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VOTO NULO É OBRIGATÓRIO NA ELEIÇÃO PAULISTANA

Há posicionamentos díspares no PSOL sobre se os filiados devem votar nulo ou praticar o voto útil neste domingo.

 Como não falo pelo partido nem me considero suficientemente informado sobre o quadro nacional, vou opinar somente sobre o contexto paulistano.

 José Serra iniciou, como governador, a montagem de um embrião de estado policial no Estado e na cidade de São Paulo, transformados num verdadeiro laboratório de testes de fórmulas fascistizantes; votar nele é impensável.

 

Fernando Haddad não se propôs, como candidato, a lutar contra tal escalada autoritária, nem assumiu o compromisso de exonerar imediatamente os 30 subprefeitos (de um total de 31) que são oficiais da reserva da Polícia Militar; votar nele é inútil, pois quem faz  campanha de consumo  governa como  prefeito do sistema, não como prefeito ideologicamente coerente.

O PT hoje é um partido reformista. Quer apenas atenuar os malefícios do capitalismo, tendo abdicado de fazer a revolução.

Então, quem considera que o capitalismo esgotou sua função histórica e se tornará cada vez mais nocivo, desumano e exterminador nesta fase terminal, não tem motivo nenhum para apoiar os que se propõem a prolongar sua agonia, ao invés de dar-lhe um fim.

Os autênticos seguidores de Marx ou Proudhon não podem, portanto, optar nem pelo voto impensável, nem pelo voto inútil. Têm de votar NULO!

Viúvas da ditadura deitam e rolam na polícia paulista

“Em 31 de março de 1964 iniciou-se a Revolução, desencadeada para combater a política sindicalista de João Goulart. Força Pública e Guarda Civil puseram-se solidárias às autoridades e ao povo.”

 Este parágrafo aberrante, tratando a quartelada de 1964 como Revolução (com inicial maiúscula!) e justificando a participação da Força Pública e da Guarda Civil no golpe contra o presidente constitucional do País, constava até esta 6ª feira (27) da página virtual da Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo, alojada no portal do Governo paulista.

 Ilustrando-o, havia uma imagem apoteótica da Marcha da Família, com Deus, pela Liberdade, a maior arregimentação da classe média lograda pelos conspiradores durante a preparação do cenário para a derrubada de Goulart. Em primeiro plano, um oficial fardado.

 Como a permanência deste entulho autoritário veio à tona exatamente no momento em que a escalada autoritária do Governo Alckmin recebe críticas generalizadas, a SSP correu a deletar texto e foto. O ano de 1964 foi apagado da linha do tempo, que agora salta diretamente da criação da Polícia Científica em 1956 para a instituição do Departamento de Trânsito em 1967.

 Ao portal Terra foi encaminhada nota afirmando o seguinte:

O texto relacionado ao ano de 1964 não reflete o pensamento da Secretaria da Segurança Pública e foi retirado do site. A SSP agradece a observação, sempre atenta, da imprensa.

A última atualização da página havia sido efetuada em 2010 –ou seja, 25 anos depois da virada dessa página infame da nossa História, a SSP continuava exaltando o arbítrio e o totalitarismo… à custa dos impostos dos contribuintes de São Paulo!

 

NA DERRUBADA DE GOULART, A ROTA ESTAVA “APOIANDO A SOCIEDADE”?!

 E não se tratou de caso isolado: também a unidade mais truculenta da Polícia Militar paulista, a Rota, vangloriava-se no seu site da seguinte  campanha de guerra:

Revolução de 1964, quando participou da derrubada do então Presidente da República João Goulart, apoiando a sociedade e as Forças Armadas, dando início ao regime militar com o Presidente Castelo Branco (o grifo é meu).

Indignado com esta exaltação do golpismo e, noutro trecho, com os autoelogios da Rota ao seu papel de coadjuvante das Forças Armadas na repressão aos cidadãos que pegaram em armas contra a ditadura militar, enderecei carta aberta ao então governador José Serra em outubro de 2008.

Tive de repetir a dose com os governadores Alberto Goldman e Geraldo Alckmin, escrever mais de duas dezenas de textos (ver balanço aqui) e esperar quase três anos para ver suprimida, pelo menos, a referência à derrubada de Goulart.

 Até então, a PM descumprira promessa feita ao portal Brasil de Fato, de eliminar tais absurdos; e Serra, respondendo a uma pergunta que lhe enderecei na sabatina da Folha de S. Paulo, admitira publicamente que tal retórica era despropositada, sem que Goldman (o vice a quem transmitira o cargo para disputar a eleição presidencial) tomasse qualquer providência.

Até que Ivan Seixas –também ex-preso político e meu companheiro nesta denúncia– cientificou a ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, cujo firme posicionamento finalmente demoveu Alckmin da intransigência que ele e os outros governadores tucanos vinham mantendo. Em  setembro de 2011!

 Salta aos olhos que o ranço totalitário ainda não foi extirpado da polícia paulista, daí o papel chocante que vem desempenhado ultimamente, com tanta  convicção: na USP, na cracolândia e no Pinheirinho, foram os brucutus da ditadura que atuaram –prendendo, batendo, arrebentando e expulsando.

“A PM não pode se vangloriar de ter apoiado o golpe militar!”

“Indico (…) ao Exmo. Sr. Governador do Estado de São Paulo que determine ao Comando da Polícia Militar a imediata retirada, de sua página virtual, dos elogios ao golpe militar de 64 e à ditadura que a ele se seguiu.”

Este é o teor da indicação nº 1099 de 2011, de autoria do deputado Carlos Giannazi (PSOL), que acaba de ser publicada no Diário Oficial do Estado.

Segundo o regimento interno da Assembléia Legislativa paulista,  indicação é uma  “proposição pela qual são sugeridas aos poderes do Estado ou da União medidas de interesse público que não caibam em projeto ou moção de iniciativa da Assembléia”.

Vem ao encontro de uma posição que assumi em outubro de 2008 e desde então venho sustentando por meio de artigos, cartas abertas a governadores (José Serra, Alberto Goldman e Geraldo Alckmin), mensagens ao Governo (Secretaria da Justiça e Defesa da Cidadania, Casa Civil e Casa Militar) e aos deputados estaduais, uma petição on line, etc.

O deputado Giannazi, que teve sensibilidade e coragem  para encampar esta bandeira,  também é  autor do projeto de lei nº 509, protocolado há duas semanas, com o objetivo de proibir “a denominação de prédios, rodovias e repartições públicas estaduais com nomes de pessoas que tenham praticado ou sido historicamente consideradas como participantes de atos de lesa-humanidade, tortura ou violação de direitos humanos”.

Eis como ele justificou sua indicação:

Já se passaram 25 anos desde que a ditadura militar foi para o esquecimento da História, mas nada mudou na página virtual do 1º Batalhão de Polícia de Choque – Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota).

Tal batalhão orgulha-se de haver outrora ajudado a massacrar os paupérrimos revoltosos de Canudos e a reprimir o heróico levante do Forte de Copacabana.

Pior ainda, faz questão de destacar que esteve presente na “Revolução de 1964, quando participou da derrubada do então Presidente da República João Goulart, apoiando a sociedade e as Forças Armadas, dando início ao regime militar com o Presidente Castelo Branco“.

E, como se ainda vivêssemos no Brasil de Médici, enxerga sua atuação nos anos de chumbo a partir de um aberrante viés totalitário:

“Sufocado o foco da guerrilha rural no Vale do Ribeira, com a participação ativa do então denominado Primeiro Batalhão Policial Militar ‘TOBIAS DE AGUIAR’, os remanescentes e seguidores, desde 1969, de ‘Lamarca’ e ‘Mariguela’ continuam a implantar o pânico, a intranqüilidade e a insegurança na Capital e Grande São Paulo. Ataques a quartéis e sentinelas, assassinatos de civis e militares, seqüestros, roubos a bancos e ações terroristas. Estava implantado o terror.

Mais uma vez dentro da história, o Primeiro Batalhão Policial Militar ‘TOBIAS DE AGUIAR’, sob o comando do Ten. Cel. SALVADOR D’AQUINO, é chamado a dar seqüência no seu passado heróico, desta vez no combate à Guerrilha Urbana que atormentava o povo paulista”.

Nós, democratas de São Paulo e do Brasil, repudiamos a utilização do portal do governo paulista para manter vivo o culto ao golpismo, ao arbítrio, ao obscurantismo e à barbárie. Os tempos são outros e a história vê, analisa e registra esses episódios sob outro olhar.

Não aceitamos que, tanto tempo depois da volta do País à construção de uma nova ordem democrática e constitucional, ainda continuem no ar esses infames elogios à derrubada de um presidente legítimo e às ações repressivas executadas durante a vigência do terrorismo de estado, marcada por atrocidades, execuções covardes, estupro de prisioneiras, ocultação de cadáveres e o sem-número de outros crimes com que os déspotas intimidavam nosso povo, para mantê-lo subjugado.

A sociedade paulista e brasileira exigem  a imediata reciclagem da página da Rota, suprimindo-se os conceitos, valores e juízos incompatíveis com o estado de direito.

A falta de comprometimento com a democracia e a liberdade é uma grave afronta à nossa sociedade, ao movimento democrático que se quer presente, à busca pelo diálogo e participação, contra estupidezes autoritárias quaisquer que sejam, venham de onde vierem.

E conclamamos o governador do Estado, eleito em uma democracia conquistada a duras penas, a dar um fim, de uma vez por todas, a tal entulho autoritário, que envergonha o seu governo e a todos nós.

PRONUNCIAMENTO NA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA

E aqui estão os trechos principais do pronunciamento com que Giannazi apresentou sua indicação, no último dia 30:

O nosso mandato acabou de fazer uma indicação para que o Comando Geral da Polícia Militar retire imediatamente do seu site, na parte em que consta a história do batalhão, uma alusão feita ao regime militar.

Há o site da Polícia Militar em que qualquer pessoa pode entrar, e existe o ícone do Histórico do Batalhão da Polícia Militar. É onde conta o seu histórico desde a sua fundação, com alguns episódios que marcaram a história da Polícia Militar, a antiga Força Pública do Estado de São Paulo.

…entre as alusões feitas no site, a Polícia Militar de São Paulo está fazendo apologia, defendendo o golpe militar de 1964, numa página oficial do nosso Estado.

O Brasil já foi redemocratizado e a ditadura militar no nosso país acabou em 1985. E o site não fala nem em golpe, mas em Revolução de 64.

Sabemos que não houve uma revolução, mas um golpe das Forças Armadas que agrediu a Constituição Federal e exilou várias lideranças políticas do nosso país, quando, inclusive, o próprio presidente da República da época foi para o exílio – João Goulart, Jango.

Várias pessoas foram cassadas, mortas, torturadas e perseguidas no nosso país. E agora a Polícia Militar não pode, em nenhuma hipótese, fazer uma alusão como essa, de se vangloriar de ter apoiado o golpe militar de 64! É inconcebível que isso esteja num site oficial de uma instituição como a Polícia Militar.

O massacre dos famélicos de
Canudos lá é motivo de orgulho?
!

Nós exigimos que o Comando Geral da Polícia Militar, que o secretário de Segurança Pública tome providências em relação a esse absurdo, e que o governador Geraldo Alckmin tome providências e tome conhecimento, pelo menos, do que vem acontecendo.

Como se não bastasse esse grave erro, inconcebível, sr. presidente, nós temos um outro em relação à Guerra de Canudos, que aconteceu entre 1889 e 1897, no sertão da Bahia. A Polícia Militar também se autoelogia de ter participado do último combate que massacrou crianças, mulheres grávidas e idosos.

Nós conhecemos muito bem a história de Canudos. Foi um movimento de resistência contra as oligarquias. Agora, a Polícia Militar acha o máximo ter participado e ajudado a massacrar mais de 20 mil pessoas, no massacre de Canudos.

É um absurdo que a Polícia Militar de São Paulo se preste a isso. Ela deveria colocar no seu site os fatos mais importantes em relação ao combate ao crime, ao narcotráfico, ao crime organizado, às prisões feitas no Estado de São Paulo.

Agora, se vangloriar, colocando esses episódios históricos, que foram muito importantes, porque a Guerra de Canudos foi um movimento resistência das camadas populares do Brasil contra as oligarquias, em defesa da reforma agrária. E a Polícia Militar ajudou a massacrar essas pessoas e ainda estampa – eles deveriam se envergonhar de ter participado!

É uma vergonha que na época a Força Pública tenha participado do massacre de Canudos, mas eles colocam no site, achando o máximo!

E no final do site, ela também se vangloria de ter participado da campanha, do movimento, da ação que perseguiu um grupo de estudantes no Vale do Ribeira, de pessoas que foram empurradas para a luta armada no Brasil, por conta do Ato Institucional nº 5, o AI-5, decretado em 68 e que acabou de vez com todas as liberdades, com toda a possibilidade de participação política da população no Brasil, empurrando uma parte do movimento progressista para a luta armada.

A Rota destaca sua participação até
no cerco do qual Lamarca escapou…

Nesse caso específico, nós tínhamos um grupo que era liderado pelo capitão do exército que rompeu, porque ele não concordou com o golpe, ele foi digno, rompeu com o regime militar, e foi para a luta armada.

Eu me refiro ao capitão Carlos Lamarca, que é considerado hoje um herói, que lutou contra o regime militar.

Agora, a Polícia Militar no seu site também se vangloria e acha o máximo ter participado do movimento de bloqueio, de ter tentado capturar o capitão Lamarca.

Não conseguiram. Mobilizaram dez mil homens junto com o Exército e Lamarca escapou do Vale do Ribeira. Depois foi morto covardemente no sertão da Bahia, debilitado, sem forças para reagir.

E, no entanto, sr. presidente, está no site do 1º Batalhão da Polícia Militar do Estado de São Paulo. Isso tem que ser retirado imediatamente, porque isso agride toda a história do nosso país, que já rejeitou o golpe militar.

Hoje, está no inconsciente coletivo da população brasileira que o golpe militar, o regime militar, que durou de 1964 a 1985, foi nocivo para o Brasil, prejudicou o Brasil, atrasou o Brasil em 50 anos, principalmente com a instalação da doutrina de segurança nacional, com a ideologia de segurança nacional, que abriu espaço para todo tipo de perseguição, sobretudo ao pensamento crítico brasileiro.

O Brasil perdeu muito com o regime militar, com a ditadura militar.

Sei que há as viúvas, as pessoas que defendem o regime militar, que são pessoas, no mínimo, desinformadas.

Agora, repito, Sr. Presidente, é inconcebível que um site público do Governo do Estado de São Paulo faça alusão a esses três episódios: elogiando a ação da Polícia Militar, em apoio ao golpe militar, que foi o regime da tortura, das perseguições, das mortes; que a Polícia Militar tenha apoiado o massacre de Canudos e também a perseguição de pessoas que se opunham ao regime militar.

Então, nós exigimos que o Governador Geraldo Alckmin, que o Secretário Estadual da Educação e o Comando da Polícia Militar tomem providências imediatas, retirando do site esses três tópicos.

Sr. Presidente, gostaria que cópias deste meu pronunciamento fossem enviadas ao governador do Estado, ao secretário de Segurança Pública e ao comandante geral da Polícia Militar.

Portal do Governo de SP mantém entulho autoritário no ar

No Portal do Governo do Estado de São Paulo, o internauta tem acesso à página virtual do 1º Batalhão de Polícia de ChoqueRondas Ostensivas Tobias de AguiarRota.

E nesta, clicando em Histórico do BTA, encontrará:

Marcando, desde a sua criação, a história desta nação, este Batalhão teve seu efetivo presente em inúmeras operações militares, sempre com participação decisiva e influente, demonstrando a galhardia e lealdade de seus homens, podendo ser citadas, dentre outras, as seguintes campanhas de Guerra:

  • Campanha do Paraná, em 1894…
  • Questão dos Protocolos, em 1896…
  • Guerra de Canudos, em 1897 …
  • Levante do Forte de Copacabana, em 1922…
  • Revolução de 1964, quando participou da derrubada do então Presidente da República João Goulart, apoiando a sociedade [os grifos são meus] e as Forças Armadas, dando início ao regime militar com o Presidente Castelo Branco;
  • Campanha do Vale do Rio Ribeira do Iguape, em 1970, para sufocar a Guerrilha Rural instituída por Carlos Lamarca…

Depois, em Os Boinas Pretas, lê-se o seguinte:

Sufocado o foco da guerrilha rural no Vale do Ribeira, com a participação ativa do então denominado Primeiro Batalhão Policial Militar “TOBIAS DE AGUIAR”, os remanescentes e seguidores, desde 1969, de “Lamarca” e “Mariguela” continuam a implantar o pânico, a intranqüilidade e a insegurança na Capital e Grande São Paulo. Ataques a quartéis e sentinelas, assassinatos de civis e militares, seqüestros, roubos a bancos e ações terroristas. Estava implantado o terror.

Mais uma vez dentro da história, o Primeiro Batalhão Policial Militar “TOBIAS DE AGUIAR”, sob o comando do Ten Cel SALVADOR D’AQUINO, é chamado a dar seqüência no seu passado heróico, desta vez no combate à Guerrilha Urbana que atormentava o povo paulista.

Havia a necessidade da criação de um policiamento enérgico, reforçado, com mobilidade e eficácia de ação.

Incumbe-se à 2ª Cia de Segurança do Primeiro Batalhão Policial Militar, exclusivamente de Tropa de Choque, a iniciar o Patrulhamento Ostensivo Motorizado no Centro de São Paulo.

Surge então o embrião da ROTA, a Ronda Bancária, que tinha como missão reprimir e coibir os roubos a bancos e outras ações violentas praticadas por criminosos e por grupos terroristas.

Em 15 de outubro de 1970, este “embrião” passa a denominar-se “RONDAS OSTENSIVAS TOBIAS DE AGUIAR” – ROTA.

A PERGUNTA QUE NÃO QUER CALAR

A indagação que continuarei fazendo enquanto este entulho autoritário não for tirado do ar é: tais conceitos e tal visão da História brasileira são ainda endossados pelo Governo paulista?


Caso contrário, por que o Governo paulista mantém até hoje em seu portal a retórica falaciosa da ditadura militar, apresentando resistentes como transgressores e, implicitamente, uma tirania exercida por golpistas como Poder legítimo?


Foi o que indaguei do então governador José Serra, em carta aberta, no mês de outubro de 2008.

E consegui que lhe fosse perguntado numa sabatina da Folha de S. Paulo em junho de 2010, quando já deixara o governo.

Tendo ele negado que tais aberrações fossem avalizadas pelo Governo paulista, enviei carta a Alberto Goldman, o seu substituto no Palácio dos Bandeirantes (vide comentários do mesmo artigo), que foi recebida, protocolada e, verdadeiramente, não respondida — prometeu-se estudar o caso, e nenhuma outra satisfação me foi dada.

Então, hoje transmito a mesma queixa ao governador Geraldo Alckmin.

Eu e todos que lutamos contra o arbítrio instaurado em 1964 continuamos indignados com os infames elogios à derrubada de um presidente legítimo e a ações repressivas executadas durante a vigência do terrorismo de estado no Brasil, marcada por atrocidades, execuções covardes, estupro de  prisioneiras, ocultação de cadáveres e o sem-número de outros crimes e arbitrariedades com que os déspotas intimidavam nosso povo,  para mantê-lo subjugado.

Enquanto o governo democrático do Estado de São Paulo não agir como tal, continuarei repetindo esta cobrança.

Por que Serra é o herdeiro político da ditadura

É preciso dar nomes aos bois. Os brasileiros não têm memória curta, mas existe aqui uma cultura política – reforçada na esfera midiática – de enfatizar posições circunstanciais mais que campos históricos. Serra fala de “biografia”, mas omite as biografias de quem o apóia. Dilma, também, enfatiza mais sua trajetória individual de trabalho do que o conjunto político que apóia seu projeto. E basta passar em revista um “quem é quem” da política brasileira desde o regime militar para deixar bem claro quem está do lado de quem, e que setores da sociedade cada um representa.

A ditadura militar brasileira (1964-1985) não foi homogênea nem no corte temporal, nem no corte ideológico. Foi fruto de uma conjunção de interesses que se aliaram na conjuntura de 1964, mas depois de alteraram, mudaram de lado e, por fim, voltaram a se unir em alianças estratégicas. Caiu quando esses interesses lhe tiraram a base, tendo ainda por pressão um cenário externo, na América Latina dos anos 1980, de re-civilização e paulatina redemocratização.

Em março de 1964, esses interesses convergentes eram, à frente de todos, a burguesia industrial urbana (acima de tudo, paulista), grandes proprietários de terra (no nordeste, norte e centro-oeste), classes médias conservadoras do centro-sul e uma vanguarda reacionária dos militares anti-nacionalistas. A Igreja, claro, também desempenhou papel importantíssimo, ainda que membros das bases eclesiásticas tenham cedo articulado uma resistência da esquerda católica, principalmente em Minas Gerais, como foi o caso de Frei Betto, Herbert de Souza e Dilma Rousseff.

No ano do golpe, a burguesia industrial, a oligarquia rural e os anti-nacionalistas estavam reunidos no partido União Democrática Nacional, a UDN. Já outros oligarcas e os antigos burocratas (seria eufemismo dizer “gestores públicos”) do período getulista se agrupavam no Partido Social Democrático, o PSD. E os getulistas (ou, como se diz em São Paulo, “varguistas”) eram membros do Partido Trabalhista Brasileiro, o PTB. Havia ainda partidos menores à esquerda, como o PSB e o PCB (ilegalizado desde 1947), e à direita, como o PSP de Adhemar de Barros, e o PRP do integralista (fascista) Plínio Salgado.

Entre udenistas mais destacados estavam Carlos Lacerda, Sandra Cavalcanti, Tenório Cavalcanti, Amaral Neto (RJ), Magalhães Pinto, Pedro Aleixo, Aureliano Chaves, Milton Campos (MG), João e Otávio Mangabeira, Juracy Magalhães (BA), Arnon de Melo (pai de Fernando Collor de Melo), Teotônio Vilela, Rui Palmeira (AL), José Américo (PB), João Agripino Maia (PB e RN), Aluísio Alves (RN, rival do anterior), Virgílio Távora (CE; sobrinho de Juarez Távora, tenentista, aliado histórico e depois inimigo de Getúlio), Flores da Cunha (RS; outro ex-getulista rompido), Petrônio Portela (PI) e José Sarney (MA).

Sua ideologia era baseada num forte apoio à iniciativa privada, aliança com empresas estrangeiras, rejeição ao nacionalismo e ao sindicalismo e um forte conservadorismo católico. Foram radicalmente contra a criação da Petrobrás, e defendiam que o petróleo brasileiro deveria ser entregue a companhias estrangeiras como a Esso, a Shell e a Texaco.

Já os pessedistas eram liderados por Juscelino Kubitschek (que já tinha sido presidente) e tinham ainda Amaral Peixoto, Negrão de Lima, Henrique Dodsworth, Miguel Couto, Pedro Calmon (RJ), Benedito Valadares (o “Governador Valadares”, que deu origem à expressão “Mas será o Benedito?”), Gustavo Capanema, Cristiano Machado, Israel Pinheiro, José Maria Alkmin (MG), Fernando de Souza Costa, Ranieri Mazzilli, Ulisses Guimarães (SP), Agamenon Magalhães, Barbosa Lima Sobrinho (PE), Silvestre e Ismar Góis Monteiro (AL), Armando Falcão (CE), Renato Archer (MA), Álvaro Maia (AM), Pedro Pedrossian (MS), Moisés Lupion (PR), Walter Só Jobim (avô de Nelson Jobim) e João Neves da Fontoura (RS), além de militares como Henrique Teixeira Lott (nacionalista) e Osvaldo Cordeiro de Farias (anti-nacionalista).

Apesar de a UDN e o PSD serem fracos em São Paulo (dominado pelo “ademarismo”), representavam nacionalmente os mesmos interesses de famílias paulistas de empresários, industriais e políticos, como os Matarazzo, os Simonsen, os Safra, os Ermírio de Moraes (Grupo Votorantim), os Camargo e os Corrêa (grupo Camargo Corrêa), os Mesquita, os Street, os Lafer e os Klabin, de quem tinham apoio. Em outros estados, ainda, tinham apoios de famílias burguesas ou de oligarquias seculares como os Melo Franco (MG), os Guinle, os Mayrink Veiga, os Steinbruch (RJ), os Mariani (BA), os Pompeu de Souza, os Jereissati (CE), os Bornhausen (SC) e os Gerdau-Johannpeter (RS).

Vários dos nomes citados acima foram ministros da ditadura, governadores e prefeitos nomeados ou eleitos por votação indireta, deputados e senadores no regime militar. Poucos, como Ulisses e Barbosa Lima, passaram para a oposição logo de cara. Mas, pelo menos no início, todos eles apoiaram o golpe.

Com a tomada do poder à força pelos militares, os nacionalistas, socialistas, comunistas e esquerdistas de todo tipo, além de alguns políticos de direita mas considerados potenciais adversários – como Juscelino, Lacerda e Adhemar – foram perseguidos, presos, cassados, banidos (expulsos do país) ou assassinados. Sobrou muito pouca gente no PTB (todos os ministros de João Goulart foram declarados inelegíveis), e as pessoas do PSB, PCB e outros tiveram de ficar escondidas – a “clandestinidade”.

A UDN e o PSD foram os partidos que apoiaram a ditadura abertamente no início. Mas, em 1965, houve eleições estaduais e esses partidos foram derrotados em postos-chave, como o Rio de Janeiro (então Estado da Guanabara) e Minas. Como em qualquer ditadura, os militares não tinham tolerância à oposição e baixaram o Ato Institucional Nº2 (AI-2), cassando todos os partidos (inclusive o PSD e a UDN) e criando regras tão exigentes para a formação de novos partidos que, na prática, só puderam ser criados dois: a Aliança Renovadora Nacional (ARENA) e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB).

Os políticos da UDN migraram em peso para a ARENA, partido criado pelos políticos civis para apoiar a ditadura dos militares. Entre as principais lideranças do partido estavam Francelino Pereira e José Sarney. Quase toda a UDN mineira foi para a ARENA. Além dos udenistas históricos, houve arenistas de origem empresarial ou técnica que foram ascendendo na burocracia de governos e órgãos públicos graças a nomeações (porque o AI-3, em fevereiro de 1966, acabou com a eleição direta para governador e prefeito). Entre eles, estavam Antônio Carlos Magalhães (BA; sem parentesco com Juracy), Paulo Maluf, Paulo Egydio (SP), Hélio Garcia e Eliseu Resende (MG). Entre os membros da direita ideológica estavam Célio Borja (RJ) e Abreu Sodré (SP), o líder estudantil Marco Maciel (PE), o militar Mário Andreazza, o fascista Filinto Müller (ex-chefe de polícia de Getúlio e o homem que mandou Olga Benário para os nazistas), além de economistas e banqueiros como Olavo Setúbal, Delfim Netto, Roberto Campos, Pratini de Moraes e Mário Henrique Simonsen.

Já o PSD ficou mais dividido: a maioria foi para a ARENA, mas parte expressiva foi para o MDB, de oposição “comportada” à ditadura, e formado com remanescentes do PTB getulista. Entre os ex-pessedistas, estavam Tancredo Neves (MG), Ulisses Guimarães (SP), Amaral Peixoto e Chagas Freitas (RJ). José Maria Alkmin (sem parentesco com Geraldo Alckmin), amigo de Juscelino, do PSD, foi para a ARENA e acabou escolhido como vice de Castelo Branco, o primeiro presidente da ditadura. Assim como a ARENA, o partido conta com quadros que ascendem em administrações locais, como Mario Covas, Orestes Quércia (SP), José Richa (PR), Miro Teixeira (RJ), Paulo Brossard, Pedro Simon (RS) e Renan Calheiros (AL). Houve ainda correntes “janistas”, paulistas ligados a Jânio Quadros, como Franco Montoro e o brigadeiro José Vicente Faria Lima.

À parte da política formal, sem poder concorrer aos cargos e sob ameaça de serem presos, torturados e mortos, estavam os políticos da esquerda. Contavam-se tanto a esquerda tradicional, fosse getulista (Leonel Brizola) ou socialista (Miguel Arraes, Francisco Julião, Ricardo Zarattini), além do PCB, chamado de Partidão (Luís Carlos Prestes, Gregório Bezerra). Todos estes foram para o exílio. Quem ficou foi obrigado a se manter na oposição intelectual, como diversos acadêmicos (Fernando Henrique Cardoso, Florestan Fernandes, Francisco Weffort, Maria da Conceição Tavares, Marilena Chauí, Emir Sader) ou a aderir à clandestinidade. Havia ainda as lideranças mais jovens que militavam no movimento estudantil (José Serra, Vladimir Palmeira, filho do udenista Rui Palmeira), igualmente perseguidos e dos quais vários também se exilaram. Todos estes estavam na oposição à ditadura.

Dos que decidiram pegar em armas contra a ditadura, milhares eram jovens até então desconhecidos que ingressaram nas dissidências do Partidão que apoiavam a luta armada, inicialmente lideradas por nomes da velha guarda comunista, como o PCdoB (João Amazonas, Maurício Grabois, Haroldo Lima, Pedro Pomar, Vladimir Pomar), o PCR (Manuel Lisboa), o PCBR (Mário Alves, Jacob Gorender, Apolônio de Carvalho) e o PRC (José Genoíno, Tarso Genro), além das guerrilhas ALN (Carlos Marighella, Joaquim Câmara Ferreira, Nilmário Miranda, Paulo Vannuchi, José Dirceu), MR-8 (ou Dissidência da Guanabara): Franklin Martins, Fernando Gabeira, Daniel Aarão Reis, César Benjamin, Vera Magalhães, Stuart Angel), VPR (Carlos Lamarca, Iara Iavelberg, Alfredo Sirkis), VAR-Palmares (Dilma Rousseff, Carlos Minc), POLOP (ligada ao PSB; Moniz Bandeira, Paul Singer) e a esquerda católica mineira (Frei Betto, Frei Tito, Herbert de Souza, Vinícius Caldeira Brant; o catarinense Leonardo Boff, também adepto da Teologia da Libertação, foi por outro caminho).

Mais para o fim do regime, uma corrente do movimento estudantil de linha trotskista se destacou das outras: a Libelu (Liberdade e Luta), que tinha entre seus membros nomes como Antonio Palocci, Reinaldo Azevedo, Demétrio Magnoli, Eugênio Bucci, Luis Favre, Clara Ant, Luiz Gushiken e Glauco Arbix.

Mas o quadro mudou muito à medida que se aproximava a volta ao governo civil e à democracia, no processo lento, gradual e repressivo chamado de “abertura” (1974-1985). O MDB já não dava conta das demandas da esquerda, e mesmo na ARENA havia políticos de direita ideológica que não se conformavam com o crescimento dos burocratas, muitas vezes corruptos, representados por Maluf.

Em 1978, foi na prática autorizado o fim do bipartidarismo, com regras mais fáceis de cumprir para a fundação de novos partidos. Leonel Brizola voltou e quis refundar o PTB para reagrupar os getulistas, mas a Justiça Eleitoral (ainda manipulada pelos militares, que viam na força da sigla uma ameaça) deu a legenda para uma sobrinha de Getúlio, Ivete Vargas, que não tinha nenhum comprometimento com a esquerda nem a causa trabalhista. Sem outra saída, Brizola fundou o Partido Democrático Trabalhista, o PDT.

O MDB acrescentou a palavra “Partido” ao nome e virou PMDB, mas começou a cindir quando cresceu eleitoralmente, gerando disputas internas regionais. Algumas destas dissidências se uniram a setores descontentes da ARENA para formar o PP (Partido Popular), apelidado de “centrão”, sob a liderança de Tancredo Neves e seu escudeiro Miro Teixeira, tendo ainda banqueiros da antiga UDN, como Magalhães Pinto e Olavo Setúbal. O PP durou apenas dois anos e foi incorporado ao PMDB em 1982.

A ARENA se converteu em PDS (não confundir com o antigo PSD!), sigla para Partido Democrático Social – curioso nome para o partido de um regime que não tinha nada de democrático, nem de social. Com ele ficaram Maluf, Sarney, Aureliano, Mário Andreazza, e membros civis menos expressivos da ditadura, como Francisco Dornelles (sobrinho de Tancredo e de Getúlio) e Fernando Collor.

Mas, naquele mesmo final de década de 1970, ocorreu um fenômeno socio-político que teria conseqüências transformadoras para o país: a ascensão do novo sindicalismo brasileiro, marcadamente paulista, sem laços com o getulismo, simbolizado pelas vitoriosas greves de metalúrgicos do ABC Paulista. A liderança que emergiu desse movimento foi Luiz Inácio Lula da Silva. E grupos tanto da esquerda tradicional quanto das antigas guerrilhas e dissidências já ativas prestararam atenção a esse fenômeno (exceto o MR-8, que se incorporou ao PMDB). A lei de anistia de 1979 permitiu a vários exilados que voltassem (Serra, Gabeira, Sirkis, Franklin Martins), cancelou banimentos e soltou oposicionistas presos (Dilma, Genoíno). Muitos deles viram em Lula uma liderança natural em ascensão, e com ele articularam um novo partido político que se apresentasse como diferente de toda a política tradicional feita no país até então.

O primeiro teste para o novo quadro partidário brasileiro foi a eleição para governador, em 1982. Leonel Brizola, pelo PDT, enfrentou uma tentativa de fraude e conseguiu se eleger no Rio de Janeiro. Lula concorreu a governador de São Paulo pelo PT, mas o eleito foi Franco Montoro, do PMDB. Já peemedebista, Tancredo foi eleito governador de Minas, e a oposição ainda garantiu outros 7 governos estaduais. Os outros 12 ficaram com os governistas do PDS (Rondônia, Roraima e Amapá ainda eram territórios federais).

O segundo teste foi a campanha pelas eleições diretas para presidente, a “Diretas Já!”, em 1984. Todos os partidos menos o PDS se uniram nessa campanha. PMDB, PDT, PT e PTB deram as mãos para exigir que o congresso aprovasse a mudança na lei para que o presidente fosse escolhido pelos eleitores, não pelos parlamentares. O autor da emenda era o deputado Dante de Oliveira, do PMDB matogrossense. Com isso, foi possível ver, no mesmo palanque, Ulisses, Brizola, Fernando Henrique, Montoro, Lula e outros políticos que jamais voltariam a estar juntos.

Na votação, porém, a emenda constitucional foi rejeitada e a eleição do ano seguinte seria feita por via indireta. Articularam-se as candidaturas: só PDS e PMDB (como fora com ARENA e MDB) teriam força para eleger seus candidatos. Mas a direção do PDS aprovou o nome de Maluf, o que gerou um descontentamento generalizado nos setores da direita ideológica, que fundaram uma dissidência: a Frente Liberal. À frente dela estavam Sarney, Marco Maciel, Antônio Carlos Magalhães, Jorge Bornhausen, Agripino Maia e outros conservadores com base política forte em áreas rurais, principalmente no nordeste. Em troca do apoio, Sarney (até semanas antes o líder do partido pró-ditadura) foi indicado a vice na chapa da oposição. Com a soma de votos PMDB + FL e ainda alguns do PDT brizolista, o peemedebista Tancredo Neves foi eleito.

Mas, como se sabe, passou mal na véspera da posse e foi internado. Sarney recebeu a faixa provisoriamente, em seu nome. Uma semana depois, Tancredo morreu. Sarney virou presidente de fato e de direito. Ele, que até pouco tempo antes tinha liderado a base de sustentação da ditadura militar, por uma ironia mais que por arranjo político, lideraria a transição para o governo civil. Seu ministério foi montado com nomes inicialmente escolhidos por Tancredo, com quadros do PMDB e da FL, além de alguns do PDS: Francisco Dornelles na Fazenda, Olavo Setúbal no Itamaraty, Pedro Simon na Agricultura, Aureliano Chaves nas Minas e Energia, ACM nas Comunicações, Marco Maciel na Educação e Renato Archer na Ciência e Tecnologia.

Mais dois partidos com grande expressão ainda surgiriam nos anos 1980, no contexto da Assembléia Constituinte, convocada para redigir uma nova constituição que substituísse a da ditadura. A Frente Liberal também ia adicionar um “P” ao nome para virar PFL, partido dos coronéis e dos conservadores convictos, com Marco Maciel, ACM, Agripino, Bornhausen e Aureliano. E os progressistas de São Paulo (Montoro, Covas, FHC, Sérgio Motta, depois aderidos por José Serra), defensores do modelo europeu de governo (parlamentarismo e social-democracia) fundariam a Social-Democracia Brasileira, que com outro “P” viraria o PSDB (e adotaram a figura do tucano como mascote). O Partido Verde foi fundado em 1986 pelos ex-guerrilheiros Sirkis, Gabeira e Minc (antes militantes do PT; este último voltaria ao partido pouco tempo depois), mas continuaria minúsculo até hoje.

A história recente desses partidos e do que fizeram em seus governos está mais fresca na memória. Sarney fez um governo fracassado na economia e na transição democrática; foi sucedido por um aventureiro – Collor – que, sem base de alianças, levou sua camarilha particular para governar do Planalto e fez o estrago institucional, econômico e ético já conhecido. A situação só foi corrigida por seu vice Itamar Franco, um emedebista histórico que, embora tenha liderado um “governo de união nacional” (em tese, com todos os partidos), privilegiou a composição com PMDB, PSDB e PFL, alavancando a aliança neo-oligárquica que faria os tucanos serem alçados de um partido de expressão regional limitada a São Paulo (Covas-Montoro), Paraná (José Richa) e Ceará (Jereissati) ao status de partido nacional. O PT correu por fora na oposição constante, sempre com Lula como líder, e em poucos anos desbancou o PDT brizolista como força maior da esquerda. O PDS/ARENA mudou de nome mais três vezes (para PPR, PPB e, finalmente, PP) e se manteve com Maluf e Dornelles, além de Espiridião Amin em Santa Catarina. O PTB apoiou Collor e minguou e foi tomado pelo empresário José Carlos Martinez e depois pelo maverick Roberto Jefferson. O PCB foi re-legalizado, mas sequestrado por Roberto Freire, que o transformou radicalmente em partido de “nova direita” sob a legenda PPS. O PCdoB passou a ser partido legal, com forte base no movimento estudantil. O PV não foi nada.

Desde o governo Fernando Henrique (1995-2003), os campos políticos foram muito bem definidos. Os partidos dos políticos que apoiaram a ditadura, que perseguiu, prendeu e matou milhares de brasileiros, censurou jornais, entregou riquezas nacionais nas mãos de empresários amigos ou estrangeiros, acobertou a corrupção endêmica e manteve a miséria como política de Estado, apoiaram o grupo de FHC-Serra, do PSDB, por meio do PFL, PP/ARENA, (ex-)PTB e outros. Os tucanos, que tinham combatido a ditadura, não tiveram vergonha em se aliar às mesmas pessoas que tinham financiado, ordenado ou compactuado com as prisões, torturas e mortes. E, no poder, conduziram finalmente um governo udenista, vendendo a Vale, a CSN, a Telebrás, e preparando o desmonte da Petrobrás – que a UDN nunca quis que existisse. Já a maior parte do campo que combateu de fato a ditadura (ou seja, à parte do MDB “comportadinho”) esteve na oposição, na maior parte do tempo fragmentada (Lula e Brizola se aliaram em 1998 a toda a esquerda, mas foram derrotados por FHC reeleito).

O atual cenário só se definiu de fato em 2002. Para conseguir se eleger presidente, depois de três tentativas derrotadas, Lula aceitou o apoio de setores muito questionáveis. Aproximou-se de nacionalistas de direita e do fenômeno crescente do poder das igrejas neopentecostais, sendo a mais forte delas a Igreja Universal do Reino de Deus, que tomara de assalto o pequeno Partido Liberal (PL, de Alvaro Valle, um ex-membro do PFL e liberal clássico por ideologia). Uma vez eleito, o apoio foi cobrado, é claro, e a composição da base aliada contou ainda com os improváveis votos do PP/ARENA de Maluf/Amin/Dornelles (sim, o mesmo partido de base da ditadura) e do PTB de Martinez/Jefferson (o primeiro morreu num acidente de helicóptero logo depois). Um esquema regular de repasse de dinheiro, a título de dívidas de campanha, foi montado por quadros do PT para remunerar o apoio. Quando acuado num caso menor de corrupção, Jefferson pôs a boca no mundo, e o que se viu foi o “escândalo do mensalão” (muito insuflado pela mídia, é verdade). O PT entrou em convulsão e nasceu a principal dissidência, que jurou fidelidade aos princípios originais do partido metalúrgico: o PSOL, de Heloísa Helena e Plínio de Arruda Sampaio. A IURD saiu do PL (que ficou oco e virou PR) e fundou um novo partido, o PRB, tendo o vice José Alencar como líder-mor (e sem vinculação religiosa).

No entanto, a despeito do choque, o sucesso do primeiro mandato levou à reeleição de Lula em 2006, quando o campo se reajustou. O PMDB entrou de corpo e alma para o governo, tendo Sarney à frente, um relutante Michel Temer na retaguarda e Renan Calheiros a tiracolo. O PP/ARENA foi mantido, com Maluf e Lula evitando menções mútuas para escapar ao constrangimento recíproco. O PDT, sem Brizola (morto em 2004), voltou ao seio da esquerda. E o PTB pós-mensalão se bandeou para o lado tucano, seguido pelo PPS de Freire e o PV de Sirkis-Gabeira. Em 2007, o PFL mudou de nome para “Democratas” (DEM), mas manteve exatamente o mesmo quadro e a mesma ideologia conservadora e oligárquica. Ganhou a adesão do prefeito carioca Cesar Maia, primo de Agripino e ex-brizolista, alçado à prefeitura inicialmente pelo PMDB. Pôs o filho, Rodrigo Maia, como presidente do partido, em substituição ao velho cacique Bornhausen – aquele que disse, em referência ao PT, que era preciso “acabar com essa raça”.

Essa raça, porém, é uma raça heróica, que pegou em armas e não teve medo de morrer para derrotar a ditadura dos generais pagos pelos empresários e fazendeiros, todos assassinos em algum grau. É a raça de Frei Betto, Leonardo Boff, Maria da Conceição, Marilena Chauí, Emir Sader (viúvo de Vera Magalhães), Válter Pomar (filho de Vladimir e neto de Pedro Pomar), dos ex-guerrilheiros José Genoíno, Tarso Genro, Nilmário Miranda, Paulo Vannuchi, Franklin Martins, Carlos Minc, Ricardo Zarattini, de Hildegard Angel (irmã de Stuart e filha de Zuzu Angel), de André Singer (filho de Paul Singer e ex-porta-voz de Lula), de Eduardo Campos (neto de Miguel Arraes), Ciro Gomes (amigo, mas adversário, de Jereissati) e Vladimir Palmeira. Todos combateram a ditadura. Todos estão com Dilma.

O lado oposto, se também puder ser chamado de raça, é uma raça acovardada, cúmplice da tortura e de assassinatos, que saqueou o patrimônio nacional. É a raça de Marco Maciel, Jorge Bornhausen, Agripino Maia, Afif Domingos, Jarbas Negri (da máfia das sanguessugas), da família de Antônio Carlos Magalhães, a latifundiária Kátia Abreu, o duplo-corrupto José Roberto Arruda (painel do senado e mensalão de Brasília), Geraldo Alckmin (cria de Covas), Orestes Quércia, Beto Richa (filho de José Richa), Moreira Franco (cria e genro de Amaral Peixoto), a imprensa dos Mesquita, dos Frias e dos Marinho. Todos estão com José Serra. Todos estiveram com a ditadura.

Há exceções de ambos os lados, é verdade. Gabeira e Sirkis, ex-guerrilheiros, preferiram abraçar Sarney Filho em seu partido e se aliar ao DEM/PFL e ao PPS de Freire, e ainda tiraram a histórica Marina Silva do PT (cuja seção no Acre ela fundara com Chico Mendes e Jorge Viana) para lançá-la como candidatura tira-votos de Dilma. César Benjamin, no PSOL, usou a tribuna da mídia corporativa para denegrir Lula. O “czar da economia” dos militares, Delfim Netto, apóia Lula de primeira hora. Antônio Ermírio de Moraes também. Já Reinaldo Azevedo e Demétrio Magnoli, da trotskista Libelu, se tornaram dois dos mais estridentes detratores anti-esquerdistas. Mas cada uma dessas exceções não altera a essência do projeto político de cada um. Dilma não é mais coronelista por ter apoio de Renan e Sarney, nem Serra é mais revolucionário por ter Gabeira e os ex-trotskistas.

Esse desfile de nomes não é uma aula de história do Brasil. É um mapa dos campos políticos que se enfrentam agora. Um tem pessoas que lutaram pelo Brasil. O outro tem pessoas que operaram contra o Brasil. Essas pessoas, no poder, não vão negar suas biografias. Quem sempre defendeu o Brasil continuará defendendo. Quem sempre prejudicou o Brasil poderá destruí-lo de vez.

Como no filme, o renascido das trevas a elas retorna…

Um bom amigo me perguntou se eu não estaria sendo precipitado, ao concluir que o impulso dado à candidatura demotucana pela surpreendente sobrevida já está exaurido. Colocou em dúvida a confiabilidade do instituto Vox Populi.

Respondi que, independentemente da pesquisa e de quem a fez, era isto que eu intuia desde o debate Folha/Rede TV.

José Serra — a quem caberia aplicarmos o título do livro/filme de Clive Barker, Renascido das Trevas — teria de aproveitar o que porventura ainda restasse do seu momento favorável, levando Dilma Rousseff às cordas naquele debate.

Uma pesquisa por ninguém questionada, a do DataFolha, já revelava que a sangria de votos de Dilma havia sido estancada e a situação estabilizara-se novamente, num patamar ainda seguro para a candidata oficial.

Serra teria de produzir algum impacto na noite de domingo, para voltar a crescer a partir da 2ª feira. Negou fogo.

Então, deduzi, a tendência era de que a altíssima aprovação do governo atual e a popularidade do presidente Lula voltassem a fazer a diferença, já que nenhum candidato sobrepujava nitidamente o outro — como, aliás, vinha se constatando desde o início da campanha.

Então, das quatro semanas entre um turno e outro, na primeira Serra tentou e não conseguiu decolar; na segunda houve imobilismo; a terceira tende a ser de Dilma; e a possibilidade de que o quadro sofra uma grande reversão na quarta é das mais remotas.

Com o que isto se parece? Com a eleição de 2006, claro! Pois:

  • tudo levava a crer que Lula liquidaria a fatura no 1º turno;
  • a tendenciosidade da mídia, produzindo na enésima hora um factóide providencial, salvou Geraldo Alckmin;
  • este, entretanto, não conseguiu embalar na 1ª semana;
  • Lula segurou a onda, voltando a crescer nas duas semanas seguintes;
  • chegou à 4ª com a vitória consolidada, de tal forma que o resultado das urnas (ele colocou uma vantagem de 21%, mais de 20 milhões de votos, em cima de Alckmin) foi apenas a confirmação do que todos esperavam.

Analista político que se preza tem de acreditar nas suas avaliações e intuições. Eu não fico em cima do muro, teclo-as e divulgo.

Uma notícia desta 4ª feira (20) da Folha de S. Paulo, Campanha de Serra vê perda de fôlego e traça mudanças, vem ao encontro da minha sensibilidade, como se constata nestes trechos:

O comando da campanha de José Serra (PSDB) avalia que houve uma perda de fôlego nos últimos dias e estuda como manter a candidatura em ascensão.

Um reflexo disso foi o abandono do tema do aborto e de questões religiosas pelo tucano…

“O tema (…) já começa a ser visto com potencial negativo pelo PSDB, especialmente depois que a mulher de Serra, Monica, acabou incluída involuntariamente no noticiário…

“Ontem, o partido demonstrou publicamente uma contrariedade em grau ainda não manifestado em relação a uma pesquisa do Vox Populi que apontou crescimento da vantagem de Dilma Rousseff (PT) sobre o tucano…

“A pesquisa deu início a um procedimento raro na campanha de Serra. O presidente do PSDB e coordenador da campanha, Sérgio Guerra, decidiu conceder entrevista coletiva com o objetivo de desqualificar o instituto e os números da pesquisa…

“Guerra fez um pronunciamento de nove minutos recheado de duros ataques ao instituto. Apesar das críticas, ele não anunciou nenhuma medida judicial em relação à pesquisa ou ao instituto.

“Um tucano também afirmou ontem que a expectativa do partido é que a próxima pesquisa Ibope, que deve ser divulgada hoje, também aponte um crescimento de Dilma, interrompendo a trajetória ascendente de Serra”. [os grifos são todos meus]

Nas entrelinhas, o que se percebe é o desespero de quem vê a derrota chegando.

Caso a expectativa  em relação ao Ibope se confirme, como eu acredito que se vá confirmar, a candidatura de Serra voltará a fazer água.

E, desta vez, não haverá nenhuma Marina Silva para atirar-lhe uma bóia…

O diabo trapaceou Serra: tomou-lhe a alma sem dar nada em troca

Após o insosso debate entre os presidenciáveis que a Rede TV e a Folha de S. Paulo promoveram no último domingo, fiquei com a impressão de que 2006 se repetiria: um grande esforço de última hora da mídia golpista evitando que a candidatura oficial decidisse a parada logo no 1º turno, mas não sendo suficiente para reverter o resultado anunciado.

Como Alckmin daquela vez, Serra não encontrou o mapa da mina. Marina Silva e o PIG lhe proporcionaram uma sobrevida, mas aproveitá-la para decolar são outros quinhentos.

Com carisma zero, não consegue fazer seus castelos nas nuvens valerem mais do que uma realidade palpável: as condições de vida dos pobres e dos muito pobres melhoraram sob o governo atual.

Então, independentemente de posturas ideológicas, o que deixa Serra num beco sem saída são a aprovação e popularidade do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

A percepção do eleitor despolitizado é de que o Brasil evoluiu, daí ele encarar a tempestade de som e fúria dos demotucanos como tentativas de encontrarem pêlo num ovo que está dando certo. Portanto, significando nada.

Trata-se de uma sinuca de bico: não há factóide, propaganda enganosa e alarmismo que façam os eleitores  pés no chão mudarem seu voto.

O desejo da Veja, erigido em matéria de capa (!), é o de que a eleição fosse decidida em Minas Gerais, com Aécio Neves como fiel da balança. Dia 31 a revista aprenderá que jornalismo é algo mais do que expressão de desejos.

Uma mudança surpreendente do quadro só seria possível se Serra fosse um personagem eletrizante; mas, seu estilo é de quem está sempre explicando o óbvio a estudantes burrinhos. Não empolga ninguém.

Ora parece um mestre-escola alongando-se em repetições desnecessárias para martelar as lições na cabeça dos alunos, ora um guarda-livros a detalhar uma contabilidade que ele considera interessante e os demais, nem um pouco. Enfim, um chato de galochas, como se dizia antigamente.

O aborto (a palavra aqui cai muito bem…) da hipotética virada já começa a se evidenciar nas pesquisas eleitorais: a última do Data Folha mostrara um quadro estático e a nova do Vox Populi flagra subida de Dilma.

Pior que a derrota será a decepção causada por Serra àqueles que ainda acreditavam nele.

Aceitar o apoio e beneficiar-se da baixaria das correntes virtuais ultradireitistas, fazer promessas demagógicas como a do salário mínimo de R$ 600 e colocar uma questão religiosa no centro da campanha o deixou com a imagem de quem pisa até no pescoço da mão para chegar à Presidência.

O último a projetar tal imagem acabou morrendo na praia. E, convenhamos, fazia bem mais por merecer o ambicionado troféu.