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Por que e para que uma teologia feminista

Por Ivone Gebara

Palestra proferida no encerramento da X Semana Teológica Pe. José Comblin em 03-10-2020

* Freira, filósofa e teóloga brasileira.

Foto na portada: Pe. José Comblin

 

Fonte: Teologia Nordeste

(03-10-2020)

Breve leitura feminista da imagem de Deus em tempos de pandemia

Por Jardene Soares

Minha fala é a partir do lugar que ocupo na sociedade, enquanto mulher, jovem, que cresceu em um assentamento rural, fez a experiência da Escola de Formação Missionária Padre José Comblin da Paraíba e que, aos poucos, através da vida, de movimentos e dos livros, entrou em contato com a perspectiva feminista. Além disso, falo também a partir da minha humilde (con)vivência com muitas mulheres do meio popular, no campo e na cidade.
Não sei se o que faço
É magnífico ou inútil Ingênuo ou astuto
Mas sei que o momento do meu passo É proveitoso e oportuno
É a busca de sonhos cultivados Necessários como o ar e o alimento Para serem concebidos
Como uma semente germinada na terra Que brota silenciosamente com o tempo
Peço à Ivone Gebara, teóloga feminista, por gentileza, que nos introduza nesta conversa sobre a imagem construída de Deus ou as possíveis faces do divino, com as suas palavras de luz e luta.
“Um novo momento se abre para nós como se um grande ‘salto vital’ estivesse sendo coletivamente preparado. Aguardemos vigilantes as pequenas luzes desse grande acontecimento, sem dúvida, em grande parte anunciado, manifestado e vivido por nós mulheres. Ele vem acontecendo devagar, não de forma estrondosa, mas quando duas ou três estiverem reunidas em seu próprio nome acreditando que o amor e a justiça as habitam e podem renovar a face da Terra” (GEBARA, 2019, p. 88).
Sim, Ivone! Que a gestação de um mundo mais humano e justo, principalmente na atual conjuntura, acompanhe toda nossa vida. E é desta forma que inicio um pouco da minha reflexão, a partir de uma situação, uma conversa entre leigos da Igreja Católica, parte da minha vivência em comunidade.
José: – Deus é homem!
Ana: – E Deus pode ser mulher também, não é não?
José: – Não! Deus é homem! Não pode ser mulher. Jesus é homem!
Ana: – Mas se nós somos imagem e semelhança de Deus, por que ele não pode ser mulher?
Sinto confessar que esta vivência marcou-me profundamente, pois através dela pude refletir sobre a construção da imagem de Deus presente no imaginário social e religioso das pessoas. E, além disso, pensar nos seus possíveis impactos à sociedade e à vida, principalmente das mulheres. Tal diálogo pode parecer até engraçado inicialmente, se não revelasse uma face da sociedade e da Igreja Católica (des)conhecida para muitas pessoas: a face do patriarcado. Afinal, em uma sociedade marcada por um cultura patriarcal, não é motivo de admiração encontrar pessoas que pensam assim como José, inclusive na Igreja.
Sim! Porque é dessa forma que a imagem de Deus foi construída e disseminada na Igreja Católica, um Deus que é homem, branco, dos olhos claros e, além disso, me atrevo a dizer heteronormativo. Logo, as pessoas que não se “enquadram” em tais padrões, podem ser vistas como “distantes” de Deus, com o risco de serem discriminadas, excluídas e marginalizadas, como, por exemplo, as mulheres, a população negra/preta e a população LGBT. Se Deus é “Pai Todo-poderoso”, logo, quem serão os mais próximos do divino e detentores de tal poder?
E, para além do contexto religioso, é preciso falar que a Igreja, enquanto instituição detentora de poder diante de sua estrutura patriarcal e hierárquica, só fortalece e reafirma cada vez mais a estrutura presente no Estado, enquanto forma de organização de um sistema que é capitalista, patriarcal e racista. Este caráter patriarcal é manifestado de diversas formas, como, por exemplo, nos espaços de decisão, onde a presença é predominantemente masculina, no clero, na teologia, inclusive na Teologia da Libertação (também patriarcal) e na invisibilidade da atuação de tantas mulheres.
Estas mulheres, na maioria das vezes, atuam em tarefas de limpeza, alimentação e organização da “casa de Deus” – até com um certo ânimo. Porém, de forma bem camuflada, estas atividades revelam a reprodução do trabalho doméstico e a divisão sexual do trabalho, não apenas nos seus lares, mas também na Igreja. E, até mesmo, as mulheres que atuam como líderes e protagonistas no seio da Igreja, com o apoio e a legitimidade da comunidade, também não são excluídas dessa realidade de divisão injusta do trabalho.
Em geral, tais tarefas não são reconhecidas como trabalho, porque “o cuidado é inerente à mulher”, “tarefa de mulher”, o que gera silenciosamente não apenas a desvalorização, a invisibilidade, como também a dupla, tripla ou múltiplas jornadas de
trabalho, levando-as, muitas vezes, a um estado de esgotamento físico, emocional e mental, diante da sobrecarga, enfrentada não apenas nas suas casas, na família, no cuidado com os/as filhos/as, no trabalho, mas também na Igreja, enquanto instituição. E, em tempos de pandemia, tais fatores tornam-se ainda mais evidentes no seio da vida das mulheres.
Dias de luto/a
Em tempos de pandemia
Tantas vidas ceifadas
Tantos feminicídios
Tantas vidas com fome e sede
Tantas mulheres violentadas
Tanto descaso e desrespeito
Dias de luto/a
Tantos vivos mortos
Por uma sociedade preconceituosa
Patriarcal e machista
Que usa de fundamentalismo religioso
Para dizer que “ama o próximo”
E que “promove a vida”
Precisamos rever nossos (pre)conceitos! Também é necessário considerar que muitas mulheres, principalmente as que vivem no contexto das comunidades, em geral, possivelmente ainda não conseguem enxergar esse fato, diante das suas próprias condições de vida e das inúmeras amarras impostas à sua realidade. Dessa forma, falo de um sistema que estruturalmente mata e oprime, principalmente os mais pobres e as mulheres, com base em uma lógica conservadora e fundamentalista, fortemente reproduzida nas Igrejas Cristãs, defendida inclusive por muitos como “vontade de Deus” e “em nome de Deus”.
Afinal, que Deus é esse que defende a morte, principalmente das/os mais pobres? Penso que só não é o Deus da Vida, fonte de amor e justiça! Se Deus só pode ser homem, será que o homem também não deve estar se sentindo Deus? Não basta querer privatizar o que é público e direito das pessoas, como educação de qualidade, saúde, terra, água, moradia, trabalho, acesso à alimentação saudável? A imagem de Deus também precisa ser privatizada?
“O Deus, imagem de mãe, de irmão, o Deus fonte de toda vida, mistério maior e menor, este foi silenciado, testemunhando o silêncio poético no qual a teologia foi obrigada a viver. No que se refere à divindade, o vazio feminino está presente nos céus. As mulheres nunca foram dignas de estar sentadas no céu, nem ter anjos a seus pés.
Tiveram sim que se contentar com o rosto da divindade masculina, forçosamente convencidas de sua inferioridade ontológica e histórica, pois nada nelas assemelhava-se ao divino para merecer uma habitação digna dos céus. Sabemos que a teologia marial tradicional estruturou-se a partir de uma espécie de cooptação de Maria ao projeto de seu filho e de uma obediência sem condições à vontade de Deus Pai, entendida numa perspectiva patriarcal” (GEBARA, 1991, p. 18).
Tudo isso mostra que não é por acaso que a face feminina de Deus foi invisibilizada ao longo da história da humanidade e da Igreja, muito bem exemplificada na fala de José. Afinal, se somos, homens e mulheres, imagem e semelhança de Deus, a face feminina do divino também se faz presente no seio da humanidade. O lado feminino de Deus se manifesta com demasiada força nas faces de tantas mulheres da humanidade, nas comunidades rurais, nos assentamentos, nas comunidades quilombolas, nas comunidades indígenas e periferias da vida, do campo e da cidade.
Falo aqui do Deus de Sara, de Rebeca, de Raquel, de Maria, de Maria Madalena, de Margarida Maria Alves, de Marielle, de Ivone Gebara, de Dona Maria José, Maria do Céu, Maria da Guia, Marta, Rosineide, de tantas mulheres líderes de comunidade, fontes geradoras de vida, não apenas através da maternidade, mas também através de sonhos cultivados e da luta por um mundo mais humano, que expressam cotidianamente, através de atos concretos, a face feminina de Deus! Não apenas do Deus de Abraão, de Isaac, de Jacó, de Jesus, Papa Francisco, Dom Hélder Câmara, de Padre José Comblin e Padre Ibiapina – não dizendo que tais figuras não foram e são importantes. Falo de um Deus que pode apresentar múltiplas faces, assim como diversa também é a beleza da humanidade.
Encerro um pouco desta minha humilde reflexão com o apoio de mais alguns versos, consciente que para algumas pessoas tais palavras podem gerar um certo desconforto e incômodo, mas sem muitos anseios, é longe da minha intenção querer aqui agradar todo mundo. Que a face feminina de Deus, fonte de amor e justiça, suscite em nós a defesa da vida, inclusive das mulheres, e não da necropolítica, na esperança que todas e todos tenham vida plena e em abundância!
Dias de luta
Por uma sociedade mais humana
Por uma sociedade mais justa
E que na atual conjuntura política
Os sentimentos de indignação e esperança Estejam sempre presentes
No cotidiano da vida
Dias de luta
Na terra de muitas mulheres
De muitas histórias
De muitos amores
Mulheres guerreiras
Mulheres valentes
Mulheres de força e que falam “Oxente”
Dias de luta
Na terra de muitas Marielles presentes De Margaridas variadas
De Marias sobreviventes
De muitas vidas Dandaras Mulheres de ontem, hoje e sempre Sigamos firmes na caminhada!
Referências
GEBARA, Ivone. Conhece-te a ti mesma. Edições Paulinas, São Paulo, 1991. GEBARA, Ivone. Medellín e a teologia feminista. Revista Albertus Magnus, v. 10, n. 1, p. 73-88, 2019.
GEBARA, Ivone. Religião e a pandemia Covid-19. Instituto Humanitas Unisinos, junho, 2020.
Fonte: Teologia Nordeste
(25-07-2020)

 

Direitos iguais (também) ao interno da Igreja – crítica de uma teóloga italiana

Por Lucetta Scaraffia
Extrato de uma conferência (“Mulheres e Fé: a imagem feminina da Igreja Católica nos séculos IX e X”), na Fundação Collegio San Carlo, em 6 dezembro de 2013.
– “Hoje, vou falar-lhes de um tema que todos pensam resolver bem facilmente, mediante uma condenação da Igreja por não dar espaço às mulheres. De fato, se olharmos para a Igreja de hoje, temos razão em dizer isto, porque na Igreja de hoje, o Vaticano está todo cheia só de homens. Há mulheres que lá trabalham, mas todas em posição subordinada.
– Nos níveis superiores, nos níveis em que são tomadas as decisões, aí as mulheres não se fazem prsentes.
– As Religiosas, por exemplo, constituem dois terços do universo dos Religiosos, portanto uma maioria robusta. Enquanto isso, as Mulheres Leigas tornam-se cada vez mais uma ajuda essencial a serviço das Paróquias: ensinam no Catecismo, ocupam-se do andamento da Paróquia, na Cáritas, Trata-se de uma ajuda muito forte que as Mulheres dão à Igreja. Ajuda transparente que, por outro lado, quase ninguém vê.
– Então, a Igreja hoje nos parece uma instituição misógina, por negar-se a reconhecer às Mulheres o papel do seu trabalho, ao interno da vida religiosa.
– Por outro lado, consideremos um outro fator, que é o da história da emancipação feminina. Vemos que a emancipação feminina nasceu, enraizou-se e realizou-se apenas nos países de matriz cristã. Vejamos que há uma grande dificuldade de que isto se faça em países não-cristãos (Índia, China, países muçulmanos…), onde há grandes problemas em aceitar a igualdade das Mulheres.
– É evidente que a matriz cristã lançou as sementes dessa igualdade entre mumulheres e homens. Vou falar-lhes sobre as Mulheres nos séculos IX e X, mas lhes digo que o Cristianismo lançou as sementes da igualdade.
– No Evangelho, Jesus fala continuamente com as mulheres. E no tempo de Jesus, era muito complicado falar com as mulheres, especialmente com mulheres marginalizadas. E as tratava com total paridade. À samaritana Ele diz: “Vai e dize ao teu povo…” A Maria É a Madalena que Ele se apresenta, por primeiro, como Ressuscitado. Trata as mulheres como tratava aos homens (com igualdade).
– O Evangelho é um livro emblemático quanto à mudança de tratamento em relação às mulheres, inclusive em relação às mulheres “impuras”. Ele tira das mulheres a marca da impureza física. Não há perigo em que as mulheres estejam “impuras”, de modo a justificar que se mantivessem as mulheres marginalizadas, separadas dos homens. Não são mais tratadas como “impuras”. A impureza é do coração, não do corpo, negando assim “impureza” em relação àquelas mulheres por conta de menstruação ou no período pós-parto, não se justificando por isso uma diferença real em relação aos homens.
– É assim que o Cristianismo se torna, nos primeiros séculos, uma religião de mulheres: são muitas as mulheres que se convertem ao Cristianismo, porque o Cristianismo assegurava paridade (em relação ao homem), na vida espiritual.
– Segundo Peter Brown, um grande historiador das religiões da antiguidade, nos primários séculos, havia um tratamento de paridade, ao ponto de permitir às mulheres e aos analfabetos terem uma carreira religiosa, o que revolucionou a sociedade antiga, pois, por meio da ascese, da prática ascética do jejum e da abstinência sexual, permitiu-se às pessoas, às mulheres que não sabiam ler nem escrever, e a pessoas letradas no monarquismo cristão fundado por Antão, que era um camponês analfabeto. Essas pessoas analfabetas, esses homens e mulheres analfabetos se tornam santos, fazendo uma carreira religiosa, no mesmo nível de letrados como Jerônimo, que traduziu os textos sagrados… Isto implica uma carreira espiritual para as mulheres, o que era uma novidade absoluta. Isto é importante.
– Um outro aspecto é o do matrimônio cristão. Além da aceitação da premissa do consenso entre os dois contratentes – a mulher não podia ser um objeto que passava do pai ao marido -, ele implicava os mesmos direitos e os mesmo deveres aos cônjuges. O dever de fidelidade era também para o homem, coisa que antes não acontecia. (…) Aqui houve também uma revolução, no campo do matrimônio.
– Portanto, naquele momento histórico, o matrimônio cristão constituía um ato absolutamente favorável às mulheres. Não existia divórcio. Era o repúdio. E eram sobretudo as mulheres, as repudiadas. Se o casal não tivesse filhos, a responsabilidade era atribuída quase somente à mulher, considerada estéril, e daí o repúdio. E acabava muito mal.
– Assim, o Cristianismo lançou sementes importantes que deram fruto na história. (…) O Cristianismo deu grandes santas, grandes abadessas, mulheres que construíram a cultura cristã, como os homens, contribuíram, como os homens, para a tradição cristã. Isto se deu durante toda a história do Cristianismo. Pensar em mulheres como Catarina de Siena, que falou num Sínodo, que orientou a papas e a cardeais, fazendo-o em nome de Deus. Era uma mulher analfabeta. Não sabia ler nem escrever. Ditava suas cartas e seus tratados para seus assistentes dominicanos. E era chamada a falar nesses espaços.
– Bem, as mulheres tiveram oportunidades na tradição da Igreja, que não tiveram no mundo laico. No mundo laico, somente as rainhas, algumas rainhas é que tiveram essas possibilidades. No contexto da Igreja, eram essas mulheres que, por motivo espiritual, fizeram carreira. Tudo vai mudar com a Revolução Francesa.
http://www.youtube.com/watch?v=uIqe0tuyuHk
Traduçáo: Alder Júlio Ferreira Calado

O que pensam as teólogas feministas?


Duas entrevistas emblemáticas
Há poucos dias, li uma reflexão fecunda proposta por Ivone Gebara acerca das recentes canonizações.
Encontrei uma entrevista recente da própria Ivone Gebara, concedida a Mônica Teixeira, que considero importante: cf. “link”:

Recomendo, ademais, ver/ouvir a instigante entrevista (em três breves blocos de cerca de 11 minutos, cada) da teóloga feminista catalã, Teresa Forcades, concedida ao Programa “Tierra de Sueños”.
Dentre os temas aí abordados, destaco:
– os determinantes sociais da saúde (onde ela cita, inclusive a conhecida figura de Ivan Illich: “La obsesión por la salud se ha convertido en una patología.”;
– desafios da Igreja Católica Romana;
– o lugar das mulheres na Igreja, em especial o debate sobre a ordenação das mulheres;
– o debate sobre a homoafetividade.
Eis o respectivo “link”:

Que tal conferir?