que fosse coercitivamente, encontrando na capela de São Damião, os que o buscavam o trouxeram de volta a sua casa. Seu pai, Bernardone, não hesita em mandar colocá-lo num subterrâneo de sua casa. Ali posto Bernardone trata de trancar o filho naquela prisão, retirando inclusive a chave do cadeado, e proibindo sua mãe de libertar o próprio filho. Passados alguns dias de prisão no subterrâneo contanto apenas com alimentação fornecida pela sua mãe, esta, não mais aguentando tolerar tanta mágoa do pai contra o filho, toma a decisão de libertar o filho, assumindo posteriormente toda a carga de ira do seu marido. Mas Francisco estava de novo livre para a causa dos pobres.

 

São diversos, por conseguinte, os episódios envolvendo o processo inicial de conversão de Francisco de Assis. Claro que não param no episódio da reforma da Capela de São Damião. Bernardone não se deu por vencido por contra da libertação de seu filho feita pela sua esposa, dona Pica. Continuou insistindo em combater o seu filho que ele considerava uma vergonha para a família, uma decepção profunda quanto aos planos que faziam em relação ao filho. Neste sentido, voltou a carga contra Francisco de Assis. Desta vez, expulsando-o definitivamente de sua casa. Um episódio comovente é aquele em que, não contente com expulsar o filho, exige-lhe publicamente que devolva tostão por tostão o que havia retirado da casa em benefício dos pobres e mendigos da cidade. Isto se deu publicamente, em um lugar em que 3 figuras se apresentavam ao povo que lotava a praça: um Bispo Dom Guido, o comerciante Bernardone e o próprio Francisco. Na ocasião, Bernardone relata ao Bispo o conjunto de exigências a Francisco, de devolver o que havia retirado de seus bens, para se desligar completamente do filho. Da parte do bispo, uma palavra de aconselhamento a Francisco, em quem confiava, mas concedendo ao pai as exigências que fazia ao filho. Francisco pede um tempo ao Bispo, enquanto retirando-se para perto, retira completamente sua roupa, pega a mochila de dinheiro e retorna até a cena pública. Dirigindo-se ao pai, devolve-lhe as roupas que vestia e a mochila de dinheiro que havia retirado de sua casa, para a reforma da Capela São Damião. A partir daí, o pai não tem mais a Francisco como filho e trata de persegui-lo, ainda que a distância. Sempre o via a peregrinar com mendigos pela rua, tratava de expressar seu desdém, sua maldição. Francisco e seus companheiros, perambulavam pelas ruas e aldeias, em busca de esmolas. Certa feita, comovido e entristecido pela dureza de coração do pai, convida um de seus amigos mendigos para a partir daquele momento, tornar-se uma figura paterna para Francisco. Sendo assim, sempre que o Pai aparecesse publicamente com suas invectivas dirigidas contra Francisco, aquele amigo mendigo passaria a expressar seu lugar de pai, neste momento, expressando uma especial proteção, junto a Francisco.

 

Francisco prossegue e aprofunda seu serviço aos pobres de Assis e região, estreita os laços com os mendigos e os leprosos, que tomava como seus preferidos, por serem os preferidos do Reino de Deus. De início, experimentava certa dificuldade de se aproximar dos leprosos, apresentava alguma resistência, a ponto de chegar a mudar de lugar, quando percebia a vinda de um deles. Pouco a pouco, graças ao estreitamento de sua intimidade com o crucificado, passa a ter comportamento diferente: aproximava-se do leproso, abraçava-o e beijava-o. Comia com eles, sem mais sentir nojo, ao contrário, sentindo prazer da refeição pobre que consumia.

 

Com o passar do tempo, Francisco chega a acolher alguns membros das comunidades vizinhas que pretendiam segui-lo mais de perto, o primeiro dos quais tendo sido, Pedro de Catão, em seguida Bernardo, Egídio, e outros se juntaram ao grupo pioneiro Franciscano.

 

Sua missão se concentrava no acolhimento e na ajuda aos pobres, aos mendigos, aos leprosos, bem como a oração e a peregrinação pelas aldeias vizinhas, pelas capelas, pelos eremitérios da região.

 

Nestas experiências, teve que enfrentar muitos momentos de grande adversidade. Os antigos amigos e o segmento mais abastado da população expressava não apenas descontentamento, mas adversidade contra Francisco e seus companheiros, dentre os quais: Bernardo de Quintavalle, Pedro di Catani, Sabatino, Morico, Egidio, João do Chapéu, Felipe, Masseo, Junipero, Ângelo, Silvestre e Leão… Eles tiveram que enfrentar muitas situações desta natureza, não bastassem as adversidades próprias de sua missão: o enfrentamento da nudez ou da pouca vestimenta, do frio, da neve, nos muitos caminhos e lugares  por onde peregrinavam: Assisi, Porciúncula, Cascia, Cittá di Castello, Foligno, Gubbio, Orviteto, Perugia, Terni, Spoleto, sem esquecer o famoso Monte Subásio.

 

Tanto na biografia de Celano, tanto na de Laranagña, podemos encontrar situações difíceis, espinhosas, também enfrentadas em relação à hierarquia eclesiástica. A comunidade Franciscana primitiva não tinha interesse em tornar-se uma instituição, ligada às congregações da Igreja Católica. Não era sua pretensão ordenar-se presbíteros, preferindo a pregação aberta nas praças e nas aldeias. Por sua vez, a hierarquia não permitia aos leigos, que pregassem o evangelho, além do fato de que a enorme maioria da população era analfabeta, sem conhecer nada do latim, língua oficial pela qual o próprio evangelho era transmitido. Isto implicava forçosamente em que apenas o Clero possuía o monopólio da leitura da palavra de Deus. Aos leigos só competia escutar, de segunda mão, o que a Bíblia lhes tinha a dizer. Neste sentido, vamos encontrar na primitiva comunidade Franciscana, um fiel empenho, em pregar a palavra de Deus, buscando, todavia, não exacerbar, a relação com as autoridades eclesiásticas. Nisto, tiveram comportamento diferenciado, outros movimentos que surgiram antes, durante e depois da comunidade franciscana primitiva.

 

Vale a pena, agora, nos debruçarmos sucintamente sobre elementos da saga dos Valdenses. Veremos, a seguir, que as atitudes, dos pobres de Lyon, a exemplo dos Valdenses, Albigenses-Cátaros, dos Begardos, dos “Apostoloches”, das “Beguinas” e outros movimentos populares de inspiração evangélica, tiveram que enfrentar conflitos mais intensos, por conta de sua radicalidade, isto é, de sua indisposição a cederem as ordens das autoridades eclesiásticas.

 

Assim aconteceu ao grande comerciante de Lyon, chamado Pierre Valdo (ou, Valdês) , que, tocado pelas lições do evangelho, especialmente, daquela passagem em que Jesus faz menção de que a riqueza é incompatível com o Reino de Deus – “Nenhum rico entrará no Reino dos Céus: é mais fácil um Camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um Rico se salvar.”

 

Voltamos aos tempos de Francisco e de Pierre Valdo, é importante também rememorar outros que seguiram essa trajetória missionária profética. Uma dessas figuras é a de Gerardo Segarelli, e também em região não distante de Francisco, procurou seguir esta mesma linha. Inicialmente aceito em um convento franciscano para formação, foi avaliado inadequado para a liga franciscana. No entanto, Gerardo Segarelli continua prenhe de vocação franciscana. Um destes sinais é o de sua continuidade nesta vida, mesmo não sendo bem vindo a comunidade franciscana conventual, volta a frequentar a igreja franciscana e a entusiasmar-se com um quadro com uma cena apostólica que contemplava. Isto mexeu ainda mais com ele, e passou, daí por diante, a também testemunhar uma vida de pobreza, de fraternidade mais íntima com os pobres da época. Segarelli tem uma influência grande também em vários discípulos, dentro os quais o famoso frei Dolcino que, influenciado também pela ação profético missionário de Gerardo Segarelli segue também os seus passos, em busca de um testemunho mais tocante dos valores do reino de deus e sua justiça.

 

Frei Dolcino era uma figura inteligente, intelectualmente bem preparada, conhecedor do latim, da oratória, vindo a tornar-se um pregador de excelência. Ao mesmo tempo, tinha um temperamento bastante motivador, de liderança, facilmente atraindo muitas pessoas a seu entorno, pela alegria e pela qualidade de conversa que ele irradiava. Frei Dolcino aprofunda essa relação com o povo dos pobres e passa, a exemplo de Segarelli e também de Francisco e outros, inclusive Valdo, a percorrer Aldeias, Cidades e Vilas, para pregar o evangelho na língua do povo. Como era leigo, não obtendo a autorização eclesiástica para a pregação, ele passa a ser perseguido, juntamente com os seus seguidores. Aumenta o grau de adversidade entre ele e as autoridades eclesiásticas junto com os reis que apoiavam a instituição eclesiástica e seus hierárquicos. Buscando ser fiel mais a Deus que aos homens, conforme está escrito nos Atos do Apóstolos, capítulo V, Frei Dolcino passa a expandir sua ação missionária por diferentes regiões da Itália. Em pouco tempo este movimento veio a ser conhecido, e muito presente em muitas áreas italianas. Crescia assim o movimento pauperístico liderado por Frei Dolcino. Além daqueles pontos já conhecidos, característicos de outros movimentos pauperísticos, também as comunidades que seguiam as orientações de Frei Dolcino tinham características semelhantes: entendiam que laços hierárquicos não constituíam a vontade de Jesus ou do Evangelho, mas tratava-se de uma criação dos homens, uma vez que os Evangelho chama e estimula a todos a viverem fraternalmente, em comunidades horizontais, em que todos e todas se sentissem emanados, e não superiores uns aos outros, também faz parte da pregação de Frei Dolcino a paridade de direitos entre mulher e homens. Isto foi ponto chave para o aumento sistemático da perseguição a este grupo liderado por Frei Dolcino. Com o apoio de reis e príncipes da época, monta-se um exército para perseguir e extinguir o movimento liderado por Frei Dolcino, o que vem a se aprofundar apesar da resistência de figuras do movimento. Mesmo assim, o movimento revelava um reconhecimento amplo das comunidades cristãs daquela região.

 

Outro movimento que surgiu não distante destes foi o movimentos dos Cátaros (palavra derivada do grego “catarói”, isto é, os puros, denominação atribuída pelos outros aos membros deste movimento). A exemplo de outros movimentos pauperísticos, também os Cátaros conhecidos ainda como Albigenses, se expandiram na região sudoeste da França, mas alcançando outros países, além da França.

Importante ainda lembrar o Movimento dos Begardos. Era um agrupamento de padres caracterizados pelo sentimento de pobreza evangélica. Eram próximos das beguinas, um movimento constituído apenas das mulheres que, não querendo vincular-se oficialmente a uma instituição eclesiástica, por meio da pronúncia de votos, buscavam reunir-se e vier em pequenas casas com duas, três pessoas e dedicarem-se aos trabalhos manuais, como sustentação de sua vida, e dedicar um tempo aos trabalhos junto aos pobres, aos doentes, às crianças, aos idosos. Trata-se de um movimento que teve enorme repercussão até os dias de hoje, ainda que assumindo formas diferenciadas. Por exemplo, não é demasiado comparar as atuais pequenas comunidades de religiosas inseridas no meio popular (PCIS) ao que testemunhavam as beguinas: vida de liberdade evangélica, de pobreza, de partilha, de serviço à causa dos pobres.

 

Ainda voltando, de passagem, ao Movimento dos Valdenses, importa assinalar que atravessou séculos, vencendo todo tipo de perseguição. Ainda hoje, este Movimento se faz presente em vários lugares do mundo, especialmente, na Europa e no continente americano, particularmente, numa região entre Uruguai e Argentina, onde a Igreja Valdense tem uma aceitação notável, haja vista a qualidade dos cultos que realiza semanalmente, e, sobretudo, pela sua atuação militante das causas de libertação dos pobres.

 

3. Confluências e dissonâncias entre o primeiro grupo franciscano e os demais grupos pauperísiticos da Idade Média

 

Importa, nas linhas que seguem, identificar alguns episódios que demonstram profunda afinidade entre a proposta de Francisco de Assis e dos demais movimentos pauperísticos da Idade Média. Quanto às confluências, podemos destacar:

 

  • O entendimento de que o Reino de Deus está presente entre os pobres, entre os marginalizados, entre os explorados, por conta da injustiça reinante na organização social de cada época, especialmente, durante ou dentro das sociedades de classe, ainda mais impactante nos quadros da sociedade capitalista;

  • Outro ponto de profunda afinidade entre tais movimentos consiste na centralidade dos pobres, em todas as suas atividades;

  • A horizontalidade das relações entre todos os membros do povo de Deus, sem privilégio de uns em detrimento dos demais.

  • O enfrentamento dos poderosos, dos ricos, que ao longo dos séculos, têm se insurgido contra os pobres, ainda que diferendo em grau de um para outro movimento;

  • a defesa feita por estes movimentos da causa dos pobres não se limita ao mero sentimento de dó ou de compaixão, tomando os pobres como alvo de esmolas, mas, firmando com eles um compromisso de sua libertação de todos os laços de exploração, de opressão, de marginalização, no horizonte da construção de uma sociedade politicamente participativa, economicamente equânime, culturalmente diversa, e em harmonia com a Mãe Natureza..

  • Pelo menos alguns desses movimentos – é o caso do animado por Frei Dolcino – preconizavam e testemunhavam a paridade de direitos entre mulheres e homens.

 

Após havermos ressaltado com força diversas confluências observáveis entre o nascente Movimento animado por Francisco de Assis e, por outro lado, vários movimentos pauperísticos do Medievo, cumpre-nos agora apontar diferenças e eventuais dissonâncias entre os mesmos. Uma primeira distinção a ser assinladas tem a ver com a postura de seuss principais animadores e integrantes  de Assis e seus respecitivos Movimentos. Enquanto companheiros preferiam valer-se de um tom de conciliação VERBAL  (e mesmo de gestos visíveis de aparente composição, os demais movimentos pauperísticos não costumavam fazer qualquer concessão a seus perseguidores, fossem eles eclesiásticos ou da nobreza feudal.

Outro aspecto convém pôr em relevo. Embasados em elementos informativos fornecidos por Inácio Larrañaga, chama-nos a atenção o fato de, em diversas ocasiões de encontros com autoridades eclesiáticas, o comportamento de Francisco de Asssis, desde que acuradamente interpretado antes de acenar para uma obediêcnia incondicional, constituía meio insólito, d einduzir seus interlocutores a se olharem no espelho do Evangelho que Francisco anunciava pela sua incontestável fidelidade ao Evangelho.

 

4. Lições a recolher pelos Movimentos populares contemporâneos, frente aos atuais desafios:

Nunca é demais assinalar que um fecundo exercício da memória histórica não deve implicar qualquer ideia de reprodução de fatos passados. Vivemos um contexto bem diverso, ainda que contendo características comuns a épocas passadas. É assim que ousamos assinalar alguns pontos daqueles movimentos medievais que podem ser úteis ao enfrentamento dos atuais desafios.

Uma primeira lição a recolher do legado daqueles movimentos tem a ver com a primazia que davam ao pobre, não como alvo de dó, mas como sujeitos de direito, protagonistas de sua libertação.

Outro aspecto a não perder de vista: as mudanças desejáveis não se alcançam de cima para baixo ou de fora para dentro: elas são produto das lutas dos “de baixo”. Aos de baixo, quase sempre, incumbe o protagonismo das ações transformadoras. Como toda regra comporta exceções, sabemos da presença e especial atuação de figuras antes provenientes de estratos dominantes, a desenvolverem um papel de excelência em relevantes processos de transformações histórica-sociais de reconhecida alcance mundial.

Atrai especial atenção o modo como os movimentos pauperísticos se punham diante de todo tipo de propriedade , a ela se opondo radicalmente. Lembremo-nos de que nem Marx nem Engels – para mencionar apenas os principais nomes do marxismo, não se opunham a qualquer propriedade, mas apenas à propriedade privada dos bens de produção. Acerca desta radical oposição testemunhada por aqueles movimentos pauperísticos, vale rememorar diversos relatos de seus biógrafos, a registrarem diversos episódio em que lideranças e demais integrantes daqueles movimentos a se servirem, sem qualquer remorso, dos bens encontrados em propriedades privadas, a exemplo de como se comportavam as primitivas comunidades cristãs: “Ninguem tinha como sua as coisas que possuia mas tudo lhes era comum” (At 4, 32).

Sem qualquer apelo a uma reprodução marxista descontextualizada de tais práticas, importa, sim, recolher o espírito comunitarista, inclusive como horizonte a se repensar a urgência de uma governança mundial, cujos passos devem ser exemplo a perseguir, ante os atuais desafios, sempre em respeito e harmonia com a dignidade do planeta e toda a comunidade dos viventes.

Pelas amargas experiências vividas durante décadas, durante séculos, por sucessivos governos centrados nos Estados nacionais sob o comando das grandes transnacionais (petróleo, armamentos, agronegócio …), especialmente dos grandes grupos financistas, é chegado o momento de ousarmos dar passos em direção a uma governança mundial, tendo os movimentos sociais populares e as organizações de base de nossas sociedades como principais protagonistas das mudanças a serem operadas, com vistas a um novo modo de produção, de consumo e de gestão societal.

 

Textos e vídeos (re)visitados:

 

CALADO, Alder J. F. Memória histórica e Movimentos Sociais; ecos libertários de heresias. João Pessoa: Ideia, 1999.

 

______, https://textosdealdercalado.blogspot.com/2020/09/o-movimento-das-beguinas-interfaces-e.html

COMBLIN, Joseph. Vocação para liberdade. São Paulo: Paulus, 1998.

______________. A Profecia na Igreja. São Paulo: Paulus, 2008.

______________. O Espírito Santo e a Tradição de Jesus. São Bernardo do Campo-S: Nhanduti, 2012.

 

DEPLAGNE, Luciana Calado e BROCHADO, Cláudia Costa (Org.). Vozes de mulheres da idade média. João Pessoa, Editora UFPB, 2018.

 

DUBY, Georges; PERROT, Michelle (dir.). História das mulheres no ocidente. Volume 2: A Idade Média. Porto: Afrontamento, 1990.

 

ÉPINAY-BURGARD, G, ZUM BRUNN, Émilie. Mujeres trovadoras de Dios. Barcelona: Paidós Bolsillo, 2007.

 

LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente Medieval. Petrópolis: RJ, 2016 (1964).

 

REZENDE, Maria Valeria. A vida rompendo muros: carisma e instituição. As pequenas comunidades religiosas femininas inseridas no meio popular no Nordeste. João Pessoa: Manufatura Editora. 2002.

 

WOENSEL, M. J. F. Van ; WOENSEL, M. V. . Carmina Burana – Canções de Beuern. São Paulo: Ars Poetica, 1998.

 

Fra Dolcino e Segarelli. Due martiri italiani. I.Montanelli: Controcorrente.

 

Un eretico medievale: Fra Dolcino

 

Au coeur de l’histoire: Les vaudois (Franck Ferrand)

 

Les Vaudois, d’un exil à l’autre

 

Obs: Este texto é resultante da degravação-digitação feita por Heloíse Calado Bandeira, Gabriel Luar Calado Bandeira, Águida Ferreira Calado, Eliana de Freitas Calado e Luciana Calado Deplagne. Estas últimas também contribuíram com sugestões. A todas essas pessoas, a expressão do meu reconhecimento.

 

João Pessoa, 25 de Janeiro de 2022.

 

Comemoração da conversão de Paulo Apóstolo.

Mensagem do Papa Francisco

Regina Coeli – 16-05-2021

Hoje, na Itália e em outros países, se celebra a solenidade da Ascensão do Senhor. A passagem evangélica de hoje – a conclusão do Evangelho de Marcos – nos apresenta o último encontro do Ressuscitado com os discípulos, antes subir para sentar-se à direita do Pai. Como de costume, nós sabemos como são tristes as cenas de despedida, dão àqueles que ficam um sentimento de desânimo, de abandono. Ao contrário de tudo isto, com os discípulos, isto não acontece. Apesar da separação do Senhor, eles não se mostram desconsolados, ao contrário, mostram-se alegres e prontos para partirem como missionários para o mundo.
Por que será que os discípulos não ficam tristes? Por que nós também devemos nos alegrar ao vermos Jesus subir ao Céu?
A Ascensão completa a missão de Jesus no meio de nós. Com efeito, se foi por nós que Jesus desceu do Céu, é sempre por nós que para lá Ele também subiu. Após haver encarnado nossa humanidade e tê-la redimido – Deus, o Filho de Deus, desce e se faz homem, assume a nossa humanidade e a redime – agora sobre ao Céu levando consigo nossa carne. É o primeiro ser humano que entra no Céu, porque Jesus é homem, verdadeiro homem, é Deus, verdadeiro Deus. A nossa carne está no Céu e isto nos causa alegria. À direita do Pai, está sentado definitivamente um corpo humano, pela primeira vez, o corpo de Jesus, e, neste mistério, cada um de nós contempla seu próprio destino futuro. Não se trata propriamente de um abandono, Jesus permanece para sempre com Seus discípulos, conosco. Permanece na oração, porque Ele, enquanto homem, ora ao Pai, e, enquanto Deus, homem e Deus, lhes mostra as feridas, as feridas com as quais nos redimiu. A oração de Jesus aí está, em nossa carne: é um de nós, Deus homem, e ora por nós. E isto nos deve dar uma segurança, mais do que isso, uma alegria, uma grande alegria! E o segundo motivo de alegria é a promessa de Jesus. Ele nos disse: “Eu lhes enviarei o Espírito Santo”. E aí, com o Espírito Santo, cumpre-se aquele mandamento que Ele dá justamente por ocasião da despedida: “Vão ao mundo para anunciarem o Evangelho”. E será a força do Espírito Santo que nos leva ao mundo, a transmitir o Evangelho. É o Espírito Santo daquele dia, que Jesus prometeu, e, em seguida, nove dias depois virá na festa de Pentecostes. Foi justamente o Espírito Santo que tornou possível que todos nós hoje aqui estejamos. Uma grande alegria! Jesus subiu ao Céu: o primeiro ser humano diante do Pai. Subiu marcado pelas feridas, que foram o preço de nossa salvação, e ora por nós. Em seguida, ELe nos envia o Espírito Santo, nos promete o Espírito Santo, para irmos a evangelizar. Daí, a alegria de hoje, daí, a alegria deste dia da Ascensão.
Irmãos e irmãs, nesta festa da Ascensão, enquanto contemplamos o Céu, para onde Cristo subiu e está sentado à direita do Pai, peçamos a Maria, Rainha do Céu, que nos ajude a sermos no mundo testemunhas corajosas do Ressuscitado nas situações concretas da vida.
Trad. AJFC
Digitação EAFC

José Comblin e Eduardo Hoornaert

José Comblin e Eduardo Hoornaert

Amigos, amigas!

Permitam-me compartilhar estas duas preciosidades:

1 – O texto mais recente, escrito por Eduardo Hoornaert, nos provoca profundamente, deixando-nos ante uma irrupção joelina, a nos interpelar e atiçar nosso ardor missionário, na perspectiva do Movimento de Jesus, chamando-nos a experienciar caminhos de “Pentecostalidade”.

2 – Um item do livro de José Comblin, “O Espírito Santo e a Tradição de Jesus”, da página 269 a 276, que vem sendo objeto de nossa reflexão semanal, no Grupo Kairós. Segue em anexo.

Com vocês, na esperança e na ação.

Alder

  1. O pentecostalismo em perspectiva histórica.

Por Eduardo Hoornaert.

A descoberta do caráter pentecostal das origens cristãs vem a postular a construção de narrativas próprias. Como sabemos que a mensagem cristã se propaga mais por meio de narrativas que de doutrinas, surge diante de nós a seguinte pergunta: quais as narrativas, entre muitas que tratam das origens do cristianismo, capazes de abarcar a multiplicidade de formas pentecostais em que o cristianismo se reveste hoje? Trato aqui especificamente de três narrativas das origens, uma primeira centrada em Nazaré, uma segunda em Jerusalém e uma terceira em Corinto. Prossigo chamando a atenção para a particularidade da expressão ‘Espírito Santo’ e para a necessidade de se estudar a ‘tradição’. Termino dizendo algo sobre ‘pentecostalidade’.

  1. Um Sopro ‘do Senhor’ em Nazaré.

O Evangelho de Lucas conta que Jesus, ao retornar à sua aldeia natal depois da experiência no Sul do país (na região do Jordão) com João Batista, vai, como de costume, à sinagoga no sábado. Como já é rabi, habilitado a ler e explicar a Bíblia, o servente lhe entrega um rolo que contém as profecias de Isaías. Ele escolhe dois trechos (Isaías 61, 1-2 e 58, 6):

Um Sopro do Senhor sobre mim.

Por Ele fiquei encarregado

De trazer uma boa mensagem aos pobres.

Ele me enviou, e por isso proclamo

liberdade aos presos, visão aos cegos, libertação aos oprimidos.

Proclamo publicamente um Ano de Favores (Lc 4, vv. 16-18).

Jesus entrega o rolo ao servente e se senta. Na sinagoga, todos os olhos o fixam. Ele começa: ‘como vocês veem, hoje essa Escritura se realiza’ (vv. 20-21). Eis a primeira manifestação do Sopro de Deus na vida de Jesus. Os aldeões se sentem atingidos, pois compreendem a alusão: ‘aqui – em Nazaré – não há boa mensagem para os pobres, nem liberdade para os presos, nem recuperação de visão para os cegos, nem libertação dos oprimidos, nem Ano de Favores’. ‘Vocês preferem seguir a Lei, não escutam o ‘vento’ que vem de Deus’. Para ainda agravar as coisas, Jesus dá dois exemplos de como a Escritura de Isaías se realiza: nos tempos de Elias, havia muitas viúvas em Israel e as pessoas passavam fome, por todo o país. Mesmo assim, não é para nenhuma (das viúvas de Israel) que Elias foi enviado, mas para uma viúva de Sarepta de Sidon (v. 25). Havia muitos leprosos em Israel. Mesmo assim, nenhum deles foi curado (por Eliseu), mas sim o sírio Naaman (v. 27)O sopro de Deus não considera um ‘povo eleito’ privilegiado.

É demais: todos na sinagoga se enchem de furor ao ouvir essas palavras (v. 28)Um violento sentimento de ódio se ampara da multidão, uma histeria coletiva.  Eles o conduzem ao declive de uma colina sobre a qual a cidade está construída, para lançá-lo no precipícioMas ele passa por meio deles e se afasta.

Jesus não é um ‘dos nossos’? ‘Então, que nos defenda, nos ampare, já que tem esses poderes todos’. Os aldeões vêm em Jesus um curandeiro milagreiro, como tantos outros que andam pelas aldeias da Galileia. Não percebem a ação do Sopro de Deus.

Na versão de Marcos se percebe a mesma perplexidade, por parte dos aldeões. Muitos dos que o escutam ficam confusos e dizem: ‘Donde ele tira tudo isso? Donde lhe vem essa sabedoria? E os gestos fortes (milagres, gestos de poder) operados por suas mãos? Ele não é o carpinteiro, o filho de Maria, irmão de Tiago, José, Judas e Simão? Suas irmãs não vivem entre nós? Enfim, ficaram sem saber o que pensar (Mc 6, 1-6).

Mas, como na versão de Lucas, Jesus não recua. Ele vai em cima: um profeta só é desprezado em sua terra natal, em sua família, em sua casa. O Sopro de Deus nele provoca uma subversão dos valores que a aldeia cultiva: a família, a ordem, a convivência silenciosa com os que não conseguem se enquadrar na sociedade: doentes, mendigos, cegos, surdos, doidos. Jesus sente repulsa com o comportamento de seus antigos companheiros na aldeia: não pôde fazer aí nenhum milagre.  E Marcos conclui: Jesus estranha a desconfiança dos aldeões.

Aparece aqui um homem que se distancia de seus ex-vizinhos aldeões. Para ele, o fato de provir de uma aldeia esquecida do mundo, dentro de uma família normal de camponeses, conhecido por serviços manuais, não lhe impede sentir o Sopro de Deus passando por sua vida.  Pelo contrário, o ocultamento social demonstra quem é Deus e como Ele age no mundo.

  1. Um Sopro de Deus em Jerusalém.

A segunda história é mais traumatizante. Mais decisiva também. Ela começa com os versículos 46 a 50 do capítulo 14 do Evangelho de Marcos: Quando os emissários do Grande Sacerdote puseram as mãos sobre Jesus e o prenderam, todos os seus discípulos o abandonaram e fugiram (Mc 14, 46-50)Todos abandonam Jesus naquela fatídica semana que antecede a tradicional Festa da Páscoa judaica, por volta do ano 30, e que culmina com sua morte. Os discípulos deixam Jesus morrer só. Ele morre como um criminoso, executado segundo as leis estabelecidas. Seu corpo é jogado numa fossa comum. O Evangelho de João conta que o próprio Jesus previu esse desenlace: Vocês se dispersarão, cada um de seu lado, e me deixarão só (Jo 16, 32). Simão Pedro, que ainda teima em acompanhar de longe o drama, não aguenta nem umas palavras de suspeita por parte de uma servente do Grande Sacerdote: Não o conheço, não sei de que você está falando (Mc 14, 68). E acaba fugindo também. Retorna à região do lago de Genesaré, na companhia de alguns companheiros pescadores, igualmente ex-discípulos de Jesus. Ali resolve voltar à pescaria: ‘eu vou à pesca’. ‘Vamos como você’ dizem os outros (Jo 21, 3).

Mas nenhum deles consegue esquecer Jesus. Nem Simão, nem seu irmão André, nem Tiago e João, os filhos de Zebedeu. Mas o projeto acabou. Foi bonito, mas acabou. O que eles, pescadores iletrados, vão argumentar diante das mais altas autoridades, que tinham declarado que Jesus era um criminoso? Contudo, a memória persiste, inesquecível, fascinante. A figura de Jesus não os deixa em paz. A memória dele é alimentada a cada sábado por leituras feitas na sinagoga: leituras de Isaías, dos Salmos, dos Profetas, que falam em ‘servo sofridor’, ‘servo de Ihwh’, ‘elevado por Deus’, ‘feito Senhor’.  Será Jesus um eleito de Deus enviado ao mundo? Martela a cabeça de Simão a palavra de Jesus, três vezes repetida: Simão, filho de João, se me amas, apascenta minhas ovelhas (Jo 21, 15-17). A situação angustiante dura meses, talvez mais de um ano. Voltar a Jerusalém? Nem pensar.

Até que aparece, no ano litúrgico judeu, uma festa tradicional, celebrada em outubro, que até supera a festa da Páscoa em termos de popularidade: o Sukkôt (que significa: tendas, cabanas), em que se misturam as mais variadas memórias: a colheita dos frutos do campo, a vida em tendas dos hebreus fugitivos do Egito, a chegada ao Monte Sinai após ‘cinquenta dias’ de caminhada após a escapada, ocasião em que Moisés recebe a Torá (Ex 15, 1).

No Sukkôt, Jerusalém se enche de peregrinos, muitos vindos de longe. O grupo dos apóstolos galileus pondera: ‘podemos nos aventurar, pois ficaremos despercebidos no meio de tanta gente. Aí podemos visitar os irmãos de Jerusalém’. Irmãos que ficaram na cidade hostil e se recolhem numa casa particular, com medo dos ‘judeus’.

Então acontece a famosa virada, descrita por Lucas em seus ‘Atos dos Apóstolos’, escritos por volta do ano 120 dC: Estavam todos reunidos no mesmo lugar, quando, de repente, um estrondo. Parecia a passagem de um vento violento a invadir a casa onde se encontravam. Eles viram uma espécie de línguas de fogo se repartir e se pousar sobre cada um. Nesse momento, todos, cheios do Sopro Santo, falavam o que o Sopro lhes dava a dizer, em línguas estrangeiras (Atos 2, 1-4).

Muita gente, ao ouvir o estrondo, corre ao local. Gente proveniente da diáspora judaica, falando línguas diferentes (todas de raiz semita), enquanto os apóstolos só falam o aramaico. Abre-se a porta, os apóstolos comentam o ocorrido, e todos entendem o que eles dizem. ’Como é, pois, que os ouvimos falar, cada um de nós, no próprio idioma em que nascemos? Partos, medos e elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judéia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egito e das regiões da Líbia próximas de Cirene; romanos que aqui residem, tanto judeus como prosélitos, cretenses e árabes, nós os ouvimos apregoar em nossas próprias línguas as maravilhas de Deus’. (Atos 2, 8-11). No versículo 14 se conta que Pedro se levantou com os onze e, com voz firme, se dirigiu à multidão presente. Uma fala contundente, acusadora mesmo: Esse mesmo Jesus, que vocês crucificaram, Deus, ele mesmo, o fez Senhor e Cristo (o termo, em aramaico, significa: ‘ungido’) (v. 36). E termina perguntando: O que fazer? Ele mesmo responde: Pensar de outro modo (em grego: metanoein, daí metanoia) (v. 37). Mais adiante, em 3, 19, Lucas escreve que precisa também agir de outro modo (em grego: epistrefein). Um pensar e um agir ‘diferente’.

O resultado é excepcional: dos 120 aderentes ao novo movimento, assinalados em Atos 1, 15, se pula de vez para 3 mil depois do discurso de Pedro em Pentecostes (2, 41) e para 5 mil logo depois (4, 4). Aderiram, no Senhor, multidões de homens e mulheres (5, 14); A multidão dos crentes era um só coração e uma só alma (4, 32); O número dos discípulos multiplicava-se enormemente em Jerusalém (6, 7). Sabemos que Lucas gosta de exagerar, mas, mesmo assim, se trata de uma considerável multidão (11, 24), que passa a ser chamada igreja, uma palavra grega equivalente a ‘sinagoga’ ou ‘assembleia’: As igrejas cresciam em número, de dia em dia (16, 5).

Não dá para negar o impulso do momento e a inquietação que o movimento, desde Pentecostes, provoca no seio do judaísmo ortodoxo. Aparece algo diferente da religião dos burocratas do templo, dos fariseus e saduceus, dos letrados e dos sacerdotes. Um Sopro Santo passa por camponeses, pescadores e publicanos, mulheres e crianças, ignorantes e pecadores. E isso inquieta os judeus bem pensantes.

No dia de Pentecostes, um Sopro Santo desce em ‘línguas de fogo’, confere força aos apóstolos no sentido de afirmar em praça pública a novidade de Jesus, um novo jeito de viver, fraternidade, acolhimento, atenção aos pequenos e rejeitados deste mundo, entusiasmo entre as camadas mais pobres, nas cidades e nos campos por onde o movimento se espalha. Pentecostes é irrupção avassaladora de Deus na vida. Não se trata de doutrina, código moral ou celebração ritual. Trata-se de um impacto contagiante que conduz a uma nova experiência de vida.

Hoje dizemos: a espiritualidade cristã é fundamentalmente pentecostal. Por meio dela, o movimento de Jesus aparece como experiência de vida, não como doutrina, rito ou pura liturgia. Os exageros de Lucas na apresentação do número de aderentes ao movimento de Jesus, que lemos nos Atos dos Apóstolos, são sintomáticos da exaltação com que os próprios militantes devem ter contado sua experiência. A mesma exaltação que percebemos em certos episódios dos Atos, como a narrativa do naufrágio de Paulo e dos diversos discursos que o acompanham (At 27, 13-44), a conversão às portas de Damasco (At 9, 1-22) e o discurso de Paulo no Areópago ateniense (At 17, 19-34). Tudo isso vem a significar: o judaísmo formal, hipócrita, sacerdotal e legalista não tem mais nada a oferecer. Nós somos o Novo Israel! (Pedro nos Atos 2, 14-36).

O judaísmo oficial rejeita o pentecostalismo, não consegue compreender o momento. Isso leva a um infeliz confronto entre as comunidades de seguidores de Jesus e o judaísmo oficial: as primeiras não se sentem mais ao abrigo nas instituições do rabinismo judaico tradicional e criam um novo rabinismo, expondo-se à eventualidade de uma intervenção por parte de lideranças organizadas dispostas a ‘pôr ordem na casa’.

Pentecostes é uma experiência de ordem mística. Mas não num sentido neo-platônico. A admiração que sentem os que se deixam atrair pelo movimento não se deve atribuir unicamente a pretensos fenômenos extraordinários (com os relatados em Atos, capítulo 2), mas também ao fato que as pessoas percebem, nos seguidores de Jesus, um novo jeito de se viver, um clima de fraternidade e acolhimento, uma atenção aos pequenos e rejeitados deste mundo. Lucas focaliza isso em diversos momentos. Isso deixa profunda impressão entre as camadas mais pobres da sociedade judaica, nas cidades e nos campos. Esse é o grande sinal do Sopro de Deus. Elenco aqui, de passagem, alguns desses sinais, colhidos em textos do Novo Testamento e da Tradição do segundo século: a atenção especial dada aos que sofrem e são rejeitados (1 Pedro 4, 12-13 e mais tarde a Carta a Diogneto), sobretudo os peregrinos e forasteiros (1 Pedro 2, 11), que são numerosos na periferia do sistema romano, a regra Entre vocês tem que ser diferente, quem quiser ser o maior se faça o menor (Lc 22, 26), a opção pelos pobres (Tiago, 2, 1-9), um ‘lar’ para quem não tem casa (as Cartas de Pedro), a elaboração de uma teologia de eleição dos excluídos nos planos de Deus (1 Pedro 2, 4-10; Tiago, 2, 5), a recusa de uma aliança com o pensamento filosófico da época (Justino, Ireneu), o martírio (Policarpo, Inácio de Antioquia), o amor e perdão ao inimigo, a não-violência ativa, a fé na ressurreição da carne como resposta à petulância das autoridades judaicas (At 2, 22-36), um novo relacionamento entre homem e mulher, a introdução do conceito de ‘adultério masculino’, desconhecido na cultura do império romano e mesmo no judaísmo (O Pastor de Hermas), a recusa do serviço militar como sendo contrário à ideia da única soberania de Deus (Tertuliano); a recusa do aborto e do abandono de crianças recém-nascidas, em nome do imperativo do respeito pela vida pessoal (Carta a Diogneto), a não-participação em jogos de circo e teatros (onde a dignidade do corpo humano é tripudiada), a comunidade eclesial de base (Paulo); etc.

Podemos alargar ainda mais o horizonte e enxergar paralelos entre essa experiência pentecostal judaica e o que acontece em diversas religiões pelo mundo afora. Por isso se pode dizer que o pentecostalismo, de certo modo, excede o cristianismo e se relaciona com momentos de inspiração, reavivamento (revival), reanimação, experiências extraordinárias de entusiasmo e de fé que encontramos em muitas religiões. Voltarei a esse ponto. De modo que não é tanto o caso concreto do Pentecostes judaico que retém nossa atenção, mas sim sua redundância histórica.

Conhecemos o resto da história. Depois de Pentecostes, o movimento de Jesus se espalha rapidamente pelo mundo. A perda do templo e da cidade de Jerusalém, por sucessivos golpes políticos, entre 70 dC e 135 dC, é um desastre para os judeus ortodoxos, mas não para o jovem movimento. Com a eliminação de Jerusalém enquanto centro religioso, as famílias sacerdotais hereditárias e a alta classe judaica se arruínam definitivamente. Mas ao mesmo tempo surge, entre 70 e 200 dC, um judaísmo rabínico que existe até hoje e que oferece sustento ao jovem movimento. O rabino toma o lugar do sacerdote. Em vez de ser o homem do templo, ele é o homem ‘do livro’, o ‘mestre’ (rav), conhecedor das letras da Torá e mais tarde do Talmud, o ‘sábio’ (chacham) da comunidade. Não é ‘líder’, nem detém poder além do poder da palavra que interpreta. Pois, na sinagoga, a Palavra de Deus reina soberana. O rabino não recebe pagamento por seu ensinamento, pois a palavra de Deus é gratuita. Ele tem de arranjar uma profissão para se sustentar. Enfim, o rabino é o homem do raciocínio, da palavra, não do rito. Não corresponde ao clérigo no cristianismo. É um leigo, sem maiores poderes do que os demais participantes da sinagoga.

É nesse novo modelo que o cristianismo nascente (do século II) se inspira, como verificamos em figuras como Hermas, Marcião, Valentino e Justino. Um cristianismo de mestres e discípulos, não de sacerdotes e fieis.

Com a destruição de Jerusalém como centro religioso, o movimento de Jesus mergulha, por assim dizer, no anonimato. Doravante aparecem textos menores, provenientes do mundo anônimo das comunidades como cartas, evangelhos apócrifos, atos dos apóstolos (igualmente apócrifos), apocalipses, visões, enfim, uma vasta literatura até hoje pouco conhecida. Essa literatura revela um movimento ligado à vida nas famílias, onde se aprende a falar menos e escutar mais, lutar para ganhar o pão de cada dia, preparar os alimentos, suportar o incômodo da convivência em ter familiares, respeitar a liberdade do outro (da outra), educar os filhos, socorrer o irmão necessitado. O movimento fica mais pragmático e procura harmonizar as exigências radicais de Jesus com a cotidianidade da vida. Repetitivos e lentos, os textos que nos chegam desse período não contêm grandes novidades, mas traduzem a seu modo a novidade cristã.

É desse modo que o pentecostalismo cristão entra na história.

  1. Um Sopro de Deus em Corinto.

Há uma terceira narrativa que conta a irrupção do Sopro de Deus nos inícios do movimento cristão. Trata-se, inclusive, da primeira narrativa em termos cronológicos, pois é anterior aos evangelhos de Marcos (dos anos 70), de Lucas (dos anos 80-90) e dos Atos dos Apóstolos (dos anos 120), que acabamos de ler. Escrita apenas 20 anos após a morte de Jesus, no início dos anos 50, essa narrativa, escrita por Paulo Apóstolo, nos introduz numa reunião típica dos inícios do movimento de Jesus (1Cor 14), na cidade grega de Corinto. Ali nos surpreende o ambiente barulhento e agitado. Há pessoas que ‘falam em línguas’, emitem sons sem sentido aparente, que – mesmo assim – são acolhidos com exaltação. Os participantes parecem convencidos que esses sons expressam uma língua misteriosa de contato direto com Deus.  Alguns entram em transe, outros gritam e gesticulam.

Em diversos tópicos de suas cartas, Paulo utiliza o termo ‘grito’ e, diante da importância por ele atribuída a esse vocábulo, vale a pena se perguntar o que pode significar um grito que emerge de um ambiente extático. O sacerdote psicólogo alemão Eugen Drewerman explica que gritos extáticos não são falsificações, mas formas naturais de transmissão de grandes temas e de verdades permanentes presentes nas camadas profundas da psique humana (Drewermann, E., Psychanalyse et Exégèse, 2, Seuil, Paris, 2001, p. 18).

Paulo faz questão de afirmar, sem constrangimento, que ele também ‘fala em línguas’, e mesmo melhor que qualquer um: Eu falo em línguas mais que qualquer um de vocês (1Cor 14, 18). Mas há um limite. Ele repete, o tempo todo, que o êxtase – por bom e louvável que seja – tem de obedecer ao regulamento superior da profecia (vv. 22-26) e que, sem profecia, não há encontro cristão. O que isso significa? Em meio à exaltação não se pode esquecer que os participantes têm o direito de entender o que se quer dizer. Não basta gritar e gesticular. Falar ‘em línguas’ é bom, argumenta Paulo, mas que tudo seja acompanhado de palavras que encorajem as pessoas (v. 31), fortaleçam o grupo (v. 12), ajudem os outros. Na assembleia, prefiro dizer cinco palavras inteligíveis para instruir os outros, que dez mil palavras em línguas (v. 19). Os momentos privilegiados do êxtase postulam uma adequada explicação. Se Deus se revela numa fala em línguas de uma forma que nem o próprio falante, nem os demais participantes entendam ao certo o significado, é preciso que alguém do grupo diga alguma palavra ‘inteligível’. Se todos começam a falar sem que haja quem explique (no texto original: ‘se comporte em profeta’), os de fora vão pensar que os cristãos são malucos (v. 23). A ‘profecia’ faz com que o êxtase se torne capaz de convencer os de fora: Imaginem que todos profetizam (explicam ‘línguas’). Entra então uma pessoa de fora. Ela é logo questionada por todos e o que seu coração oculta se torna patente. Então ela cai com a face na terra e adora Deus, gritando: ‘Sim, é verdade, Deus está no meio de vocês’ (1Cor 14, 24-25). Tudo que acontece durante o encontro, seja canto, ensino, revelação, fala ou gesto (v. 26), merece ser devidamente explicado: todos podem se expressar, mas um por umpara instruir a todos e encorajar a todos (v. 31). Pois Deus não é um Deus da desordem, mas da paz (v. 33). A insistência de Paulo no sentido que tudo se faça em ordem (v. 40) e que a êxtase seja acompanhada de uma palavra explicativa (exortativa, profética) assegura aos os grupos paulinos – a médio e longo prazo – a sobrevivência em comparação a outros grupos, liderados por apóstolos talvez mais entusiasmados, mais eloquentes, mais versados na oratória ou mais extasiados, mas que não têm o devido cuidado em controlar os possíveis excessos extáticos.

O clima extático, no capítulo 14 da Carta aos Coríntios, revela algo que não se encontra nos evangelhos: o modo ‘entusiasta’ em que a mensagem de Jesus é recebida no mundo mais amplo da diáspora judaica, fora da Palestina. O fariseu ‘encantado’ de Tarso (Atos 9, 1-9), arrasta consigo os ouvintes/leitores para o universo extático que ele mesmo vive. Daí gritos como ‘Jesus ressuscitou!’, Ele subiu ao céu!’, ‘Ele está sentado ao lado de Deus Pai!’, ‘nós vamos ressuscitar com ele!’. Um encantamento que faz com que esses grupos extáticos tomem distância diante dos preceitos da Lei, lutem pela abertura do movimento de Jesus a não-judeus e nunca percam a esperança no Reino de Deus que já cresce – qual planta selecionada, adubada, capinada e cuidadosamente cultivada – no seio de pequenos grupos espalhados pelo mundo.

  1. O Espírito Santo.

O que dizer da expressão ‘Espírito Santo’, que hoje substitui o ‘Sopro Santo’ dos textos semitas? Sabemos que traduções sempre correm o perigo de se tornar ‘traições’. Sabemos que o leitor de um texto traduzido sempre tem de prestar atenção a possíveis armadilhas nele contidas, capazes de deturpar o sentido de uma expressão, ou pelo menos dificultar sua compreensão.  Quando o ruah hebraico passa ao pneuma grego e quando esse, por sua vez, passa para o spiritus latim e nosso espírito português, anda-se a passos tão largos que a deturpação do sentido original é quase inevitável. Com a passagem de ‘ruah’ para ‘pneuma’, operada pelos ‘Setenta’ de Alexandria no século III aC,  abandona-se o universo semita e penetra-se num universo de significados gregos. O termo perde em vigor, abandona os desertos do Levante e as finezas das expressões semitas e ganha ares mediterrâneos, helenísticos, mais suaves. E quando esse ‘pneuma’, por sua vez, passa para ‘spiritus’, na tradução latina feita por São Jerônimo no século IV dC (a ‘Vulgata’), modos romanos de se praticar a religião invadem a leitura das Escrituras e trazem um forte ingrediente de espiritualismo neo-platônico.

Pois o ruah dos primeiros textos bíblicos é forte, impetuoso e repentino. Deus age no mundo ‘soprando’. Em Gênesis 2, 7, o sopro de Deus insufla uma vida tão poderosa nas inertes narinas do Adão, que este se espalha rapidamente pela terra inteira, como relatam os primeiros capítulos do livro Gênesis com manifesta satisfação. Uma vida tão potente que os primeiros patriarcas alcançam idades incríveis. Matusalém chega aos 969 anos (Gn 5, 27) em meio de filhos, netos e bisnetos a não saber mais o número. O Adão é ao mesmo tempo ‘inspirado’ e frágil. É respirando que ele demonstra estar vivo, mas, de outro lado, ele não é mais que um sopro que passa e não volta mais (Sl 78, 39).

Mas não é só no Adão que o sopro de Deus se mostra poderoso. No princípio dos princípios, antes mesmo da luz, o sopro de Deus já movimenta o universo:

Terra vazia solidão

Escuridão sobre os abismos

Sopro de Deus

Movimentos sobre as águas (Gn 1, 2).

Movimentos também sobre os imensos desertos do Levante. Enfim, o ruah hebraico tem um amplo leque de significados, desde vento, ar respirado, fôlego de vida, até elementos mais psicológicos como ímpeto, dinamismo, ardor e vontade. Depois do dilúvio, recordando seu amigo Noé, Deus sopra sobre a terra e as águas um vento de paz (Gn 8, 1). O sopro de Deus apazigua as águas do dilúvio, abre passagem para os hebreus no Mar Vermelho, traz alimentos ao deserto, restaura ossos ressecados em povo vivo (Ez 37, 1-14). Um sopro de Ihwh deposita Ezequiel no meio de um vale repleto de ossos secos, e lhe manda dizer aos ossos: Vejam, eu lhes envio um Sopro. Vivam. Eu lhes dou nervos, carne e pele, eu lhes dou meu sopro. Vivam! (Ez 37, 6). E é esse mesmo Sopro Santo que nos traz Jesus: Um Sopro Santo virá sobre ti e uma força do Muito Alto te cobrirá com sua sombra (Lc 1, 35), diz o Anjo a Maria.

O Sopro de Deus anima os primeiros cristãos. Em meio a dificuldades, o Sopro se revela uma ‘força drástica’ (como escreve Paulo), ou seja, uma força que intervém nas horas do perigo. Ora, o perigo é a aliança dos líderes da igreja com os poderes deste mundo. Perigo grande aparece no século IV, quando o próprio Imperador Constantino convida os líderes cristãos a se reunir em Niceia, sua residência de verão, situada na Ásia Menor. Aí já dá para perceber o perigo. Os bispos começam a ter medo do Espírito Santo, como revela o Credo de Niceia, que evita pôr o Espírito em relevo e só lhe concede um lugar no fim do Credo. Nas entrelinhas desse Credo se esconde o receio de uma igreja por demais profética. Aliás, já no início do século III, Tertuliano tinha escrito com todas as letras que a igreja emergente expulsou os profetas, afugentou o Espírito (prophetiam expullit, Paracletum fugavit). A igreja católica herdou esse temor mal confessado do Espírito Santo e evitou se referir a ele ao longo de muitos séculos.

Mas, como sempre acontecem novidades na história, aparece uma defesa do Espírito Santo, muitos séculos após Niceia, onde menos se espera: na filosofia moderna, entre descrentes e críticos da religião. Diante da vitória da Revolução Francesa em Paris, o filósofo alemão Hegel elabora, na sua ‘Fenomenologia do Espírito’ (1807), uma teoria acerca da importância fundamental do que ele chama de ‘Espírito verdadeiro’, na construção da história humana. Outros filósofos da época, Kant e Diderot, o acompanham. Tomando emprestada de Diderot a imagem do tecelão, Hegel escreve que o Espírito ‘tece sua rede’ em silêncio, com paciência e perseverança. Diderot ainda usa outra imagem, a de um tecido totalmente impregnado por algum líquido. Quando um corpo social se encontra totalmente impregnado de ideias novas, a revolução factual é fácil. Ela pode até acontecer sem derramamento de sangue. Escrevo o termo ‘Espírito’ com maiúscula, pois se trata aqui deveras do Espírito Santo. O velho sistema cai por si mesmo, como um vestido que não serve mais. No silêncio de inúmeras ações inovadoras, realizadas no dia-a-dia da vida, o Espírito vai abrindo espaço para que – no momento apropriado – sua dinâmica se manifeste e provoque uma efetiva mudança na sociedade como um todo. Segundo Hegel, a revolução factual é uma decorrência natural da reforma espiritual. Kant diz mais ou menos o mesmo quando usa a imagem de um motor que unifica e propulsiona os mais diversos elementos que se encontram dispersos na realidade da vida. A pessoa ‘espiritualmente unificada’ não se deixa distrair, ela só se interessa pelo ‘Espírito’, ou seja, pelo que realmente importa.

Estamos aqui, no final do século XVIII, época da Revolução Francesa, diante de um inesperado reencontro entre a intelectualidade ocidental e o espírito profundo da Bíblia, que desde as narrativas patriarcais usa a imagem do espírito (ruah, sopro) para significar ações silenciosas, cotidianas, unificadoras e impulsionadoras, capazes de mudar o mundo. O âmago da revolução, portanto, não reside no movimento violento e estrondoso das armas (embora essas sejam por vezes indispensáveis para confirmar o processo), mas na ação silenciosa e tenaz do Espírito no íntimo das pessoas.  O reencontro entre Bíblia e pensamento moderno, operado por Hegel e consortes, põe fim à leitura platônica da obra do espírito, que durante longos séculos predominou na literatura cristã. No pensamento platônico, como sabemos, a ‘espiritualidade’ não tem nada a ver com a vida dos corpos com seus problemas ‘materiais’. Mas, inesperadamente, filósofos modernos da envergadura de Hegel, Kant e Diderot fornecem aos cristãos de hoje uma senha de acesso aos documentos de sua própria tradição. O mesmo se diga de um filósofo do século XX, o marxista Ernst Bloch, que, em seu ‘Princípio Esperança’ (‘Das Prinzip Hoffnung‘, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1949) escreve que Jesus ‘incorpora’ o Espírito Santo, vive o ‘sonho diurno’ de um ‘mundo diferente’, e assim acumula energias em prol da mudança, em contraste com o conformismo inerente às religiões hierarquizadas.

  1. A tradição.

Essas pinceladas apelam para a seguinte reflexão: ao longo desses dois mil anos de história cristã, o Pentecostes foi vivido nos mais variados contextos e teve nomes e protagonistas diferentes. Isso nos traz a seguinte reflexão: ao querer falar do pentecostalismo, não se pula direto do segundo capítulo dos Atos dos Apóstolos aos nossos dias. Há de se passar pela ‘tradição’. Uma tradição nos deu um Paulo de Tarso, um Bento de Núrsia, um Joaquim di Fiori, um Francisco de Assis, um Lutero, um Calvino, um Zwingli, um Inácio de Loyola, um Domingos de Guzmán, um Armínio, um John Wesley, uma Hildegarde de Bingen, um Mestre Eckhart, uma Teresa de Ávila, um João da Cruz, um Antônio Conselheiro. Uma tradição tão diversificada que o estudioso pentecostal Samuel Pereira Valério, numa entrevista que captei na Internet, declara: existem profundas diferenças entre os grupos que se dizem pentecostais. No que se costuma chamar ‘pentecostalismo’ (em singular) atuam na realidade complexos e diferenciados cruzamentos entre arminianos, calvinistas, batistas, presbiterianos, metodistas, quakers. Há como detectar mesmo mútuas influências entre grupos pentecostais e participantes de movimentos carismáticos católicos.

Ao escrever estas linhas, sinto-me de repente como navegando numa imensidão oceânica.  Enxergo no horizonte longínquo a imagem da ‘Iluminação’ de Buda, recordo a Visita do Anjo Gabriel a Maomé, relembro o Livro dos Aforismos de Confúcio, entrevejo a Satyagraha de Gandhi. Imagens e mais imagens da atuação de ‘Sopros de Deus’ sobre a vastidão do mundo. Aí me volta a frase de Jesus: O vento sopra onde quer, você entende sua voz sem saber donde vem nem para onde vai. Assim vai todo homem nascido do Sopro (Jo 3, 8). Um Sopro de Deus em Nazaré, Jerusalém e Corinto, mas também em Nepal, em Meca, na China, no Brasil.

Não posso deixar de dizer aqui, dentro do tema ‘tradição’, umas palavras sobre o catolicismo, religião em que nasci e me criei. Durante longos séculos, o catolicismo foi a instituição mais poderosa das sociedades ocidentais, com seu papado no topo, suas dioceses espalhadas pelo mundo, suas paróquias a marcar as horas, os dias, as semanas, os anos e os momentos das vidas das pessoas, ou seja, a acompanhá-las do nascimento à morte, por meio de ritos, pregações, sacramentos, regras de conduta, principalmente pela criação de um impressionante imaginário. Igrejas no centro das aldeias, e no meio das cidades a catedral. Mitras, batinas, estolas. A época gloriosa do catolicismo se situa na Idade Média, quando – ao lado de retumbantes sucessos – se cometeram erros gigantescos. A hierárquica eclesiástica da época incorreu no erro fatal de construir uma cristandade sem praticamente nenhuma referência à irrupção do Espírito de Deus no mundo. Um impressionante imaginário de poder e glória ocultou a ação do Espírito.

Esse desvio gigantesco deixa hoje não poucos católicos perplexos. Cresce o número dos que se dão conta que resgatar o sentido original do cristianismo é coisa difícil para os católicos. Difícil abandonar a postura psicológica, a mentalidade de quem foi educado dentro da ideia de uma instituição eclesiástica eterna e imutável, na ilusão de uma sociedade ‘cristã’ transmitida por ‘osmose’, pela simples transmissão da cultura na sucessão das gerações.

Esse catolicismo ‘sem Espírito’ facilitou o surgimento da atual religião, mundial e exclusivista, do mercado. Se, durante séculos, se disse: ‘extra ecclesiam nulla salus’ (fora da igreja não há salvação), agora se diz ‘there is no alternative’ à religião do mercado. O mercado regula tudo, como um Deus. Distribui, equilibra, põe ordem nas coisas. Na realidade cria ricos extremamente ricos e pobres extremamente pobres. Por causa do background católico absolutista, foi relativamente fácil, para os pregadores da religião do mercado, convencer as pessoas do poder absoluto do mercado. Na vida cotidiana, as regras não sofreram muita alteração e muitos nem sentiram a transição.

  1. A ‘pentecostalidade’.

Como tencionei mostrar neste texto, a atual apropriação política do pentecostalismo não esgota nem de longe as potencialidades desse modo de se confessar o cristianismo. Existe, no pentecostalismo, muita riqueza que escapa a essa apropriação.

Eis o ponto que chamou a atenção de alguns dos bispos católicos que participaram do Concílio Vaticano II, realizado em Roma entre 1962 e 1965. Ali despontou, embora de modo velado, sem nome nem qualificação, o tema do pentecostalismo. Aliás, foi no contexto desse despertar que nasceu o neologismo ‘pentecostalidade’.

Isso se deu por ocasião de uma discussão, na Aula Conciliar, sobre o ‘carisma’ (veja o verbete ‘Carisma’ no ‘Dicionário do Concílio Vaticano II’, editado por Paulinas e Paulus, São Paulo, 2015 [cuja coordenação coube, em parte, a Wagner Sanchez Lopes], pp. 78-80). Apresentaram-se duas posturas frente ao ‘carisma, dom do Espírito Santo’. Uma, defendida pelo Cardeal italiano Rufini, representou a doutrina clássica: o carisma é um dom ‘extraordinário’, a ser exercido em  submissão à autoridade eclesiástica. Outra, representada pelo Cardeal belga Suenens, sustentou que o carisma é um dom ‘ordinário’ do Espírito Santo, ou seja, livre e independente de ordenamentos eclesiásticos, embora sempre ‘ordenado ao bem da comunidade’. Enfim, uma adaptação da frase de São Paulo que já comentei acima: A cada qual se concede a manifestação do Espírito, sempre ordenado ao bem da comunidade (1Cor 12, 7). A Assembleia se posicionou do lado de Suenens e o tema da liberdade no Espírito apareceu em dois documentos conciliares: ‘Lumen Gentium’ (4, 7 e 12) e ‘De Ecclesia’. Mas, pelo resto, houve pouco interesse. O assunto passou quase despercebido, sem comentários. Como já escrevi, o termo ‘pentecostalismo’ nem chegou a ser mencionado. Acontece que o frade dominicano Yves Congar, um dos melhores teólogos participantes do Concílio, demonstrou interesse pelo tema e chegou a lançar o termo pentecostalidade (Dicionário, p. 80). Isso em diversos comentários seus, que aparecem no verbete acima mencionado do Dicionário do Concílio Vaticano II e particularmente no livro ‘A Palavra e o Espírito’, traduzido em português e editado pela Loyola, São Paulo, em 1989. A tese de Congar: uma pentecostalidade permeia toda a tradição cristã. O Espírito de Deus, que se revelou em Jerusalém a discípulos amedrontados, continua se revelando. Ele toma sempre a iniciativa, mas não segura o discípulo pela mão, não obriga, não dirige. Respeita nossa liberdade. Ele ‘sopra’.

Para terminar escrevo algumas orientações de leitura que me parecem condizer com uma compreensão ‘pentecostal’ do cristianismo:

* Aprender a ler a Bíblia segundo o modo em que os antigos judeus a leram, ou seja, seguir o modo ‘midrash’ dos antigos rabinos: contar as histórias com forte ingrediente imaginativo.

* Abandonar uma leitura exclusivamente linear dos textos a favor de uma leitura mais condizente com as circunstâncias concretas da vida vivida. Isso implica em ver nos textos disponíveis peças de um ‘quebra-cabeça’ a ser montado pelo leitor atual. Operação delicada, decerto, que consiste, por exemplo, em retirar o tema pascal do foco e focar o tema pentecostal, ou seja, relacionar a narrativa sobre a ressurreição de Jesus ao evento pentecostal e não ao evento pascal. Pois a ‘semana santa’ é a semana da derrota (aparente) do movimento. Ela termina com o abandono dos discípulos, que deixam Jesus só. Pentecostes, pelo contrário, realça a recuperação da coragem por parte desses discípulos, após meses (ou anos? quem sabe?) de insegurança, abatimento e vontade de abandonar o projeto de Jesus.

* Recolocar narrativas esparsas, como se fossem peças do um quebra-cabeça, numa grande narrativa de recuperação do movimento de Jesus após o trauma da crucifixão, como fiz na apresentação do item 2 deste texto, ao ler a narrativa da paixão de Jesus e do abandono dos discípulos numa perspectiva pentecostal. Quer me parecer que essa narrativa esteja mais próxima do realmente vivido. Mas, claro, é assunto para discussão.

* Termino com o versículo 46 do segundo capítulo dos Atos dos Apóstolos:

(após Pentecostes) cada dia, com constância e unanimidade, eles se dirigiam ao Templo, dividiam o pão em suas casas e se alimentavam com alegria e de coração simples. O povo inteiro os olhava com simpatia. Não importa que o templo seja budista ou umbandista, católico ou pentecostal. O que importa é que se divida o pão com os que não o têm.

  1. Recomendo a leitura do artigo ‘Hermenêutica Bíblica: refazendo caminhos’, de José Ademar Kaefer (jademarkaefer@gmail.com), publicado na revista Estudos de Religião, vol. 28, n.1. São Bernardo do Campo: UMESP, 2014, p.115-134. O artigo aborda alguns temas que só abordei por cima neste meu texto, como, por exemplo, o das tradições orais na transmissão da Bíblia, ou o método ‘midrash’ dos antigos rabinos, etc. Kaefer se diz devedor de biblistas pioneiros na América Latina e cita Milton Schwantes, Severino Croatto, Gilberto Gorgulho, José Comblin, Carlos Mesters, Jorge Pixley e Ana Flora Anderson.

2. O Espírito Santo e a Tradição de Jesus, por José Comblin ( pp 269 – 276)

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II Jornada de Estudos José Comblin Missão, Ação e Liberdade. Aproximações entre Comblin e o Papa Francisco

II Jornada de Estudos José Comblin Missão, Ação e Liberdade. Aproximações entre Comblin e o Papa Francisco. Universidade Católica de Pernambuco . Junho 9, 2021 – junho 11, 2021

Há duas maneiras de fazer a história. A primeira delas é deixando-a morrer pelo esquecimento. A segunda é fazendo memória, atualizando-a para o tempo presente com seus acontecimentos e pensadores. As Jornadas José Comblin inseridas na segunda perspectiva, tem por objetivo reunir pesquisadores e interessados na obra de Comblin, visando ao avanço e à reflexão de seu pensamento de maneira crítica. A partir da perspectiva ecumênica, quer se constituir como espaço de integração daqueles que desejam fazer memória e aprofundar sua reflexão teológica, tão atual e pertinente ao contexto latino-americano.

A II Jornada José Comblin busca aprofundar a reflexão combliniana a partir do tema: Missão, Ação e liberdade: aproximações entre Comblin e o Papa Francisco.

Para os desafios socioculturais e religiosos, da contemporaneidade, que tocam as questões essenciais do existir humano e que por isso tocam a Teologia mesma, queremos propor uma nova oportunidade de reflexão, desde a contextualidade de cada participante, buscando um novo aporte ao tema da Missão, Ação e liberdade.

Cadastro, inscrição e submissão de Resumo

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Informações sobre a Conferência

Fonte: UNICAP

 

Indignar-nos contra o mal, ousar vencê-lo!

Rubicão: Ciro ousa a travessia!

Com o DEM ele sela a sua sorte!

Coronéis voltam, juntos às origens

ACM e Ciro Gomes refazem aliança

Bolsonaro é cria militar

Outra vez um desastre pra Nação

Ao revés dos avanços de Francisco

Nossos bispos recuam, em profecia

Suspeição se confirma ao ex-juiz

Que afundou o País, com Bolsonaro

Que partilha se tem quanto às vacinas?

De dez, oito pros ricos, dois pros pobres

Como podem países soberanos

Aceitar em seu solo força estranha?

São dezenas de bases militares

Que o Império conserva em todo o mundo

Contra toda razão, Ricardo Salles

Ameaça o Ambiente e os brasileiros

Estratégia letal, usa o Império:

Fragmenta o real, cinde os países

Analista credível se comprova

Por escritos de dez ou trinta anos

Huck é sonho da elite envergonhada

De que siga, risonho o seu projeto

Não se caia no conto da Direita

Pois trair é da índole do escorpião

Fio racista incide no critério

De se ver só o sul “nacional”

Quem lidar com a lógica eleitoral

Não se livra da “arte” de engolir sapo

Do ambiente ele faz mercadoria:

Do Império não se espera compromisso

Quem na força das armas mais confia

Não se presta ao combate libertário

Tiradentes Metrópole enfrentou

Por que não o Império enfrentaria?

Desde Esopo do Lobo e do Cordeiro

Violência é arma da irrazão

 

Pretextar feriado para atraso

É dar prova de medo da CPI

 

Verdadeira homenagem a Tiradentes

É tocar o trabalho – cidadão!

 

Cidadão tiradentes não respalda

Adiar cinco dias CPI

 

Um só dia feriado justifica

Cancelar os trabalhos da semana justifica?

 

Ocidente ameaça Rússia e China

Delas cobra que cumpram o que ele nega

 

Governança global é mais que urgente

Superando critérios de hegemonia

 

Leda Nagle propaga “fake news”

De ameaça de morte a presidente

 

Não imputem a outrem seus próprios crimes

Violência é arma de covardes!

 

A emergência climática se agravando

E a direita mostrando-se ecocida

 

Vira pária o Brasil de Bolsonaro

Assim quer o Centrão de Maia e Lira

 

Dostoievski evoca em seu romance

A conversa do algoz com Jesus preso

 

Era o próprio Santo Ofício a inquiri-lo

E o fazia em nome da Madre Igreja…

 

Muita Igreja hoje em dia refaz a cena

Pune os pobres, adora o deus Mercado.

 

Não convence pretexto episcopal

De abster-se do processo cidadão

Não se inspiram em Jesus de Nazaré

Recuando de sua profecia

 

João Pessoa, 20 de Abril de 2021.

Identidades, pessoa, comunidade

Durante a reunião mais recente da Teologia Nordeste (grupos que organizam a XI Semana Teológica Pe. José Comblin), na escuta de mim mesmo e das pessoas que participaram, vieram algumas sensações e ideias que partilho aqui.

Acredito que boa parte da minha vida tenha sido uma teimosa tentativa por manter a minha própria identidade, frente a pressões que ameaçavam me apagar.

O que vou trazer aqui são algumas anotações desse processo de recuperação e preservação da minha própria identidade.

Descobrir que eu tenho uma família, que eu tinha sido amado, foi uma descoberta relativamente recente para mim.

Convivo ainda com marcas que me deixaram acontecimentos vivenciados na infância. Abuso. Impotência. Abandono.

Sensações com as quais tive e tenho que conviver para, diariamente, saber que tenho o direito de existir e ser feliz.

Estas experiências e a superação que me foi possível alcançar a partir da minha inserção na Terapia Comunitária Integrativa, constituem o eixo deste escrito.

Quando me tornei professor na Escola de Sociologia e Politica de São Paulo em 1984, tomei conhecimento, a través de um aluno, de um texto que mudou a minha vida.

Era o livro de Anaïs Nin, Em busca de um homem sensível. Mais especificamente o capítulo A nova mulher.

Descobri que eu podia ser a pessoa que sou.

Um outro texto que me marcou muito foi o livro de Allan Watts, Tabu. O que não deixa você saber quem você é.

Encontrei estímulo para prosseguir numa batalha para manter a minha própria identidade no âmbito acadêmico.

Descobri que a alienação não era algo que acontecesse a pessoas longe, desconhecidas. Tinha acontecido comigo também, em parte.

Comecei, ou melhor, prossegui no caminho de volta.

Arte, sociologia, cotidiano, fé, afetos.

Começava a me refazer por dentro.

Fui aposentado da UFPB e me integrei ativamente na rede da TCI. Aqui encontrei e encontro o florescimento dos meus sonhos de juventude.

Esta jornada é contínua.

Não se trata de uma atividade caritativa. Não fazemos a TCI para as pessoas, por sermos bonzinhos/as. Fazemo-la para nós mesmos/as, para sarar com as pessoas, comunitariamente.

Por que sarar?

Tenho relatado pormenorizadamente este processo no meu livro Um Terapeuta Comunitário em busca de si mesmo (2019)

A reunião mais recente preparatória da XI Semana Teológica Pe.José Comblin reviveu estas memórias.

Compreendi que faz sentido eu fazer parte deste coletivo.

Não consigo mais me dissociar. Aonde eu estou, procuro estar inteiro.

Durante este já quase um ano de confinamento provocado pela pandemia, fizemos rodas virtuais de TCI intensamente.

O processo de recuperação da minha identidade cresceu exponencialmente. Era muita gente por esse mundo afora na mesma caminhada.

O meu próprio encontro com Deus se tornou mais real. Longe de imposições. Personalizado.

Sem qualquer pretensão ou vaidade posso dizer que experimento a realidade daquelas palavras que nos recordam que quem procura acha.

Encontrei, encontro Deus no meu exercício cotidiano da vida.

A comunidade veio para mais perto. Veio para dentro de mim.

Muitas famílias se reconciliaram, reforçaram seus afetos, reencontraram a unidade neste quase ano de confinamento e convívio com uma morte próxima.

Já não há mais tempo para pensar que temos muito tempo.

Como em outros tempos, as circunstâncias mais uma vez me lembram que o tempo é agora. Um instante fugaz. A porta estreita.

 

 

 

A denúncia ao anúncio vem colada, é da práxis vital do Nazareno

A denúncia ao anúncio vem colada, é da práxis vital do Nazareno

 

A investida das forças de Direita

No Brasil e no mundo, em geral

Grande parte você deve deste mal

Em porções expressivas vem afeita

A pessoas dizendo-se já eleitas

Por Jesus já não sendo tal aceno

Esta gente incide em engano pleno

Mentem a si e pra Deus: não ganham nada

A DENÚNCIA AO ANÚNCIO VEM COLADA

É DA PRÁXIS VITAL DO NAZARENO

 

No Brasil, o conjunto de tragédias

(Pandemia, ambiente, economia…)

Na política, a cultura se esvazia

Tendo as forças cristãs como intermédias

Conferindo às elites suas rédeas

Controladas por chefe obsceno

E cristãos apoiando-o, no terreno

Ao país inflingindo uma guinada

A DENÚNCIA AO ANÚNCIO VEM COLADA

É DA PRÁXIS VITAL DO NAZARENO

 

Apoiar Bolsonaro e seu governo

É trair o Nazareno e seu legado

Quem Jesus defendia? Os abastados?

Ou os sem-teto vivendo no inferno?

Opulentos, em apoio ao desgoverno?

Os indígenas, de hábitos amenos

Ou garimpos que na terra põem veneno?

Povo negro ou quem sua terra invada?

A DENÚNCIA AO ANÚNCIO VEM COLADA

É DA PRÁXIS VITAL DO NAZARENO

 

Protestantes, Católicos, em apoio

A governo ecocida negam a fé

A trair o Evangelho chegam até

Pois assim, só espalham mais o joio

Transformando a Missão em reles choio

Na Missão de Jesus fazendo dreno

São igrejas voltadas para seu pleno

São pastores e clérigos de manadas

A DENÚNCIA AO ANÚNCIO VEM COLADA

É DA PRÁXIS VITAL DO NAZARENO

 

A tragédia infame se aprofunda

A direita de vez. virou extrema

Confirmando o carácter do seu lema

Só Mamon idolara: é imunda

Emilita em vão  quem a secunda

O sistema, por inteiro é obsceno

Bolsonaro é ’’pastor’’ que dá veneno

Aos humanos, às plantas e a manada

A DENÚNCIA AO ANÚNCIO VEM COLADA

É DA PRÁXIS VITAL DO NAZARENO

 

Jesus veio servir, não ser servido

Evangélicos só querem o poder

Um contraste é vidente vêm à ter

À mensagem evangélica negão ouvido

Com discurso arrogante, Atrevido

Seu dizer até pode ser Ameno

Seu agir, no entanto, é um veneno

São pastores de crime que ao céu brada

A DENÚNCIA AO ANÚNCIO VEM COLADA

É DA PRÁXIS VITAL DO NAZARENO

 

Os profetas nos chamam de volta a fonte

Dentre elas e eles, José Comblin

A instaurar uma vida nova e sã

Não é surpresa que ele nos a ponte

Em seu livro já póstumo, tal Horizonte

O agir de Jesus é sempre pleno

Até mesmo Seu fardo vem ameno

Do Espírito seguimos a Toada

A DENÚNCIA AO ANÚNCIO VEM COLADA

É DA PRÁXIS VITAL DO NAZARENO

 

Jesus vem como artífice da paz

Bolsonaro semeia o armamento

É cercado de grupos violentos

Como podem cristãos seguir atrás

Justamente de quem o contrário faz?

De amor verdadeiro Jesus é pleno

Grave abate da Esquerda, duro aceno

Confiar na Direita é só roubada

A DENÚNCIA AO ANÚNCIO VEM COLADA

É DA PRÁXIS VITAL DO NAZARENO

 

Nesta página ecológica, vêm escritos

Conteúdos proféticos impactantes

Concitando os cristãos a irem adiante

Assumindo tarefas, não só ditos

Indo além dos dizeres mais bonitos

Ao apelo da fé seguir sereno

Se me curvo à verdade, não me alieno

Quem seguir a Jesus, supera fadas

A DENÚNCIA AO ANÚNCIO VEM COLADA

É DA PRÁXIS VITAL DO NAZARENO

 

Tradição de Jesus mantém central

O lugar que é do pobre, em Seu Reinado

Já está dentro como privilegiado

Mas os outros também tem seu aval

Desde que abram mão do Capital

Do Evangelho jamais se torne um dreno

Confiante em Jesus, caminho pleno

Jovem rico não seja sua mirada

A DENÚNCIA AO ANÚNCIO VEM COLADA

É DA PRÁXIS VITAL DO NAZARENO

 

Quem na ação e esperança persevera

Não se rende ao temor, à omissão

Mas, insiste, persiste, não fazem vão

Se empenha em plantar uma nova era

Desde já vai trilhando via sincera

Por justiça, pão e paz, luta sereno

Não importa país, povo ou terreno

Com coragem, avança nesta empreitada

A DENÚNCIA AO ANÚNCIO VEM COLADA

É DA PRÁXIS VITAL DO NAZARENO

 

Sua proposta é de vida em plenitude

Menos culto, sacrifício, adoração

Mais serviço e partilha Lhe agradarão

Nesta linha, que Ele nos ajude

A mostrar juntos ao pobre mais atitude

Que o Amor nunca possa ser de menos

Pois com ele jamais eu me alieno

Dia a dia se mostra essa jogada

A DENÚNCIA AO ANÚNCIO VEM COLADA

É DA PRÁXIS VITAL DO NAZARENO

 

As centenas de normas da Lei Antiga

Os seus chefes sabiam-nas de cor

Delas fazem seu ponto de apoio mor

Pra que o povo dos pobres a elas siga

Só repetem preceitos de sua liga

Seu agir o sistema mantém pleno

Tudo quanto Jesus diz: “Eu condeno”

Os seus chefes só visam sua escalada

A DENÚNCIA AO ANÚNCIO VEM COLADA

É DA PRÁXIS VITAL DO NAZARENO

 

“Não!” à ordem existente Jesus diz

Ele vem nos propor um mundo novo

De justiça, de paz, pra todo o povo

Do sistema do mal mostra a raiz

Suas ações por Mamon se mostram vis

Quem ao Reino é fiel, é mais sereno

Do poder se aproxima sempre menos

Ao serviço se voltam, em disparada

A DENÚNCIA AO ANÚNCIO VEM COLADA

É DA PRÁXIS VITAL DO NAZARENO

João Pessoa, 9 de fevereiro de 2021