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Vale tudo para desqualificar Bicudo. Até atribuir-lhe senilidade!!!

O homem que derrotou o Esquadrão da Morte…

Eartigo publicado nesta 5ª feira (15/10) no Brasil 247, a colunista Tereza Cruvinel ignorou não só as boas práticas jornalísticas como as mais elementares noções de civilidade, educação, respeito pessoal e deferência para com as pessoas idosas, ao indagar, já no título, se Bicudo está senil?.

E, no primeiro parágrafo, consumou a tentativa de desqualificação de um dos maiores heróis da resistência jurídica à ditadura militar, lastreada tão somente no preconceito em relação à sua idade (93 anos), já que não aponta nele nenhum comportamento característico da senilidade, apenas reprovando suas opiniões. Ou seja, pretendeu intimidá-lo por dele discordar, e o fez lançando uma suspeição que não tinha competência para lançar, já que não é médica:

Um homem lúcido como ele sempre foi não diria os disparates que disse, em entrevista ao Estadão, se tivesse perfeito domínio de suas faculdades mentais. O jurista Hélio Bicudo disse que ‘o PT tomou conta do judiciário. É o PT que está decidindo o que acontece no STF. Quem foi que colocou esses ministros no tribunal? Foi o PT. Eles (ministros) não irão julgar nada contra o PT’.

Sem entrar no mérito da independência ou não de cada um dos ministros do STF empossados desde 2003, é perfeitamente cabível um cidadão lúcido suspeitar que o partido no poder favoreça candidatos simpáticos a seus interesses.

…e sua detratora.

Ainda mais depois de tanto haver sido dito que, para conquistar a vaga, Luiz Fux teria enganado alguns grãos petistas, levando-os a crerem que ele ajudaria a absolver os mensaleiros.

Acredito, enfim, que Cruvinel tenha infringido o Estatuto do Idoso:

Art. 96. Discriminar pessoa idosa, impedindo ou dificultando seu acesso a operações bancárias, aos meios de transporte, ao direito de contratar ou por qualquer outro meio ou instrumento necessário ao exercício da cidadania, por motivo de idade:

          Pena – reclusão de 6 (seis) meses a 1 (um) ano e multa.

§ 1º Na mesma pena incorre quem desdenhar, humilhar, menosprezar ou discriminar pessoa idosa, por qualquer motivo.

Bicudo concorreu para este desfecho

E também o Código Penal:

Art. 140 – Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:

§ 3º  Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência:

Pena – reclusão de um a três anos e multa.

Como leigo que sou, não tenho a mínima pretensão de esgotar a análise jurídica dessa ofensa.  É ao Ministério Público que compete tal tarefa.

O que não exime a Cruvinel da obrigação moral de retratar-se o quanto antes, pedindo desculpas a Bicudo por ter escrito como qualquer sem noção, e não como uma jornalista.

Como um antigo torturador cometeria o crime perfeito

Vamos supor que um torturador de outrora quisesse eliminar dois dos seus congêneres, de tal forma que o assassinato não viesse a ser imputado nem a ele, nem a outros veteranos da repressão ditatorial.
Um dos alvos, porque estava próximo da morte e mantinha um minucioso arquivo sobre agentes do Estado que cometeram crimes contra a humanidade, como os cometeram, quem foram suas vítimas, que fim tiveram os respectivos restos mortais, etc. Sabia-se lá quem ficaria com tal arquivo quando ocorresse sua morte natural e qual o destino que a ele daria. Daí a conveniência de antecipar o desfecho, para o poder administrar convenientemente, só permitindo que viessem a público informações tornadas inócuas pelo passar das décadas.
Outro, porque dera com a língua nos dentes num palco iluminado e, mesmo que não voltasse a fazê-lo (deixara de identificar comparsas vivos, mas poderia mudar de ideia), constituía-se num péssimo exemplo. Quantos pés na cova com os mesmos antecedentes não estariam queimando de inveja da notoriedade que ele alcançara? Para certo tipo de pessoas, serem relegadas ao esquecimento incomoda muito mais do que serem lembradas como ogros…
Assassinados: o 1º colecionador de armas…
Como dizia o Dadá Maravilha, para toda problemática existe uma solucionática.
O hipotético torturador de outrora certamente conheceria bem um universo contíguo, o da contravenção, nele sentindo-se como um peixe dentro da água. Lembrem-se:
  • o famoso delegado Sérgio Fleury, nos tempos em que chefiava o famigerado Esquadrão da Morte, estava a serviço de um grande traficante, liquidando apenas seus concorrentes, enquanto fingia exterminar os bandidos em geral;
  • os torturadores da PE da Vila Militar (RJ), oficiais inclusos, quando começaram a escassear os proventos da repressão à guerrilha (as recompensas recebidas de grandes empresários e a rapinagem dos bens apreendidos com militantes), não só se tornaram parceiros de contrabandistas da região como tentaram passar-lhes a perna, tomando sua muamba à bala;
  • um destes oficiais, o Capitão Guimarães, não se conformou de, desmascarado, haverem aliviado para ele no sentido de salvar as aparências mas ter-se tornado um pária na caserna –optou por dar baixa e iniciar uma bem sucedida carreira como bicheiro de Niterói, acabando por se tornar um dos maiores chefões do crime organizado.
…e o 2º colecionador de armas. Ambos quando mais convinha.
Então, para alguém da laia de um antigo torturador da ditadura militar, nada mais fácil do que encontrar ladrões homicidas aptos para tais missões e passar-lhes a dica de que os oficiais da reserva em questão possuíam bens valiosos, como coleções de armas, estando praticamente indefesos.
Com a recomendação expressa de que os mesmos deveriam ser assassinados, e ninguém mais.
Com a advertência expressa de que, se caíssem presos, não deveriam de forma nenhuma incriminá-lo, caso contrário sua rede (de veteranos dos porões e novos fanáticos do extremismo) cuidaria para que fossem mortos no cárcere.
Foi assim que as coisas se passaram? Se non è vero, è ben trovato, como dizem os italianos…

A punição dos torturadores, para além do simplismo e do panfletarismo

Ultimamente, alguns personagens acolhidos com tapete vermelho pela mídia têm manifestado pontos de vistas semelhantes aos que venho sustentando desde 2008, sobre a punição dos carrascos de 1964/85.

 

Ou seja, se a grande imprensa ciosamente me mantém fora de suas páginas, não é por eu escrever besteiras, mas pelo motivo diametralmente oposto: o de que minhas consistentes análises não convêm aos interesses dominantes. Exatamente o que ocorria nos EUA, durante os tempos nefandos do macartismo.

 

Quase cinco anos depois de haver redigido meu polêmico artigo Uma proposta para o acerto das contas do passado, as minhas avaliações e prognósticos se confirmaram amplamente. Quem se der ao trabalho de ler (acesse aqui) e refletir, constatará que os acontecimentos rumaram exatamente na direção por mim prevista.

 

Quero deixar registrado que, p. ex., o ex-ministro dos Direitos Humanos Paulo Vannuchi acaba de declarar à imprensa ser “inegociável” a punição dos carrascos da ditadura militar, mas a prisão dos que ainda estão vivos “é dispensável”, podendo ser substituída por outras possibilidades de sanção na área civil.

 

Foi  o que propus naquele momento no qual ficou bem evidenciado que o Executivo e  o Legislativo não tinham nenhuma vontade de (ou coragem suficiente para) encaminhar a revogação da ridícula anistia de 1979, uma verdadeira aberração à luz do Direito, pois ditadores não podem conceder um habeas corpus preventivo para si próprios e para seus esbirros.

 

 Como a revogação era condição  sine qua non  para que os responsáveis pelos crimes hediondos fossem merecidamente remetidos às prisões, o jeito seria curvarmo-nos à evidência dos fatos e procurarmos alternativa. Mas, muitos preferiram continuar batalhando pelo inviável, ao invés de tentarem garantir o viável.

Agora, a ficha finalmente caiu para o Vannuchi: é importante que os Ustras e Curiós passem à História como condenados, mesmo que não cumpram pena. Assim, aqueles que no futuro sentirem-se tentados a seguir seu infame exemplo, terão motivos para temer que um Estado menos omisso os despache em tempo hábil para o cárcere. A impunidade total lega aos pósteros um precedente muito pior.

 

Também o filósofo Hélio Schwartsman veio, alguns dias atrás, ao encontro das minhas posições:

…a anistia de 1979 não resultou de uma negociação entre militares e oposição, mas foi imposta pelos poderosos da época. Pior, mesmo depois de se terem posto fora do alcance de punições, os militares continuaram sonegando informações sobre a estrutura de comando dos subterrâneos da ditadura e o paradeiro dos desaparecidos.

Um julgamento de verdade, que mobilizasse investigadores, promotores e advogados, seria uma ótima oportunidade para esclarecer tudo. Mesmo assim, penso que eventuais condenados nesse processo deveriam ser poupados da cadeia. Punições que chegam 40 anos depois dos fatos já não atingem os autores dos delitos, mas encontram pessoas totalmente distintas, tanto em suas células como em suas ideias…

 

Como qualquer dos antigos torturados, é-me impossível sentir a mais remota compaixão pelos “autores dos delitos”. Mas, em termos gerais, sempre acreditei que a prescrição dos crimes é uma prática indissociável da civilização. Então, entre minhas convicções e minhas dores, prefiro transcender as dores e manter as convicções.

 

E há um aspecto pragmático que os companheiros nunca levaram em conta: o povo brasileiro não veria com bons olhos o encarceramento de tais anciães, que a rede direitista exploraria  ad nauseam  em sua propaganda odiosa. Seria darmos um tiro no pé, com relação ao objetivo que deveríamos priorizar, qual seja o de conquistarmos as novas gerações para os ideais em nome dos quais fomos torturados (e muitos dos nossos, covardemente executados).

Precisamos desesperadamente ampliar nossas fileiras, se ainda pretendermos forjar a sociedade igualitária e livre que tínhamos (e temos!) em nossos corações. A tarefa ficou inconclusa, e ela é muito mais importante do que o acerto das contas do passado.

 

Finalmente, neste domingo (02) foi a vez do escritor Carlos Heitor Cony destacar o óbvio:

 

Não se trata de punir o sargento Azambuja, o comissário Peçanha, o policial Noronha. Todos os criminosos, de agora e de outros regimes de força, alegam que cumpriram ordens. O trabalho da Comissão da Verdade está pecando pela horizontalidade das culpas, quando o importante é exibir para a história a verticalidade dos crimes.

 

É uma tecla na qual tenho batido insistentemente: toda a cadeia de comando das Forças Armadas, começando pelos generais ditadores, tem de ser responsabilizada pelo arbítrio e suas consequências; e, quanto ao poder real que os personagens detinham para determinar os rumos da ditadura, muito mais culpado pela ocorrência de assassinatos e torturas foi o Delfim Netto (pois os signatários do AI-5 deram sinal verde para todas as atrocidades subsequentes) do que os meros paus mandados como o Ustra, o Curió e o delegado Fleury.

 

Quase ninguém mais atira na cara do Delfim Netto o seu pecado capital de haver retirado a coleira dos pitbulls, deixando-os livres para atacarem quem, como e quando quisessem. Eu consideraria uma paródia de justiça se o Ustra fosse processado criminalmente e o Delfim escapasse incólume.

 

E não me conformo em ver o Ustra tão execrado e o Delfim tão prestigiado, a ponto de haver sido uma espécie de  ghost minister  durante o Governo Lula.

Uma rua (que não é mais) chamada Torturador, por Celso Lungaretti

Meu artigo Uma Rua Chamada Torturador, de 27/02/2008 (abaixo reproduzido), agora tem um final feliz: os vereadores de São Carlos (SP) aprovaram, por unanimidade, a mudança do nome da Rua Sérgio Paranhos Fleury para Rua D. Helder Pessoa Câmara.

Personagens repulsivos, patéticos ou meramente insignificantes dão nome a uma infinidade de rodovias, ruas, avenidas e praças brasileiras. Antigamente, ao ver na placa uma homenagem descabida, eu até me indignava. Com o tempo, passei a encarar o fenômeno de forma mais condescendente, como parte da geléia geral brasileira, tão bem retratada pelos compositores do tropicalismo.

Mário Hato, que foi meu professor de Química no colegial e depois fez carreira política, explicou-me que há um acordo de cavalheiros no Legislativo: vereadores e deputados não vetam as propostas louvaminhas dos seus colegas, salvo em casos extremos – como o ocorrido quando o hoje deputado estadual Carlos Giannazi tentou fazer com que escolas da rede pública reverenciassem a memória dos revolucionários Carlos Marighella e Carlos Lamarca. A bancada de extrema-direita reagiu de forma exacerbada.

Para melhor acomodar vaidades póstumas, chega-se a atribuir vários nomes à mesma rua: para cada trecho, um homenageado. Se fosse descendente de algum desses pseudo-figurões, eu me sentiria ofendido: por que uns são lembrados ao longo de uma estrada inteira e outros têm de se contentar com míseras centenas de metros de uma via secundária?

Meu companheiro de lutas Eremias Delizoicov, que era menor de idade quando tomou a decisão de confrontar uma ditadura bestial e acabou sendo assassinado aos 18 anos, com 35 balaços cravados no corpo, virou nome de uma rua que ninguém conhece, onde ninguém sabe ir e que ninguém jamais viu.

É muito pouco para quem perdeu tanto. Tenho me empenhado em conseguir que, pelo menos, uma escola paulistana receba o nome do Eremias, mantendo viva a lembrança do seu sacrifício – até porque é como estudante que nós, os amigos de infância, nos recordamos dele. Está difícil.

Já a Câmara Municipal de Ribeirão Preto acaba de decidir que uma via pública desse simpático município paulista receberá o nome de Juarez Guimarães de Brito, com a seguinte inscrição na placa indicativa da rua: “patriota brasileiro assassinado pela Ditadura Militar”.

Fico pensando em como o bom Juvenal (o nome-de-guerra pelo qual o conhecíamos) receberia a qualificação de “patriota”. Era um internacionalista, adepto fervoroso da liberdade e justiça social para todos os povos e nações.

Enfim, vale a intenção e é merecidíssima a homenagem a quem deixou uma cátedra universitária para ser professor de humanidade na guerrilha. Sua obsessão em planejar exaustivamente as ações armadas, de forma a reduzir a um mínimo a possibilidade de derramamento de sangue, chegava a ser comovente.

Preferiu, até o fim, correr riscos do que causá-los a outros. Era quem mais se aproximava do homem novo que tínhamos como meta: o indivíduo livre da ganância e do egoísmo, totalmente voltado para o bem comum, que construiria a si próprio à medida que fosse construindo a sociedade nova.

LESA-HUMANIDADE – No outro extremo, a cidade paulista de São Carlos houve por mal ter uma rua com o nome de Sérgio Paranhos Fleury, o que levou os grupos Tortura Nunca Mais de SP e RJ a protestarem energicamente:

– Este delegado de Polícia, integrante do Esquadrão da Morte, em São Paulo nos anos de 1960, tornou-se um dos principais agentes do terrorismo de Estado que se instaurou em nosso país oficialmente após o AI-5. (…) Entendemos que tal “homenagem” produz uma memória que enaltece os crimes de lesa-humanidade cometidos por estes agentes.

Trocando em miúdos: atuando no radiopatrulhamento de São Paulo, Fleury organizou um grupo de extermínio semiclandestino chamado Esquadrão da Morte, que, aparentemente, queria livrar a sociedade de suas ervas daninhas.

Requisitado pelo Departamento Estadual de Ordem Política e Social, alcançou repercussão nacional ao comandar a operação que resultou na morte do guerrilheiro Carlos Marighella. Graças à censura, a opinião pública não foi informada das torturas brutais mediante as quais chegou ao seu alvo, nem que organizou a emboscada de forma tão canhestra que o fogo cruzado acabou matando também uma policial e o motorista de um veículo que trafegava na região.

Responsável por um festival de horrores, incluindo a execução de prisioneiros como Devanir José de Carvalho, Fleury ainda cedia seu sítio como aparelho clandestino para os serviços sujos da repressão. Por lá passou Eduardo Leite, o Bacuri, no longo calvário que antecedeu seu assassinato.

Apesar das evidências gritantes da responsabilidade de Fleury nos crimes do Esquadrão da Morte, a ditadura militar não deixava que o bravo promotor Hélio Bicudo o colocasse na cadeia. Chegou até a criar uma lei com o único objetivo de impedir que, pronunciado, Fleury tivesse de aguardar preso o julgamento.

O guarda-chuva protetor só foi retirado quando Bicudo conseguiu provar que Fleury não eliminava marginais em benefício da sociedade, mas sim para fazer jus às recompensas de um grande traficante, empenhado em livrar-se da concorrência. Moralistas, os generais admitiam acobertar um justiceiro, mas não um capanga da contravenção.

Para piorar, com o fim da luta armada haviam terminado também as recompensas que os empresários direitistas ofereciam pela prisão ou morte dos revolucionários; e os rapinantes da repressão já não podiam mais apropriar-se dos bens de suas vítimas, outra das fontes de renda que lhes permitira viver muito acima de suas posses.

Fleury, dono de uma lancha, teria morrido ao cair na água. Falou-se muito em queima de arquivo: sem conseguir mais sustentar o vício que teria (cocaína), ele estaria exigindo dinheiro de seus antigos financiadores para não trombetear o que sabia. Como entre eles havia até sádicos que atuaram como torturadores voluntários de presos políticos, dá para imaginar o efeito devastador de uma chantagem dessas… e as prováveis conseqüências.

Nem mesmo os neo-integralistas gostam de mirar-se num exemplo desses, preferindo esquecer que Fleury existiu. Os vereadores de São Carlos provavelmente não sabiam de quem se tratava.

Independentemente do desfecho deste episódio, será sempre uma gota d’água no oceano. Uma busca no Google revela a existência, p. ex., de várias ruas com o nome de Filinto Muller, o torturador-símbolo da ditadura getulista, que chegava a ser comparado aos carrascos da Gestapo.

Para não falar das avenidas Presidente Médici que há no País inteiro, homenageando quem nunca foi presidente eleito pelo povo, mas sim ditador empossado pelas baionetas, sendo responsável pelo período mais tenebroso da História brasileira.