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Chile condena 9 matadores de Victor Jara. Brasil não está nem aí para os assassinos de Vladimir Herzog

Herzog, assassinado no DOI-Codi em outubro de 1975

Dentre as centenas de cidadãos idealistas que, mesmo não tendo pegado em armas contra as ditaduras chilena e brasileira dos anos de chumbo, foram por elas bestialmente assassinados, os mais conhecidos eram, respectivamente, o músico Victor Jara e o jornalista Vladimir Herzog. 

Enquanto nove militares responsáveis pela execução do primeiro acabam de ser condenados exemplarmente pela Justiça de lá, os carrascos de Herzog continuam desfrutando a impunidade eterna que lhes foi concedida pelo Legislativo e o Judiciário daqui.

Apesar da coragem e combatividade da viúva de Vladimir Herzog, as únicas vitórias de Clarice na Justiça brasileira foram conseguir em 1978 que a União fosse responsabilizada pela morte; e, em 2013, que se emitisse um novo atestado de óbito, com a causa mortis sendo alterada de “asfixia mecânica por enforcamento” para “lesões e maus tratos”.

Já a Corte Interamericana de Direitos Humanos aceitou a queixa de Clarice e iniciou o julgamento em maio de 2017, sem prazo para terminar. Mas, embora ela integre o sistema de proteção dos direitos humanos da OEA, o governo brasileiro não está obrigado a acatar a sentença que emitirá. Foi o que fez com a contundente decisão da corte, de novembro de 2010, sobre os extermínios no Araguaia. O peso moral de sua conclusão, contudo, será enorme.

Jara, assassinado no Estádio do Chile em setembro de 1973

CONDENADOS POR SEQUESTRAR, MATAR E ACOBERTAR A EXECUÇÃO DE JARA

“O ministro encarregado dos processos de direitos humanos Miguel Vázquez Plaza condenou nove membros reformados do Exército por sua responsabilidade nos homicídios de Víctor Jara Martínez e do ex-diretor de prisões Littre Quiroga Carvajal, ocorridos em setembro de 1973 em Santiago”, informa comunicado desta 3ª feira (03/07) do Poder Judiciário chileno.

Vázquez condenou a 15 anos de prisão os oficiais Hugo Sánchez Marmonti, Raúl Jofré González, Edwin Dimter Bianchi, Nelson Haase Mazzei, Ernesto Bethke Wulf, Juan Jara Quintana, Hernán Chacón Soto e Patricio Vásquez Donoso como autores dos dois crimes.

Os militares –com patentes de tenente, coronel e brigadeiro– também receberam três anos de prisão pelo sequestro das duas vítimas.

O oficial Rolando Melo Silva foi condenado a cinco anos de prisão por encobrir os homicídios, e a 61 dias pelo acobertamento dos sequestros.

NA AUTÓPSIA SE ENCONTRARAM 44 BALAS CRAVADAS NO SEU CORPO

Um dos principais expoentes da chamada nueva canción chilena, movimento musical engajado às causas populares, Jara foi detido em 12 de setembro de 1973, um dia após a derrubada e assassinato do presidente socialista Salvador Allende. 

Preso na Universidade Técnica do Estado, da qual era professor, foi conduzido ao Estádio Chile, convertido em campo de concentração e num dos maiores centros de detenção e tortura da ditadura de Pinochet. Lá estavam 5 mil prisioneiros, aproximadamente.

Havia controvérsias quanto às torturas sofridas antes de sua execução a tiros, quatro dias depois. No filme Chove sobre Santiago (d. Helvio Soto, 1975), ele é desafiado por um oficial a interpretar alguma de suas canções de protesto e o faz, cantando a Venceremos, sob os olhares de todos os presos sentados na arquibancada; matam-no, então, a coronhadas. 

Correu também o boato de que ele haveria tido as mãos amputadas, mas, quando exumou-se o corpo de Jara em junho de 2009, ficou provado que suas mãos foram é esmagadas por golpes de coronha. 

A causa da morte foram os tiros disparados contra ele (havia nada menos que 44 balas cravadas no seu corpo!). A autópsia também revelou que vários ossos estavam fraturados.

Em 2016, um tribunal da Florida julgou um processo aberto por parentes de Jara (a viúva Joan, a filha Amanda e a enteada Manuela) com base na Lei de Proteção à Vítima de Tortura dos EUA, que permite ações civis contra torturadores.

O ex-militar chileno Pedro Paulo Barrientos Nuñez, que para lá emigrou em 1990 e acabou adquirindo a cidadania estadunidense, foi condenado a indenizar em US$ 28 milhões a família.

Foi decisivo o testemunho de um antigo subalterno de Barrientos, o soldado José Navarrete, que relatou: “Ele se vangloriara de ter matado Víctor Jara. Costumava mostrar a pistola e dizer: ‘Matei Víctor Jara com isto’.

Outro ex-soldado do regimento comandado por Barrientos, Gustavo Baez, disse que teve de empilhar dezenas de cadáveres em caminhões. 

Também depuseram dois antigos prisioneiros, que viram Jara ser reconhecido pelos militares, separado dos outros e violentamente espancado. 

Um deles, Boris Navia, contou que Jara foi exibido como um troféu a outros oficiais, tendo um deles lhe esmagado a mão e partido o braço, enquanto dizia: “Nunca mais vais poder tocar guitarra”.

Dilma e o PT já travam a guerra da partilha dos bens

Quando tinha o jornalismo como profissão, ouvia uma campainha soando em minha mente nos momentos em que um entrevistado tentava me manipular. Então, não levava em conta apenas o que ele estava dizendo, mas refletia sobre qual seria o porquê de ele dizer tal coisa. Alterar o comportamento dos mercados em favor de alguém? Detonar algum adversário nas escaramuças de bastidores? Desviar as atenções de um erro ou falcatrua em que estivesse envolvido?

Se há algo de que me orgulho na minha carreira é nunca ter sido ingênuo e jamais haver deixado que algum me(r)dalhão da política ou das finanças me usasse como correia de transmissão de versões que tentava plantar na imprensa. E também recusava as propostas indecentes que me eram feitas abertamente. Preferi dormir bem do que desfrutar as vantagens e regalias que obteria se fosse mais flexível. Cada um sabe o que quer na vida.

A campainha tocou quando o PT lançou uma declaração oficial de que não estava abandonando Dilma Rousseff. Ora, por mais gritantes que sejam as evidências de que seu afastamento não terá volta, caberia ao partido, noblesse oblige, apoiá-la até o fim, afundando junto com a capitã. Se vem a público declarar que está fazendo o que nada seria além de sua obrigação… é porque, obviamente, não o está fazendo. 

Enquanto isto, Dilma solta os cachorros em cima do partido na entrevista que concedeu à revista Fórum. Está lá:

Eu acredito que o PT precisa passar por uma grande transformação. Primeiro, uma grande transformação em que se reconheçam todos os erros que cometeu do ponto de vista da questão ética e da condução de todos os processos de uso de verbas públicas.

Ou seja, está sendo impichada por crime de responsabilidade e insinua que a total responsabilidade cabe ao partido, que prevaricava enquanto ela tocava harpa com os anjos. É o mesmo que dizer: “As acusações procedem, mas não contra mim. Foi o partido que cometeu todos os deslizes do meu governo”.

Ela também aponta sua metralhadora giratória em várias outras direções, menos numa: a sua. Pois, embora o modelo de governo adotado nas duas gestões do Lula estivesse esgotado, foi a Dilma quem chutou o pau da barraca.

Tornara-se impossível proporcionar recordes de faturamento mês após mês para os grandes bancos e, ao mesmo tempo, ir aumentando homeopaticamente a quota de migalhas para os andares de baixo. 

Se a Dilma mantivesse a política econômica do Lula, haveria recessão, mas muito menos aguda do que aquela que acabou ocorrendo.

Se ela se mirasse no exemplo da Wanda, romperia a aliança com o grande capital e apostaria as suas fichas nos explorados. 

[Aumentando, p. ex., substancialmente a tributação das grandes fortunas, que sempre foi ridícula (de tão irrisória!) no Brasil. Precisaria, é claro, organizar as massas para que estas lhes dessem sustentação, uma lição de casa que deixou de ser feita nos oito anos do Lula. Mas, teria levado as lutas políticas e sociais do Brasil a um novo patamar e, ainda que fosse derrubada, o seria como titã (a exemplo do Allende) e não enxotada por um piparote do Congresso.]

Em vez disso, ela preferiu ir buscar no fundo do baú o nacional-desenvolvimentismo da década de 1950, tentando alavancar o crescimento econômico com investimentos estatais. Se isto não funcionou com o Getúlio Vargas, cuja estatura política era infinitamente maior e que tinha muito mais apoio dos trabalhadores, como poderia dar certo em plena época de globalização dos mercados e com timoneira tão medíocre? Não deu outra: ela afundou de vez a economia e praticamente quebrou a Petrobrás.

O segundo maior motivo do impeachment decorreu do primeiro: quando lhe caiu a ficha das lambanças que cometera e da terrível recessão que incubara para o mandato seguinte, ela quis a todo custo se reeleger, na esperança de consertar os estragos e salvar sua imagem.

Recorreu ao pior estelionato eleitoral de todos os tempos no Brasil, obteve sua vitória de Pirro e… simplesmente, não soube o que fazer com ela! Passou 16 meses sem conseguir tomar as rédeas da situação e imprimir um rumo à economia. Como a natureza e a política abominam o vácuo, o sistema tratou de preenchê-lo com o Temer. 

De resto, o subtexto das últimas movimentações do PT e da Dilma é este: o casamento está rompido e os antigos cônjuges já começaram a disputar encarniçadamente os bens outrora comuns.

Os grãos petistas estão carecas de saber que o mandato presidencial daqui a algumas semanas virará cinzas e, retórica de conveniência à parte, querem mais é descolar a imagem do partido da de Dilma. Sabe-se que vários candidatos do PT às eleições municipais estão preferindo ter no seu palanque o Demo com chifre e rabo do que a afastada… 

Na guerra da partilha dos bens, aposto no PT. Dilma se tornará irrelevante instantaneamente, no exato momento em que a despejarem do Palácio da Alvorada, enquanto o partido definhará aos poucos, conforme novas forças forem emergindo na esquerda, com propostas mais ousadas… e revolucionárias! 

Apostando na fisiologia, Dilma se tornará refém dos ratos.

O PT moveu céus, terras, cargos e recursos públicos na tentativa de impedir que a presidência da Câmara Federal passasse às mãos do rebelde Eduardo Cunha, do PMDB-RJ, tido como talvez favorável (não há certeza disto) à abertura de um processo de impeachment contra Dilma Rousseff. 

Sofreu acachapante derrota. E já se comenta que aumentará o investimento em fisiologia, apostando alto para evitar o que pode ser apenas um fantasma a arrastar correntes nos seus pesadelos.


Mas, bem real é a lição deixada pela batalha perdida: quem acredita que conseguirá atravessar uma tempestade confiando em ratos, esquece que os roedores são os primeiros a abandonar barcos que estejam ou possam estar afundando. Então, por mais queijo que lhes dermos, na hora H poderão se bandear para o lado de um inimigo que ofereça mais.


Melhor fará Dilma, portanto, se não aumentar os lances nesse leilão de mafuá, mas, pelo contrário, confiar a sobrevivência do seu governo ao povo, reconquistando o apoio das ruas ao fazer o que o PT sempre prometeu que faria: o saneamento dos costumes políticos brasileiros.


Ou passará o restante do seu segundo mandato como refém da rataria… se não cair de podre pelo cominho.


Para quem é ou foi de esquerda,  mais vale cair lutando, com a dignidade de um Salvador Allende, do que ser despachado com um pé na bunda, como o Fernando Collor.

Obs.: escrito e divulgado o texto acima, fiquei com uma incômoda sensação de déjà vu, como se algo me houvesse escapado. Até que a ficha caiu: tratava-se de uma possível semelhança com a manobra executada por outros ratos quando a ditadura militar chegava ao fim.


Em 1984, Tancredo Neves  tramou com parlamentares governistas, até então repulsivos capachos dos fardados, uma jogada para todos se darem bem na transição.


Primeiramente os ditos cujos (talvez o termo sujos lhes caia melhor…) ajudaram, com seus votos, a derrotar a emenda Dante de Oliveira, pois o restabelecimento das eleições diretas só beneficiaria um rival comum: Leonel Brizola, o franco favorito nas urnas.

Depois, desertaram do partido governamental (o PDS) e, sob a nova identidade de PFL, deram a Tancredo os votos necessários para ele vencer a disputa com Paulo Maluf no colégio eleitoral. 


Como recompensa estipulada, tornaram-se sócios da Nova República. Como recompensa imprevista, a Presidência lhes caiu no colo, pois um dos seus, José Sarney (arenoso até a medula, embora tenha escolhido o PMDB como seu novo abrigo), a acabou herdando com a morte de Tancredo.


O que acabamos de assistir na eleição da Câmara pode ter sido outro êxodo de ratos para garantirem sua continuidade no poder se este mudar de mãos. 


E aí, claro, Cunha não seria nenhum rebelde, mas sim o pé que o PMDB fincou no governo que resultará de um eventual impeachment de Dilma, enquanto Michel Temer continua com seu pé bem fincado no governo atual.


Não esqueçam que estamos falando de ratos.

Como morreu Allende?

No próximo dia 23 serão exumados os restos mortais do ex-presidente chileno Salvador Allende, para que seja definitivamente esclarecido se ele cometeu suicídio ou foi assassinado pelos golpistas que o derrubaram do poder em 1973.

As perícias foram determinadas pelo juiz encarregado do processo, Mario Carroza, que prometeu: “Tudo será revelado ao público, como deve ser”.

A versão oficial é de que Allende teria se matado com o fuzil recebido de presente de Fidel Castro.

Sempre considerei mais compatível com o personagem a forma como o cineasta chileno Helvio Soto mostrou seu momento final, no excelente filme Chove sobre Santiago (1976): atirando a esmo nos invasores do Palácio de La Moneda, apenas para morrer lutando ao invés de ser capturado com vida.

Agora saberemos o que realmente aconteceu.

COMPAÑERO PRESIDENTE

Salvador Allende será sempre lembrado como o  compañero presidente.

Pois, conforme declarou no momento de sua vitória eleitoral, mais do que presidente, continuaria sendo  um militante revolucionário, como todos os seus companheiros de jornada na luta por um Chile com liberdade e justiça social.

Naquele terrível 11 de setembro de 1973, Allende não aceitou curvar-se aos fascistas de Pinochet, preferindo a morte digna à fuga indigna que lhe ofereceram: a possibilidade de decolar para outro país juntamente com todos os correligionários por ele escolhidos que coubessem no avião.

Então, as palavras que endereçou ao povo pelo rádio, na iminência do martírio, inspirarão para sempre os combatentes por um mundo redimido do pesadelo capitalista:

“Colocado numa transição histórica, pagarei com minha vida a lealdade do povo. E lhes digo: tenho certeza de que a semente que entregaremos à consciência de milhares e milhares de chilenos não poderá ser extirpada definitivamente.

Trabalhadores de minha Pátria! Tenho fé no Chile e em seu destino. Outros homens se levantarão depois deste momento cinza e amargo em que a traição pretende se impor. Sigam vocês sabendo que, bem mais cedo do que tarde, vão abrir-se de novo as grandes alamedas por onde passará o homem livre, para construir uma sociedade melhor”.

Ah, como eu gostaria que houvéssemos tido também um Allende em 1964!

O destino mais próximo foi o do comandante Carlos Lamarca: ele resistiu aos insistentes apelos dos companheiros que o tentaram convencer a  salvar-se, buscando refúgio no exterior, quando a luta armada marchava visivelmente para um final trágico.

Optou por continuar tentando até o fim viabilizar a guerrilha, fiel ao seu compromisso de  vencer ou morrer.

Galeria Celso Lungaretti dos grandes nomes da História

Rei Leônidas: comandou os 300 guerreiros espartanos que resistiram até a morte ao poderoso exército persa do rei Xerxes.

Jesus Cristo: sabendo que teria como destino morrer na cruz, aceitou sacrificar-se em nome de suas crenças.

Filósofo Giordano Bruno: preso e torturado pelo Santo Ofício por mais de sete anos, recusou salvar-se com uma tímida abjuração, preferindo morrer, porque, segundo suas palavras, havia “sangue demais” nas mãos dos inquisidores.

General Charles Gordon: era uma lenda viva no Oriente quando decidiu permanecer em Khartoum, cercada pelos fanáticos guerreiros do Mahdi, na esperança de que os britânicos, intervindo para salvar sua vida, evitassem o massacre da população. A cidade caiu e ele morreu.

Presidente Getúlio Vargas: na iminência de sofrer impeachment, reagiu com o suicídio e uma dramática carta-testamento que motivou as forças populares a reagirem, impedindo a tomada do poder pelos conspiradores direitistas.

Presidente Charles De Gaulle: fazia questão de, durante os atentados que sofria dos terroristas da OAS (inconformados com a retirada dos colonialistas franceses da Argélia), mostrar total indiferença às balas que zuniam a seu redor.

Comandante Joaquim Câmara Ferreira: barbaramente torturado durante a ditadura varguista, garantiu que isto nunca se repetiria. Preso no regime militar, atracou-se com os torturadores, confrontando-os vigorosamente até forçar um ataque cardíaco. Morreu cumprindo com sua palavra.

Companheiro Presidente Salvador Allende: recusou a oferta dos golpistas de Pinochet, que lhe permitiriam sair do Chile, num avião, com os seguidores que escolhesse. Preferiu morrer de arma na mão, enfrentando os fascistas que invadiam a sede do governo.

Bobby Sands: militante do Exército Repúblicano Irlandês (IRA) que morreu após uma sustentar uma greve de fome por 66 dias contra o jugo inglês.

José Serra: interrompeu sua campanha presidencial, na reta final, para recuperar-se do terrível trauma que sofreu, ao ser atingido por uma bolinha de papel e um rolinho de fita crepe.

A resposta do Governo Serra ao protesto diante do DOI-Codi: inquérito policial (por Celso Lungaretti)

“Me mandaron una carta
por el correo temprano,
en esa carta me dicen
que cayó preso mi hermano,
y sin compasión, con grillos,
por la calle lo arrastraron, sí.

“La carta dice el motivo
de haber prendido a Roberto
haber apoyado el paro
que ya se había resuelto.
Si acaso esto es un motivo
presa voy también, sargento, si.”
(“La Carta”, Violeta Parra)

Se o governador de São Paulo fosse um companheiro de ideais, eu lhe escreveria uma carta aberta, sem o mínimo receio de que tão alta autoridade pudesse se lixar para um mero escriba virtual.

Tenho sempre na lembrança o magnífico exemplo de Salvador Allende: ao ser eleito presidente do Chile, afirmou aos militantes que, para eles, jamais seria Sua Excelência, mas sim o companheiro presidente.

Mudam os tempos, mudam os homens.

Hoje, o ex-presidente da União Nacional dos Estudantes não dá a mínima para os que continuam fiéis às bandeiras que o levaram ao exílio, quatro décadas atrás.

Em outubro do ano passado, enderecei-lhe uma carta para denunciar que a Rota, unidade truculenta da Polícia Militar paulista, continuava ufanando-se em seu espaço virtual de haver secundado as Forças Armadas em atentados contra a democracia cometidos no período 1964/85.

O José Serra da UNE certamente ficaria indignado com esses PMs que, em plena democracia, fazem questão de lembrar que ajudaram a depor um presidente legítimo e a esmagar os movimentos de resistência à tirania.

O José Serra do Poder considerou esse assunto tão irrelevante que a única resposta do seu governo acabou sendo a dada por um tenente à reportagem da Brasil de Fato, em janeiro, prometendo uma “limpeza geral” na página da Rota.

Foram palavras ao vento, pois a página permanece inalterada até hoje:

“Marcando, desde a sua criação, a história desta nação, este Batalhão teve seu efetivo presente em inúmeras operações militares, sempre com participação decisiva e influente, demonstrando a galhardia e lealdade de seus homens, podendo ser citadas, dentre outras, as seguintes campanhas de Guerra: (…) Revolução de 1964, quando participou da derrubada do então Presidente da República João Goulart, dando início à ditadura militar com o Presidente Castelo Branco; Campanha do Vale do Rio Ribeira do Iguape, em 1970, para sufocar a Guerrilha Rural instituída por Carlos Lamarca…”

CESARE BATTISTI É NEGADO DUAS VEZES – Também no Caso Cesare Battisti, verdadeiro divisor de águas entre os cidadãos com espírito de justiça e os reacionários mesmerizados pelas razões de estado, as reações foram as mais decepcionantes.

Primeiramente, a declaração de Serra quando o ministro Tarso Genro acabava de conceder o refúgio humanitário a Battisti, preferindo ficar contra o governo petista do que a favor da soberania nacional, atingida pelas ultrajantes pressões italianas: “Em princípio, não estou de acordo, pelos antecedentes que vi na imprensa. Não olhei os processos, mas me parece um exagero o asilo dado”.

Depois foi o consentimento que, calando-se, deu a uma inaceitável declaração do seu secretário de Justiça Luiz Antonio Marrey, que melhor caberia na boca de alguma viúva da ditadura: “Foi absolutamente equivocada a decisão de dar refúgio político a um assassino condenado pela Justiça italiana”.

Faço questão de repetir aqui o que escrevi quando o Governo Serra negou Battisti pela segunda vez, aproximando-se da marca célebre de Pedro:

“Se tudo que os estados afirmam sobre seus desafetos deve ser tomado como verdade absoluta, erraram a França e o Chile ao não entregarem o subversivo Serra para os torturadores brasileiros.

”E se a solidariedade entre os combatentes das causas justas virou letra morta, errou o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso que, com suas gestões desesperadas, salvou Serra da morte quando do pinochetazzo.”

“SUSPEITOS”: IVAN SEIXAS E IVAN VALENTE – Face a esses precedentes, bem como à emblemática atitude de tratar os movimentos estudantis e sociais como caso de polícia, não nos deve surpreender que, reeditando as práticas da ditadura militar, o Governo Serra tenha instaurado inquérito para apurar responsabilidades pela manifestação realizada em 24 de agosto de 2008, diante da delegacia paulistana que, no período 1969/1976, abrigou a Operação Bandeirantes e seu sucessor, o DOI-Codi/SP.

Para quem não sabe, tratou-se de um dos mais nefandos centros de torturas do período totalitário, responsável pelo assassinato de 47 militantes da resistência à ditadura.

Dos 6.897 cidadãos que passaram por suas garras, a grande maioria sofreu as torturas de praxe (espancamentos, choques elétricos, pau-de-arara, afogamento, asfixia, etc.), acrescida de uma exclusividade do local: a cadeira-do-dragão, cujos assento e encostos para os braços e cabeça eram revestidos de metal, para aumentar a potência das descargas que a vítima, amarrada, recebia.

O episódio atual foi enfocado na edição de março/2009 da Revista Adusp ( http://www.adusp.org.br/revista/44/r44a02.pdf ), valendo a pena citar alguns trechos do excelente relato:

“Naquela tarde de domingo, cidadãs e cidadãos de todas as idades marcharam pela rua e depois fizeram pinturas no chão, para lembrar que durante a Ditadura militar funcionou ali a infame unidade militar que ficou conhecida como DOICODI do II Exército.

“Pois bem: desde o dia seguinte a passeata tornou-se objeto do inquérito policial 609/08, que corre no próprio 36º DP. Os manifestantes teriam danificado espaço público e infringido o artigo 65 da lei 9.605/1998, segundo o qual constitui crime sujeito a pena de até um ano de detenção ‘pichar, grafitar ou por outro meio conspurcar edificação ou monumento urbano’.

“Paulo Fávero, estudante de Artes Plásticas da USP, foi intimado a depor. ‘Os manifestantes pediam para que aquele lugar não continuasse sendo o 36º DP, mas sim um espaço da memória e da resistência’, explicou Fávero (…) ‘Os advogados tiveram acesso ao inquérito antes do meu depoimento e constava lá que eu era suspeito de mandante do ato e que sou representante da Liga Bolchevique Internacionalista (LBI), o que é uma mentira. Eu não sou membro da LBI, e não sei qual seria a relevância se eu fosse da LBI’…

“ (…) No inquérito também são citados Ivan Seixas; Darlan dos Reis, residente no Ceará, que não compareceu ao ato, mas divulgou-o em seu blogue; e o deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP), que durante o ato ofereceu testemunho como ex-preso político. O inquérito é instruído com diversas fotografias da manifestação.”

Não escondo que fui o primeiro a propor uma manifestação de protesto diante do DOI-Codi/SP, em 2004, quando quase nada se falava sobre as atrocidades do período ditatorial e o Fórum Permanente dos Presos Políticos de São Paulo tentava recolocar o assunto em evidência no noticiário. A confissão está no meu livro Náufrago da Utopia (Geração Editorial, 2005):

“…aproximando-se o 40º aniversário do golpe militar, sugiro uma iniciativa ousada para o Fórum conseguir, finalmente, espaço na imprensa: um ato público diante da delegacia em que funcionou a Oban, homenageando os companheiros torturados e mortos naquele órgão infame. O Tortura Nunca Mais certamente poderá fornecer a lista dos que foram ali assassinados, Vladimir Herzog e tantos outros. Isto teria impacto e dramaticidade suficientes para atrair muitos jornalistas.”

Não participei do ato de protesto realizado quatro anos depois porque um valor mais alto se alevantou: minha filhinha de quatro meses estava adoentada.

Mas, se até um blogueiro do Ceará está na alça de mira da polícia democrática do Serra, é justo que eu assuma minhas responsabilidades como instigador.

Sempre me sentirei honrado em estar ao lado dos Ivans Seixas e Valente, nas batalhas contra o autoritarismo redivivo.