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Mino Carta se vê como Deus revelando a verdade sagrada. E o resto do mundo o vê como Napoleão de hospício.

Incorrigível, Mino Carta volta a engrossar o lobby italo-brasileiro na caça a Cesare Battisti, em besteirol  publicado na Carta Capital e reproduzido pela Folha de S. Paulo, com o evidente objetivo de influenciar a decisão que a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal tomará amanhã (24), ou salvando o escritor da tramoia eivada de ilegalidades com que se pretende entregá-lo à vendeta italiana ou repetindo a ignóbil decisão adotada em 1936, quando autorizou a extradição de Olga Benário para a Alemanha nazista.

Quando li o texto do Mino, tão rancoroso quanto inconsistente, pensei até em refutá-lo ponto por ponto. Mas, isto caberia caso houvesse algo a refutar. Não há nada. 

É uma narrativa que não se sustenta em evidência nenhuma, testemunha nenhuma, comprovação nenhuma, citação nenhuma. Apenas na megalomania desmedida de um indivíduo que pensa ser tão superior aos comuns mortais a ponto de apenas dar a público o que, no seu entender, é a verdade definitiva e incontestável, ponto final. Chamavam-no, não sem um tanto de ironia, de imperador, mas ele já ultrapassou tal estágio. Agora seu discurso é de quem, intimamente, acredita ser Deus. Pena que, para a maioria dos leitores dotados de espírito crítico, ele não passe de um Napoleão de hospício…

Eis a tábua dos 10 mandamentos ditados por Mino Carta para serem entregues à plebe ignara, que os deve aceitar sem o mais ínfimo questionamento, decorá-los e depois repeti-los com muita fé e devoção:

1º que os biógrafos estão todos errados e o Cesare não teria nascido e sido criado numa família comunista;

2º que, também na contramão de tudo que autores isentos já publicaram, ele teria sido um criminoso comum, só se politizando na prisão;

3º que, nos anos de chumbo, a Itália teria continuado a ser um Estado democrático de Direito e não a democracia com áreas cinzentas a que se referiu com muita propriedade Tarso Genro (havia eleições, as instituições funcionavam, mas a Justiça e a polícia agiam como nas piores ditaduras, o que foi reconhecido até pelo grande Norberto Bobbio);

4º que não teriam ocorrido arrependimentos arrancados sob torturas na Itália, sendo, portanto, mentirosos todos quantos denunciaram maus tratos, todos os que os documentaram e todas as entidades de defesa dos direitos humanos que cansaram de protestar contra as sevícias e as mortes delas decorrentes;

5º que os jovens militantes de esquerda não teriam aderido à luta armada em razão do seu profundo desencanto com a traição histórica cometida pelo Partido Comunista Italiano ao se mancomunar com a reacionária, corrupta e mafiosa Democracia Cristã, mas sim por instigação da eterna vilã, a CIA (!!!);

6º que Battisti não correria perigo se extraditado para a Itália, embora carcereiros tenham declarado à imprensa que ansiavam por matá-lo e um ministro de Estado haja afirmado quase a mesma coisa, babando de ódio;

7º que os processos italianos dos anos de chumbo teriam sido “conduzidos por uma Justiça independente dentro de um conceito democrático inquestionável”, embora as leis de exceção vigentes naquele melancólico período possibilitassem até que um suspeito permanecesse em prisão preventiva (sem haver sofrido condenação nenhuma, portanto) durante 10 anos e meio (!!!), tendo sido revogadas quando a Itália acordou de sua histeria antibrigadista;

8º que os Proletários Armados pelo Comunismo assaltariam “para garantir seu sustento (!!!) e não para retaliar ultradireitistas culpados de atos violentos (nem nos delírios dos promotores italianos encontramos afirmação tão estapafúrdia, é a história reescrita ao sabor dos preconceitos!):

9º que o relatório mais tendencioso jamais apresentado por um ministro em toda a história do STF, o de Cezar Peluso 100% contra Battisti, em 2009, teria sido um “impecável pronunciamento”;

10º e que eu, apelidado de “setores da chamada esquerda nativa”, teria encarado o “terrorismo como um movimento de resistência similar à luta armada em que alguns brasileiros se engajaram contra a ditadura” (o que nunca declarei, tendo apenas constatado que aqueles equivocados contestadores italianos, levados ao desespero pela traição histórica do PCI, sofreram uma repressão que, em tudo e por tudo, se assemelhou ao festival dos horrores dos DOI-Codi’s e aos julgamentos farsescos que tinham lugar nas auditorias militares).

Já que o Mino não se deu sequer ao trabalho de tentar comprovar qualquer um destes disparates (tarefa impossível!), deixo aos leitores as conclusões. Que necessidade eu teria de repisar o que já é do conhecimento de todos os que procuram informar-se com autores isentos?

Encerro com a reedição de um artigo meu de abril de 2014, que considero muito relevante neste instante, por dizer tudo que se precisa saber sobre a autoridade moral que Mino Carta não tem para deitar falação sobre Cesare Battisti:

“ENQUANTO MALHÃES LANÇAVA CORPOS EM RIOS, MINO CARTA BATIA BUMBO PARA MÉDICI”

Em 1970 ele escrevia editoriais puxando o saco…

Quando Mino Carta fez de sua revista um house organ no pior sentido da palavra, infestando-a de textos panfletários e lobistas que secundavam a caça a Cesare Battisti deflagrada por Silvio Berlusconi, cansei de desafiá-lo para defender sua postura inquisitorial numa polêmica.

Adivinhava que se acovardaria, como sempre se acovardou. 

Já amarelara em 2004, quando uma repórter da Carta Capital me entrevistou sobre o 25º aniversário da Lei da Anistia e ele ordenou, na enésima hora, que fossem suprimidas todas as referências ao meu nome. 

Também naquela ocasião mandei uma veemente contestação da atitude despótica que, com a mesma prepotência dos censores da ditadura, ele tomou.


Em vão: não deixou que publicassem, nem respondeu. Estava ciente de que todo seu poder de nada valeria num confronto de textos, pois eu pulverizaria facilmente sua algaravia pomposa. 

A que se devia tal antipatia gratuita? É simples: ele odeia os contestadores de 1968. Sempre nos detestou. Como boa parte dos comunistas da velha guarda, naquele ano decisivo ele se posicionou, junto com os partidões da Itália e da França, do outro lado da barricada. Entre as forças da ordem e os jovens rebeldes, ficou com as primeiras.

…do ditador mais sanguinário de todos.

E contraiu ódio eterno pelos verdadeiros esquerdistas, que expuseram a cumplicidade dos PC’s com a burguesia (o PC francês tudo fez para minar o apoio dos operários à revolução que já estava nas ruas, enquanto o italiano compartilhou o poder com ninguém menos que a Democracia Cristã, podre até a medula).

Então, mesmo sem ter identificação ou simpatia pelo Demétrio Magnoli, não posso deixar de aplaudir as estocadas certeiras que ele deu no Mino Carta, na Folha de S. Paulo.

Começa citando a ode ao golpe de 1964 que o próprio Mino fez publicar na Veja de 1º de abril de 1970 (ou seja, o editorial que ele assinava com suas iniciais, MC), ajudando os milicos a soprarem as seis velinhas:

Propostos como solução natural para recompor a situação turbulenta do Brasil de João Goulart, os militares surgiram como o único antídoto de seguro efeito contra a subversão e a corrupção (…). 

Mas, assumido o poder, com a relutância de quem cultiva tradições e vocações legalistas, eles tiveram de admitir a sua condição de alternativa única. E, enquanto cuidavam de pôr a casa em ordem, tiveram de começar a preparar o país, a pátria amada, para sair da sua humilhante condição de subdesenvolvido. Perceberam que havia outras tarefas, além do combate à subversão e à corrupção —e pensaram no futuro.

Como polemista, Magnoli fez picadinho…

Hoje, muitos companheiros desavisados mostram deferência e respeito por esse sujeitinho que via os Ustras e Curiós como “único antídoto de seguro efeito contra a subversão e a corrupção” (exatamente a desculpa esfarrapada que utilizaram para a usurpação do poder), atribuía-lhes relutância em incidirem nas práticas hediondas (todos que passamos pelas câmaras de tortura podemos afiançar que, sádicos como eram, eles extraíam visível prazer do que faziam), louvava a preocupação deles com o futuro (qual, a de assegurarem a própria impunidade antes de serem enxotados?) e a firmeza com que botavam “a casa em ordem” (nela impondo a paz dos cemitérios!)

Espero que doravante passem a ser mais seletivos em suas devoções, não engolindo gato por lebre.

Enfim, está certíssimo o Magnoli ao jogar na cara do Mino o seguinte:

Enquanto Paulo Malhães lançava corpos em rios, Mino Carta batia bumbo para Médici.

…do lobista do Berlusconi.

A censura não tem culpa: os censores proibiam certos textos, mas nunca obrigaram a escrever algo.

Os proprietários da Abril não têm culpa (ou melhor, são culpados apenas pela seleção do diretor de Redação): segundo depoimento (nesse caso, insuspeito) de um antigo editor da revista e admirador do chefe, hoje convertido, como ele, ao lulismo, Carta dispunha de tal autonomia que os Civita só ficavam sabendo do conteúdo da Veja depois de completada a impressão.

Desta vez, mesmo que encontre uma insuspeitada e até agora inexistente coragem, de nada lhe adiantará. Não existe resposta nem justificativa possíveis.

O Brasil em compasso de espera

Antes que alguém  me indagasse se desistira de remar contra a corrente, aqui vim, mesmo não tendo algo de novo para dizer.

O noticiário é que me inspira –ou não. Assim, em fases de estagnação como a atual, sinto-me qual  peixe fora d’água.

Que importância, tem, p. ex., a confirmação de mais um ministro do STF suspeito de inadequação para o posto? Conseguirá Fachin ser pior do que o fanático religioso Cezar Peluso, o tendenciosíssimo Gilmar Mendes e o tudo-que-há-de-ruim-concentrado-numa-pessoa-só Dias Toffoli? Duvido.

Dilma Rousseff, tendo vendido a alma ao capital para se manter presidenta, colhe os frutos da barganha: percebe-se claramente que de nossas viciadas e viciosas instituições não partirá a iniciativa de desalojá-la do Palácio do Planalto, já que a capitulação aos realmente poderosos teve menor custo e garante os mesmos benefícios. Vai continuar envergando a faixa presidencial –melhor seria uma coroa igual à da rainha da Inglaterra– enquanto Joaquim Levy governa a economia, em benefício dos exploradores e arrancando o couro dos explorados.

Assim, mudança só haverá se as ruas determinarem. E isto vai depender do agravamento da recessão que ora amargamos. A partir de agosto, depois das férias escolares, saberemos se o povo brasileiro vai se conformar com mais um ajuste fiscal iníquo ou, desta vez, não pagará a conta de um banquete do qual viu apenas as migalhas.

Se há alguma esperança nos expoentes de esquerda que trafegam pelas vias da política oficial, está em Lula, Tarso Genro, Guilherme Boulos e que tais. Quanto aos que agora passaram a rezar pela cartilha do Milton Friedman, temo que estejam perdidos para sempre. Atravessaram o Rubicão.

A opção pelo neoliberalismo não destrói a esquerda somente no presente, vai deixá-la sem credibilidade por muitos e muitos anos. O impeachment seria melhor.

Qualquer coisa, menos uma nova ditadura, seria melhor, do ponto de vista de quem quer acumular forças para a revolução, não apenas conciliar pelo máximo de tempo possível os (no longo prazo), inconciliáveis interesses do capital e trabalho.

Quanto mais vejo o Brasil de hoje, mais me convenço de que tudo o que havia para se dizer sobre este gigante eternamente apequenado, o Glauber Rocha já disse em Terra em Transe (clique p/ ver o filme completo).

Até quando continuaremos negando fogo nos momentos decisivos? Até quando deixaremos que nos soquem pacotes recessivos goela adentro?

Quisera estar confiante de que, desta vez, no pasarán. Não estou.

Sei apenas que no próximo semestre o povo brasileiro decidirá se vai manter-se abúlico como abúlico quase sempre foi, ou se finalmente tomará o destino em suas mãos.

OUTROS TEXTOS RECENTES DO BLOGUE NÁUFRAGO DA UTOPIA (clique p/ abrir):

A principal recomendação da CNV ficará só no lero lero?

“Não guardo mágoa,
não blasfemo, não pondero
Não tolero lero lero,
devo nada pra ninguém”
(Cacaso
)

Tem gente demais escrevendo sobre o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, que será tema obrigatório ao longo desta semana e, provavelmente, notinha de rodapé na próxima.
Então, evitando entediar os leitores, vou separar o joio do trigo, o que realmente importa do supérfluo, do rancoroso e do oba oba palaciano.
Em 1979, as altas autoridades da ditadura negociaram com a oposição consentida uma anistia recíproca, que não passou da imposição da vontade dos vencedores sobre os vencidos: o preço da libertação de presos políticos e da permissão para que exilados voltassem a salvo de represálias foi o perdão eterno dos agentes crapulosos do Estado e seus mandantes.
A barganha espúria teve a conseqüência de manter o passado insepulto; há três décadas e meia seus fantasmas teimam em assombrar a Nação brasileira.
A ONU, a OEA e o Direito internacional acertadamente consideram aberrantes e ilegais esses simulacros de anistias emanados de ditaduras, pois a desigualdade de forças determina invariavelmente o resultado .
Canso de indagar: se Adolf Hitler houvesse montado farsa semelhante quando os aliados desembarcaram na Normandia, os altos dirigentes nazistas seriam poupados do julgamento de Nuremberg?
Então, cabia ao Estado brasileiro, como uma das primeiras medidas da redemocratização, revogar a Lei de Anistia imposta –um mero habeas corpus preventivo de que os torturadores e seus mandantes se muniram– e substitui-la por outra, compatível com um Estado de direito.

O governo de José Sarney (logo quem!) não fez a lição de casa, assim como não a fizeram todos os presidentes da República depois dele.
 Em 2008, o lançamento do livro Direito à Memória e à Verdade e a insubmissão de alguns comandantes militares que peitaram o governo, acendeu a polêmica no seio do Ministério de Luiz Inácio Lula da Silva. Os ministros Tarso Genro e Paulo Vannuchi defendiam a revisão da anistia de 1979, mas perderam a parada para a corrente do imobilismo, da omissão e da covardia, liderada pelo ministro da Defesa Nelson Jobim.
Lula instruiu os ministros enaltecerem os resistentes, mas não tomarem nenhuma iniciativa concreta, em nome do seu governo, contra a Lei da Anistia.
Evidentemente, com o Executivo fora da jogada, não se poderia esperar grande coisa do Legislativo e do Judiciário.
 Que o primeiro fingiria nada ter a ver com a encrenca era a chamada caçapa cantada.
Pior ainda fez o Supremo Tribunal Federal em 2010, ao considerar plenamente válida uma armação que fez lembrar os sequestros de pessoas: os indiscutíveis representantes dos algozes mantiveram centenas de vítimas como reféns até que os presumidos representantes das ditas cujas concordassem em pagar o resgate exigido. Os que chamam isso de pacto, devem ter em mente a acepção goethiana do termo; os Faustos foram infaustos, enquanto Mefistófeles estava mefistofélico como nunca.
 Genro e Vannuchi, para salvarem a própria imagem depois que Lula os desautorizou a cumprirem com seu dever, apontaram o caminho dos tribunais para os inconformados com a impunidade dos ogros. Várias tentativas têm sido feitas desde a ação pioneira da família Telles contra o torturador-mor Carlos Alberto Brilhante Ustra, algumas até indo além das primeiras instâncias,  sem que, contudo, fosse ultrapassado o derradeiro obstáculo: o STF.

Agora Dilma Rousseff terá outra oportunidade de fazer o que é certo, tomando a única atitude capaz de destravar esses processos: a de colocar todo o peso do governo federal a favor da revisão da Lei da Anistia. Caso contrário, a principal recomendação da CNV –acabar com a impunidade dos verdugos– ficará no lero lero.
Talvez seja sua última chance de honrar o passado de resistente e torturada, depois de haver olimpicamente ignorado a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre os mortos do Araguaia.
Há quem acredite que, pelo menos no caso do atentado ao Riocentro, o STF deixará de se comportar como guardião da impunidade dos hediondos; afinal, cronologicamente, tal ação terrorista, datada de abril de 1981, não estava mais sob o guarda-chuva protetor da Lei da Anistia. Mas, ainda que isto ocorra, nada indica que abrirá um precedente para a condenação de réus de cometeram suas bestialidades no período permitido (até 15 de agosto de 1979). Não nos iludamos.
E é também sem ilusões que devemos encarar a possibilidade de que, façamos o que fizermos, talvez nenhum dos 196 acusados pela CNV acabe preso. Nossa Justiça é morosa ao extremo e permite uma infinitude de manobras protelatórias para os que podem pagar bons advogados. Mais da metade já morreu e, dada a idade avançada, poucos alcançarão a próxima década. Será melhor colocarmos nossas esperanças na justiça divina…
Ainda assim, não podemos fechar esta página vergonhosa da nossa História com um veredito tão dúbio.

Por um lado, o Estado brasileiro estaria admitindo que seus agentes podem ser anistiados após executarem prisioneiros indefesos, estuprarem, torturarem, maltratarem crianças para coagirem pais, ocultarem cadáveres, etc.
Por outro, instituiu as comissões de Mortos e Desaparecidos Políticosde Anistia e da Verdade para apurarem as atrocidades do período e, as duas primeiras, concederem reparações às vítimas ou seus herdeiros.
O que isto sinaliza para os pósteros? Que, em determinadas circunstâncias, eles poderão cometer os crimes mais atrozes sem serem punidos, correndo apenas o risco de ficarem com péssima imagem. Os cínicos concluirão que as generosas recompensas para quem serve aos déspotas compensam o mico de depois figurarem na História como vilões e serem alvos de escrachos
É por isto que se impõe a substituição do simulacro de anistia por uma anistia de verdade! Os tentados a atentarem contra as instituições (e eles têm mostrado a cara por aí!) saberão que, da próxima vez, tendem a não escapar tão facilmente do merecido castigo.
Para os governantes que têm paúra de quarteladas, uma sugestão: se querem conceder algo aos velhos gorilas para apaziguá-los, que seja a garantia de não encarceramento dos condenados. Que, lá no fim da linha, os poucos que tiverem sobrevivido à maratona jurídica sejam indultados por velhice e/ou doença grave, ou mantidos em prisão domiciliar. Certamente não mostraram idêntica consideração para com nossos velhos, mas temos a obrigação de ser melhores do que eles.
No entanto, é como oficialmente culpados que eles têm de passar à História. Se quisemos respeitarmo-nos como povo e como nação. Se tivermos vergonha na cara.

As novas frentes da luta dos santos guerreiros para que os dragões da maldade sejam punidos

São Jorge/Zumbi mata o dragão/latifundiário no filme de Glauber Rocha

A impunidade eterna dos torturadores da ditadura militar e seus mandantes foi acordada em pleno regime de exceção.
De um lado estavam os algozes, utilizando a libertação dos presos políticos e a permissão de volta dos exilados como moeda de troca para munirem-se de uma espécie de habeas corpus preventivo, pois sabiam ter cometido os mais hediondos crimes contra a humanidade.
Do outro as vítimas, representadas por uma oposição intimidada e que, ansiosa por virar uma página terrível da nossa História, não mediu o alcance das concessões feitas à tirania.
Selou-se o pacto num Congresso que várias vezes fora fechado e expurgado, tendo, ademais, a representação popular sido falseada por um verdadeiro arsenal de casuísmos.
É óbvio que um mostrengo político-jurídico desses violenta os preceitos legais das nações civilizadas e contraria as orientações da ONU para países que voltam à civilização depois de surtos de totalitarismo.
Revogar a auto-anistia dos torturadores seria uma medida imprescindível e urgente em qualquer redemocratização digna deste nome, mas o que ocorreu no Brasil foi uma transição para enganar trouxa, tutelada pelas mesmas forças que moviam os cordéis da ditadura por trás da cortina. As chances de uma ruptura verdadeira acabaram no dia em que foi rejeitada a emenda das diretas-já.
Os presidentes José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso. previsivelmente, não quiseram ou não ousaram mexer nesse vespeiro.
Só no primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva a revogação da Lei de Anistia foi discutida numa reunião ministerial, mas a corrente dos que temiam espantalhos (encabeçada por Nelson Jobim) prevaleceu.
Para salvarem as próprias faces, os ministros vencidos (Paulo Vannuchi e Tarso Genro) apontaram aos cidadãos inconformados o caminho dos tribunais. Era o que restava, pois o Executivo optara pela omissão e o Legislativo se fingia de morto; mas, percebia-se, ilusório. Já naquele agosto de 2008 eu advertia (vide aqui) que ficaríamos patinando sem sair do lugar.
A batalha jurídica realmente terminou quando o Supremo Tribunal Federal, numa das decisões mais estapafúrdias e escabrosas de sua História, decidiu avalizar a anistia extorquida mediante chantagem em 1979. Enquanto viger tal decisão, serão infrutíferos os esforços dos santos guerreiros que, movendo uma espécie de guerrilha jurídica, buscam brechas e atalhos para condenar os dragões da maldade.
Quanto muito, conseguem levá-los aos bancos dos réus nas instâncias inferiores, mas eles invariavelmente são e serão inocentados acima, a menos que o STF mude seu entendimento sobre o fulcro da questão. E este, ao que tudo indica, só o fará se e quando a Lei da Anistia for revogada.
É, claro, louvável a iniciativa do Ministério Público Federal, de denunciar cinco militares envolvidos na tortura, assassinato e ocultação do cadáver do ex-deputado Rubens Paiva -com base, inclusive, em documentos encontrados no sítio do falecido coronel Paulo Malhães, recentemente assassinado por bandidos comuns (com grande possibilidade de terem sido instrumentalizados por remanescentes da repressão ditatorial, conforme sustentei neste e neste artigos).

Mas, se o STF continuar zelando pelo sono dos injustos, a tentativa dará em nada, como das outras vezes.
Também no Rio de Janeiro, o Grupo de Justiça de Transição do MPF denunciou seis envolvidos no atentado do Riocentro, ação terrorista que causaria um morticínio em larga escala se um dos petardos não  tivesse explodido antes do tempo.
A juíza Ana Paula Vieira de Carvalho, da 6ª Vara Federal, acertadamente acatou a denúncia, argumentando tratar-se, à luz do Direito Internacional, de um crime contra a humanidade -portanto, imprescritível.
Este caso tem uma especificidade que possibilita a abertura de uma exceção à regra da impunidade: os fardados e o civil (um ex-delegado) não estão cobertos pela anistia de agosto de 1979, pois brincaram com fogo em abril de 1981, ao tentarem inibir o processo de redemocratização e o desmonte da engrenagem repressiva dos anos de chumbo.
Se nem assim for feita justiça, é melhor darmos uso mais apropriado ao espaço físico dos tribunais -talvez disponibilizando-o para os grupos teatrais, que nele poderão representar suas  farsas.

Petição pró Snowden no Brasil logo chegará a 1 milhão de signatários

“Edward Snowden desistiu de tudo para trazer à luz a operação de megaespionagem feita pelos EUA contra o Brasil e o restante do mundo inteiro. Seu passaporte foi revogado por seu próprio país e agora ele está preso em um limbo jurídico em Moscou, com um visto de um ano de duração. O Brasil, um dos principais alvos da espionagem, deveria oferecer abrigo a alguém que nos abriu os olhos para a vigilância norte-americana indiscriminada e em escala global. É hora de oferecer a Edward Snowden asilo imediato no Brasil!”
Esta é a justificativa do abaixo-assinado lançado por David Miranda, em favor do asilo de Edward Snowden no Brasil. Na manhã desta 3ª feira (21), o número de aderentes já está em 915 mil. Quem quiser colaborar para que seja atingido o objetivo de 1 milhão de signatários, clique aqui.
Como bem disse o estimado companheiro Arthur José Poerner (um dos gigantes da resistência jornalística à ditadura militar), em mensagem que enviou ao governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, pedindo sua participação nesta cruzada:
“O ex-agente de informação Edward Snowden já é um benfeitor da Humanidade, muito mais merecedor do Prêmio Nobel da Paz do que o já agraciado presidente Obama, como o mundo inteiro começa, aos poucos, a reconhecer. E os excessos totalitários da espionagem norte-americana, que ousam violar até mesmo a privacidade da nossa presidenta da República, constituem gravíssima afronta à soberania nacional brasileira.
Não há, portanto, qualquer razão para negar ao Snowden generosa acolhida, inclusive de acordo com a histórica tradição de asilo político do Itamaraty. Seria, além disso, mais uma prova cabal de que está em pleno curso o processo de consolidação da nossa democracia. Tucídides já dizia, mais de quatro séculos antes de Cristo, que o segredo da felicidade é a liberdade; e o da liberdade, a coragem, Precisamos ter, na política externa, a mesma coragem que tivemos na resistência à ditadura”.
Quanto a mim, repito a indagação que lancei há meio ano, quando o Itamaraty ignorou o primeiro apelo de Snowden ao governo brasileiro. Curta e grossa:
“Teremos voltado, em pleno governo do PT, a ser quintal dos EUA?!”

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 SER BOM VASSALO O QUE É? É VOLTAR AS COSTAS AO SNOWDEN.

 
Deu na imprensa: Thomas Shannon, assessor especial do secretário de Estado John Kerry, qualificou de “positiva” a decisão do governo brasileiro, de desconsiderar o pedido de asilo de Edward Snowden e a sua disposição de ajudar-nos a combater a arapongagem estadunidense, expressos na Carta ao povo do Brasil.
“Há vários sinais positivos emitidos pelo governo brasileiro, (…) chegamos a um bom ponto”, acrescentou Shannon.
Realmente, o governo brasileiro agiu com sabedoria. Aquela sabedoria sobre a qual discorreu o grande Brecht:

“Nos livros antigos está escrito o que é a sabedoria: / manter-se afastado dos problemas do mundo / e sem medo passar o tempo que se tem para viver na terra; / seguir seu caminho sem violência, / pagar o mal com o bem, / não satisfazer os desejos, mas esquecê-los. / Sabedoria é isso!”

Só faltou o verso seguinte: Mas, eu não consigo agir assim!.

 E,  por falar em Brecht e brechtianos, ocorreu-me também que a situação presente tem tudo a ver com o trecho abaixo da magistral peça Arena conta Tiradentes, que é de 1968 mas continua atualíssima:

CORINGA
Ser bom vassalo o que é?
Me responda quem souber.

CORO
Ser bom vassalo é esquecer
aquilo que a gente quer.
Ser bom vassalo é morrer.
Ser bom vassalo, quem quer?
Me responda quem quiser.

CORINGA
Só quer ser um bom vassalo,
quem vive seu bom viver,
quem explora e não é explorado,
quem tem tudo pra perder!

Em tempos idos, os bons vassalos defendiam apenas seus privilégios. Agora a coisa piorou: até os que deveriam ser contra os privilégios acabam se tornando bons vassalos, pois temem que a governabilidade seja prejudicada se entrarem em atrito com o suserano.
 Uma característica, contudo, permanece imutável: ser bom vassalo é esquecer aquilo que a gente quer. Aquilo pelo que um dia lutamos. Aquilo em nome do qual companheiros estimados morreram e sofreram.
Por último, a boa notícia (uma, pelo menos!): o texto integral de Arena conta Tiradentes acaba de ser disponibilizado neste endereço. Recomendo enfaticamente.
Para quem quiser saber mais sobre a peça, eis alguns links: primeirosegundoterceiro e quarto.

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Ustra diz que não ocultou cadáver, só o enterrou sob nome falso…

Quem acompanha meu trabalho, sabe que já em 2007 eu descria da possibilidade de se punir os torturadores da ditadura militar sem a revogação da anistia de 1979, que igualou algozes e vítimas.
Vencidos pela facção de Nelson Jobim na luta então travada no seio do ministério, Tarso Genro e Paulo Vannuchi foram proibidos por Lula de continuarem pregando o necessário e indispensável, qual seja a revisão da Lei de Anistia. Aí, para salvarem as próprias imagens, indicaram à esquerda o caminho dos tribunais, que jamais desatariam o nó enquanto Executivo e Legislativo permanecessem de braços cruzados.
E o nó não foi mesmo desatado. O Supremo Tribunal Federal, numa das decisões mais aberrantes de sua História, em 2010 considerou válida a anistia que os carrascos concederam a si próprios em plena vigência da ditadura, usando os presos políticos e os exilados como moeda de troca e obtendo o aval de um Congresso descaracterizado e intimidado.

Desde então, as ações civis e criminais contra os torturadores têm um desfecho anunciado: se condenados nas instâncias menores, os réus sabem que tranquilamente darão a volta por cima no STF. Os processos passaram a ter apenas efeito moral; são ingênuos os que sonham com penas de prisão e/ou pecuniárias, pois elas não virão enquanto não forem alteradas as regras do jogo (impostas pelo inimigo e não questionadas pelos pusilânimes do nosso lado quando a ditadura acabou).
Não foi nem um pouco significativa, portanto, a decisão da Justiça Federal de São Paulo, ao considerar prescrito o crime de ocultação de cadáver cometido pelo torturador-símbolo Carlos Alberto Brilhante Ustra e pelo delegado aposentado Alcides Singillo, que deram sumiço nos restos mortais do  militante Hirohaki Torigoe, repetindo a prática adotada pela repressão ditatorial em dezenas de outros casos. Se o Ministério Público Federal, autor da ação, transpusesse esta barreira, certamente tropeçaria numa posterior. Ustra e Singillo nada tinham a temer.
O que vale um registro é a bizarra justificativa da defesa de Ustra. Os procuradores argumentavam que, como o cadáver não foi encontrado até hoje, tratava-se de um crime permanente. Os patronos do chefão do DOI-Codi paulista disseram que o corpo do Torigoe não está sumido, tendo sido enterrado com o nome falso que ele usaria no momento da prisão.
É o mesmo que admitir não só seu assassinato, mas a própria ocultação de cadáver, de vez que a repressão sempre conseguia identificar os defuntos que lhe interessavam.
Enfim, desta vez o Ustra conseguiu livrar a cara sem atirar a responsabilidade sobre seus superiores, como fez em outras ocasiões, implicitamente reconhecendo que servia a uma instituição genocida.
No que, aliás, estava certíssimo: a culpa por todas as práticas hediondas começava no general que se fazia passar por presidente da República e se estendia para cada elo da cadeia de comando.

Obs.: tentei divulgar este texto no Facebook, mas parece haver agora algum filtro que rejeita matérias com Ustra no título. A censura avança, a democracia recua… 

A Comissão da Verdade, a sofreguidão e os holofotes

É suspeita a atitude de integrantes da Comissão Nacional da Verdade, de estarem desde já se posicionando publicamente a favor ou contra a revogação da anistia de 1979.

Isto porque nada será decidido agora. O xis da questão é se, no relatório final da Comissão, daqui a um ano e meio, vai ou não ser recomendada a anulação da aberração jurídica que permitiu aos assassinos oficiais anistiarem a si próprios.

Então, por que botaram o carro na frente dos bois, lançando o debate agora? Meu palpite é de que se trata de um terceiro tema controverso oferecido numa bandeja à imprensa, para que a Comissão da Verdade entre com destaque no noticiário.

É verdade: a presidente Dilma Rousseff cobrou, há alguns meses, que dessem maior visibilidade aos trabalhos da Comissão. Mas, será que ela tinha em mente a espetacularização? Ou os conselheiros estão sendo mais realistas do que a rainha?

O certo é que coincidiram com o primeiro aniversário do colegiado:

  1. o anúncio da decisão de exumarem o corpo do ex-presidente João Goulart, que pode levar à comprovação de seu assassinato por envenenamento (ou, em caso contrário, fornecer um poderoso trunfo propagandístico às  viúvas da ditadura, daí haver sido uma leviandade trombetearem o que poderiam ter feito discretamente, deixando o obaoba para depois, se o resultado dos exames o justificasse);
  2. a totalmente inútil convocação do megatorturador Carlos Alberto Brilhante Ustra para bater boca com membros da Comissão, cuja sessão foi aberta ao público pela primeira vez exatamente para maximizar a repercussão do espetáculo… deprimente e constrangedor; e,
  3. agora, a também totalmente inútil antecipação de uma polêmica que só será travada para valer, se o for, no final de 2014.

Tal busca sôfrega por holofotes me fez lembrar um episódio emblemático. Em 2004, quando do 25º aniversário do simulacro de anistia que igualou as vítimas a seus carrascos, era previsível que a imprensa estivesse à cata de notícias para preencher os espaços dedicados à efeméride.

A Comissão de Anistia programou exatamente para aquele momento o julgamento do processo de Anita Leocádia Prestes (ela estava em grande evidência por causa do recém-lançado filme Olga) e divulgou triunfalmente que lhe concedera uma indenização.

Anita, contudo, retrucou dignamente que não pedira tal indenização e a doaria para caridade. Seu pleito era apenas de que o tempo passado no exílio fosse também considerado, na contagem dos anos para ela obter aposentadoria de professora; só queria aquilo que pedira, não o que fora acrescentado à sua revelia.

A CAPITULAÇÃO DECISIVA SE DEU EM 2008

Quanto ao fulcro da questão, reitero o que venho escrevendo desde meados de 2008, quando o Ministério se dividiu (Tarso Genro e Paulo Vannuchi encabeçavam a corrente a favor da revogação da Lei de Anistia e Nelson Jobim, a contrária) e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva se colocou ao lado do então ministro da Defesa, desperdiçando uma oportunidade única para expor o blefe de velhos militares que não falavam em nome das tropas:

  • a apuração dos crimes e atrocidades da ditadura, com a consequente punição dos responsáveis, era um dever que o Estado brasileiro deveria ter cumprido logo no início da redemocratização, em 1985 (mas, claro, não se poderia esperar que o arenoso José Sarney colocasse o próprio pescoço na forca, depois de ter sido o mais servil capacho dos militares);
  • por culpa de um sem-número de omissos, continuamos na estaca zero até hoje, no que diz respeito à punição das bestas-feras;
  • mesmo que se derrube a vergonhosa decisão de 2010 do Supremo Tribunal Federal, na contramão das recomendações da ONU e do enfoque legal dos países civilizados, já não há mais hipótese de a condenação dos criminosos hediondos transitar em julgado antes que eles morram todos de velhice, dada a lerdeza da Justiça brasileira e o número infinito de manobras protelatórias que faculta a quem pode contratar os melhores advogados;
  • então, devemos nos preocupar é com o legado que deixaremos aos pósteros, ou seja, batalharmos para que não permaneça legitimado o escabroso precedente de uma ditadura, em plena vigência, anistiar antecipadamente seus esbirros, concedendo-lhes uma espécie de habeas corpus preventivo.
Reposicionar tal questão dependeria, evidentemente, de uma articulação política.
Um equívoco da espetacularização

Para eles, é inaceitável o cumprimento de penas, a perda de pensões e o pagamento de indenizações.

Do nosso lado, uma vez que admitamos realisticamente o fato de que a possibilidade de vê-los um dia encarcerados se tornou quimérica,  o mais inaceitável passará a ser seu  enquadramento formal pelo Estado brasileiro como  anistiados  e não  como    criminosos.

Temos de, pelo menos, desestimular recaídas no arbítrio;  a completa impunidade sacramentada pelo STF vai exatamente na direção contrária, deixando, inclusive, os cidadãos desinformados em dúvida sobre sua culpa. Então, mesmo não havendo punições concretas, é preciso que fique bem evidenciada para o povo brasileiro a responsabilidade dos golpistas e seus paus mandados no verdadeiro festival de horrores que aqui teve lugar.

A infame decisão da STF não pode ser a palavra final nesta questão, a menos que nos assumamos como uma república das bananas, ignorante dos valores que norteiam a vida civilizada e disposta às mais abjetas concessões para afastar o espectro das quarteladas.

Para avançarmos, entretanto, se faz necessária uma negociação; e a resistência da caserna, que (embora superestimada) tem existido nos últimos anos, poderá ser esvaziada se descartarmos a hipótese de punições. Aí, sem dramas, os oficiais mais jovens não vão sentir-se moralmente obrigados a prestar solidariedade aos velhos carrascos.

Enfim, é um desafio para o governo de Dilma Rousseff, para as forças progressistas e para os cidadãos com espírito de justiça e apreço pela democracia, darem um desfecho mais digno para a tragédia dos anos de chumbo, sem a repulsiva ambiguidade da anistia de 1979.

A hora de punir pode ter passado, mas o Estado brasileiro deve afirmar inequivocamente que tais pessoas eram culpadas e mereciam punição. Só assim se criará uma expectativa de tratamento mais severo contra quem  tentar reinstalar o totalitarismo.

Impeachment para Gilmar Mendes

“Admito que o ex-presidente pudesse estar preocupado com a realização do julgamento no mesmo semestre das eleições. Isso aí é aceitável. Primeiro, porque é um leigo na área do Direito. Segundo, porque integra o PT. Portanto, se o processo envolve pessoas ligadas ao PT, obviamente, se ocorrer uma condenação, repercutirá nas eleições municipais.”

A avaliação, simples mas correta, foi do ministro Marco Aurélio Mello, que sempre considerei o mais lúcido dos integrantes do Supremo Tribunal Federal.

Sim, é da natureza humana tentarmos convencer juízes a tomarem as decisões que nos convêm. O destrambelhado Gilmar Mendes só teria motivos para fazer a tempestade em copo d’água que fez:

  • se Lula o tivesse procurado para tentar influir na sentença do processo do mensalão;
  • se Lula lhe houvesse oferecido alguma forma de recompensa ou feito alguma ameaça, para tangê-lo a aceitar a postergação do julgamento para depois das eleições municipais.

Ora, nem em suas declarações mais furibundas à imprensa Mendes ousou acusar Lula de estar pressionando pela absolvição dos réus.

E, mesmo se acreditarmos na versão que Mendes deu do encontro e ninguém confirmou, a referência de Lula a (mais) uma  ligação perigosa  do seu interlocutor é insuficiente para caracterizar uma ameaça. Lula não teria dito nada parecido com “a militância do PT trombeteará dia e noite que é o Carlinhos Cachoeira quem custeia vossas viagens”, mas, apenas, sugerido que convinha ao próprio Mendes deixar esses assuntos melindrosos para mais tarde.

É inadequado alguém falar nestes termos a um ministro do Supremo? Sem dúvida! Mas, o que Mendes esperava, ao aceitar um encontro a portas fechadas com Lula sem ter nada de pertinente a tratar com ele?

Se Mendes é tão sensível a hipotéticas insinuações, certamente não as ouvirá atendo-se à liturgia do cargo.

Como explica Joaquim Falcão, professor de Direito Constitucional da FGV/RJ:

…no STF há hoje dois perfis distintos. De um lado ministros mais discretos, que não se pronunciam, exceto nas audiências, e que mantêm distância de Executivo, Legislativo e representantes de interesses em julgamento. Vida pessoal recatada.

Por outro lado há ministros que se pronunciam fora dos autos, estão diariamente na mídia, mantêm contatos políticos, participam de seminários e reuniões com grupos de interesse.

A questão crucial, dizem uns, não é se o ministro deve falar fora dos julgamentos, estar na mídia ou se relacionar social e politicamente. A questão é haver transparência antes, durante e depois dos relacionamentos. E que não faça política. As agendas, os encontros, as atividades dos ministros deveriam ser publicados de antemão.

Em alguns países o juiz não recebe uma parte sem a presença da outra, tão grande é a preocupação com a imparcialidade. O que alguns ministros praticam aqui no STF. Ou grava-se a conversa para assegurar a fidelidade do que ocorreu e proteger o ministro de propostas inadequadas.

Mendes é o pior exemplo de  ministro pop star: pronuncia-se o tempo todo fora dos autos, só falta pendurar uma melancia no pescoço para aparecer mais na mídia, mantém contatos políticos a torto e direito, não recusa convites para eventos de poderosos que têm óbvio interesse em decisões do STF.

Pior, FAZ POLÍTICA (e sempre com viés direitista) —como quando produziu irresponsável alarmismo acerca de um estado policial que nem remotamente se configurava, ou quando contrapôs à frase da então ministra Dilma Rousseff, de que “tortura é crime imprescritível”, a estapafúrdia afirmação de que “terrorismo também é” (esquecendo  não só a diferença jurídica entre terrorismo e resistência à tirania, como também o fato de que a imprescritibilidade do terrorismo só viria a ser introduzida nas leis brasileiras depois dos  anos de chumbo).

E nunca tem gravações para apresentar, que comprovassem suas denúncias delirantes e bombásticas.

O veterano jornalista Jânio de Freitas (vide íntegra aqui) nos brinda com uma constatação explícita e uma sugestão implícita:

O excesso de raiva e a aparente perda de controle em Gilmar Mendes talvez expliquem, mas não tornam aceitável, que um ministro do Supremo Tribunal Federal faça, para a opinião pública, afirmações tão descabidas.

…Com muita constância, somos chamados a discutir o decoro parlamentar. Não são apenas os congressistas, no entanto, os obrigados a preservar o decoro da função.

Eu não insinuo, afirmo: já passou da hora de Gilmar Mendes ser submetido a impeachment.

Menos pela comédia de pastelão que está encenando agora e mais por haver, em duas diferentes ocasiões, privado da liberdade Cesare Battisti em função não das leis e da jurisprudência existentes, mas da esperança que nutria de as alterar.

Quando o ministro da Justiça Tarso Genro concedeu refúgio ao escritor italiano, cabia ao presidente do STF suspender o processo de extradição e colocá-lo em liberdade, como sempre se fizera. Mas decidiu mantê-lo preso, confiante em que convenceria seus colegas ministros a detonarem a lei e a instituição do refúgio, passando por cima do Legislativo e usurpando prerrogativa do Executivo. Conseguiu.

Da segunda vez, quando o então presidente Lula negou a extradição, exatamente como o Supremo o autorizara a fazer, o relator Mendes e o presidente Cezar Peluso apostaram de novo numa virada de mesa legal… E PERDERAM!

O desfecho do caso os tornou responsáveis pelo SEQUESTRO de Battisti durante os cinco meses seguintes –e nada existe de mais grave para um magistrado do que dispor tendenciosamente da liberdade alheia, cometendo abuso gritante de autoridade.

Se Mendes sofrer o impeachment agora, Deus estará escrevendo certo por linhas tortas.

Torturadores aliviados: nem mesmo ações civis os ameaçam

Não sou adivinho, nem escrevo com base em  chutes, desejos pessoais ou hipóteses improváveis.

 

Quando aponto a meus leitores o cenário que provavelmente prevalecerá adiante, raciocino exatamente como o enxadrista que sou: de várias evoluções possíveis da situação presente, elejo a que mais se adequa à correlação de forças e às características dos grupos e indivíduos que tomarão as decisões.

 

Então, quem se der ao trabalho de reler os artigos sobre o Caso Battisti, verificará que as minhas principais previsões viraram realidade.

 

Quando alguns companheiros se desesperaram com a tendenciosidade do presidente do Supremo Tribunal Federal e do outro ultradireitista que ele escolheu para relatar o processo, sugerindo o lançamento de uma campanha pública para pressionar o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva a libertar imediatamente o escritor (o que implicaria passar por cima do STF), rechacei de imediato a proposta e recomendei aos outros líderes do movimento que manifestassem inequivocamente sua desaprovação. Deu certo.

 

Tendo acompanhado a trajetória de Lula desde o sindicalismo, eu tinha certeza absoluta de que ele jamais confrontaria o STF. Então, pedir o impossível nos atrapalharia na conquista do possível, seja por ensejar antipatias contra nós dentro do Governo e do PT, seja por dar a nossos inimigos a possibilidade de alegarem que temíamos a decisão do Supremo e dela estávamos tentando fugir.

 

Depois, com esforços titânicos, conseguimos deter a escalada de arbitrariedades de Gilmar Mendes e Cezar Peluso. Eles já haviam induzido três dos seus colegas a revogarem na prática a Lei do Refúgio, usurpando prerrogativa do Congresso Nacional; e a cassarem uma decisão legítima do ministro da Justiça, usurpando prerrogativa do Executivo.

 

A terceira usurpação concretizaria a infâmia: eles tentaram tornar definitiva a decisão do STF, apropriando-se também de uma prerrogativa do presidente da República, qual seja a de dar a última palavra nesses casos.

 

Agressão tão extrema às tradições seculares do Direito não seria tão facilmente aceita: o mais legalista dos ministros que Mendes e Peluso estavam arrastando na sua  brietzkrieg não os acompanhou na consumação do estupro de leis e jurisprudências. Ganhamos a parada.

 

No mesmo dia escrevi que, tendo o STF depositado nas suas mãos o destino de Battisti, Lula jamais o entregaria aos inquisidores italianos.

 

Anunciada a decisão presidencial, foi também no mesmo dia que antecipei: Peluso e Mendes ainda esperneariam um pouco antes de reconhecerem a derrota, mas não havia como o Supremo renegar o que ele próprio estabelecera. Dito e feito.

 

Mas, claro, como revolucionário eu preferiria mil vezes que tivéssemos força política suficiente para impor a libertação imediata de Battisti, encurtando sua agonia. Infelizmente, não a tínhamos.

 

AS MIRAGENS E O PRÊMIO DE CONSOLAÇÃO

 

Da mesma forma, o caminho para a punição dos torturadores dos anos de chumbo passava obrigatoriamente pela revogação da anistia preventiva que os déspotas concederam a si e a seus esbirros em 1979.

 

Quando o Governo Lula se curvou às pressões militares em 2008, posicionando-se pela manutenção da  pax do ditador Figueiredo, intuí que a parada estava perdida e passei a conclamar os companheiros a lutarem pelo que ainda tínhamos chance de conseguir: um veredicto final do Estado brasileiro repudiando a usurpação de poder e estabelecendo a responsabilidade dos envolvidos no festival de horrores subsequente.

 

Tarso Genro e Paulo Vannuchi, logo após serem derrotados na refrega ministerial pela corrente encabeçada por Nelson Jobim, indicaram aos cidadãos inconformados com a capitulação do Governo o caminho dos tribunais.

 

Avaliei que os torturadores não corriam maiores riscos, pois nossa Justiça é tão lenta e faculta tantas manobras protelatórias que todos eles estariam mortos bem antes de a primeira sentença chegar à fase de execução.

 

Quanto à condenação em si, ao menos para efeito moral, dependeria do posicionamento do Governo Lula. Resolvi tudo fazer para evitar que continuasse alinhado com a impunidade, embora intimamente estivesse cético.

 

Quando os advogados de torturadores pediram o primeiro pronunciamento da Advocacia Geral da União, escrevi vários artigos sobre o absurdo que seria coonestar uma anistia imposta pelos vencedores aos vencidos em plena ditadura e mediante chantagem (a moeda de troca foi a libertação dos companheiros ainda presos e a permissão de volta dos exilados).

 

Não adiantou: a AGU passou a sempre informar aos juízes que considerava válida a anistia de 1979.

 

A pusilaminidade do Governo Federal e a omissão do Congresso Nacional deixaram o terceiro Poder de mãos livres para detonar definitivamente qualquer possibilidade de verdadeira justiça.

 

E o STF não se fez de rogado, produzindo em 2010 uma de suas decisões mais escandalosas e estapafúrdias de todos os tempos. Por ela, bastaria os nazistas terem previamente anistiado os próprios crimes para não existir tribunal de Nuremberg.

 

Extinta de vez a possibilidade de se responsabilizar criminalmente os torturadores –só ingênuos acalentam a esperança de que seja acatada a decisão do tribunal da OEA, não percebendo que a própria instituição da Comissão da Verdade está servindo como um prêmio de consolação neste sentido–, restaram as ações civis, por meio das quais os algozes poderiam ser declarados torturadores, ter sua pensão cortada ou pagar a conta dos prejuízos por eles causados à União, obrigada a indenizar suas vítimas.

 

É mais um oásis que evapora ao nos aproximarmos dele: o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (São Paulo) acaba de decidir que os militares acusados de torturar presos políticos no DOI-Codi paulista durante a ditadura não podem mais ser condenados porque seus crimes já prescreveram.

 

Ao julgar o caso, a 6ª Turma do TRF respaldou-se na decisão do STF de manter a validade da Lei de Anistia.

 

Alguém duvida de que será este também o entendimento das instâncias superiores?

 

Resumo da opereta: só nos resta lutarmos com todas as forças para que a Comissão da Verdade cumpra verdadeiramente seu papel, permitindo que a opinião pública e os pósteros adquiram pleno conhecimento das atrocidades do período, dos nomes de quem as cometeu e de quem as ordenou.

 

Todo o resto parecia sólido, mas se desmanchou no ar.

 

De Gaulle pode não ter dito tal frase, mas ela continua sendo o melhor diagnóstico já feito sobre o Brasil: não é um país sério.