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Por que Serra é o herdeiro político da ditadura

É preciso dar nomes aos bois. Os brasileiros não têm memória curta, mas existe aqui uma cultura política – reforçada na esfera midiática – de enfatizar posições circunstanciais mais que campos históricos. Serra fala de “biografia”, mas omite as biografias de quem o apóia. Dilma, também, enfatiza mais sua trajetória individual de trabalho do que o conjunto político que apóia seu projeto. E basta passar em revista um “quem é quem” da política brasileira desde o regime militar para deixar bem claro quem está do lado de quem, e que setores da sociedade cada um representa.

A ditadura militar brasileira (1964-1985) não foi homogênea nem no corte temporal, nem no corte ideológico. Foi fruto de uma conjunção de interesses que se aliaram na conjuntura de 1964, mas depois de alteraram, mudaram de lado e, por fim, voltaram a se unir em alianças estratégicas. Caiu quando esses interesses lhe tiraram a base, tendo ainda por pressão um cenário externo, na América Latina dos anos 1980, de re-civilização e paulatina redemocratização.

Em março de 1964, esses interesses convergentes eram, à frente de todos, a burguesia industrial urbana (acima de tudo, paulista), grandes proprietários de terra (no nordeste, norte e centro-oeste), classes médias conservadoras do centro-sul e uma vanguarda reacionária dos militares anti-nacionalistas. A Igreja, claro, também desempenhou papel importantíssimo, ainda que membros das bases eclesiásticas tenham cedo articulado uma resistência da esquerda católica, principalmente em Minas Gerais, como foi o caso de Frei Betto, Herbert de Souza e Dilma Rousseff.

No ano do golpe, a burguesia industrial, a oligarquia rural e os anti-nacionalistas estavam reunidos no partido União Democrática Nacional, a UDN. Já outros oligarcas e os antigos burocratas (seria eufemismo dizer “gestores públicos”) do período getulista se agrupavam no Partido Social Democrático, o PSD. E os getulistas (ou, como se diz em São Paulo, “varguistas”) eram membros do Partido Trabalhista Brasileiro, o PTB. Havia ainda partidos menores à esquerda, como o PSB e o PCB (ilegalizado desde 1947), e à direita, como o PSP de Adhemar de Barros, e o PRP do integralista (fascista) Plínio Salgado.

Entre udenistas mais destacados estavam Carlos Lacerda, Sandra Cavalcanti, Tenório Cavalcanti, Amaral Neto (RJ), Magalhães Pinto, Pedro Aleixo, Aureliano Chaves, Milton Campos (MG), João e Otávio Mangabeira, Juracy Magalhães (BA), Arnon de Melo (pai de Fernando Collor de Melo), Teotônio Vilela, Rui Palmeira (AL), José Américo (PB), João Agripino Maia (PB e RN), Aluísio Alves (RN, rival do anterior), Virgílio Távora (CE; sobrinho de Juarez Távora, tenentista, aliado histórico e depois inimigo de Getúlio), Flores da Cunha (RS; outro ex-getulista rompido), Petrônio Portela (PI) e José Sarney (MA).

Sua ideologia era baseada num forte apoio à iniciativa privada, aliança com empresas estrangeiras, rejeição ao nacionalismo e ao sindicalismo e um forte conservadorismo católico. Foram radicalmente contra a criação da Petrobrás, e defendiam que o petróleo brasileiro deveria ser entregue a companhias estrangeiras como a Esso, a Shell e a Texaco.

Já os pessedistas eram liderados por Juscelino Kubitschek (que já tinha sido presidente) e tinham ainda Amaral Peixoto, Negrão de Lima, Henrique Dodsworth, Miguel Couto, Pedro Calmon (RJ), Benedito Valadares (o “Governador Valadares”, que deu origem à expressão “Mas será o Benedito?”), Gustavo Capanema, Cristiano Machado, Israel Pinheiro, José Maria Alkmin (MG), Fernando de Souza Costa, Ranieri Mazzilli, Ulisses Guimarães (SP), Agamenon Magalhães, Barbosa Lima Sobrinho (PE), Silvestre e Ismar Góis Monteiro (AL), Armando Falcão (CE), Renato Archer (MA), Álvaro Maia (AM), Pedro Pedrossian (MS), Moisés Lupion (PR), Walter Só Jobim (avô de Nelson Jobim) e João Neves da Fontoura (RS), além de militares como Henrique Teixeira Lott (nacionalista) e Osvaldo Cordeiro de Farias (anti-nacionalista).

Apesar de a UDN e o PSD serem fracos em São Paulo (dominado pelo “ademarismo”), representavam nacionalmente os mesmos interesses de famílias paulistas de empresários, industriais e políticos, como os Matarazzo, os Simonsen, os Safra, os Ermírio de Moraes (Grupo Votorantim), os Camargo e os Corrêa (grupo Camargo Corrêa), os Mesquita, os Street, os Lafer e os Klabin, de quem tinham apoio. Em outros estados, ainda, tinham apoios de famílias burguesas ou de oligarquias seculares como os Melo Franco (MG), os Guinle, os Mayrink Veiga, os Steinbruch (RJ), os Mariani (BA), os Pompeu de Souza, os Jereissati (CE), os Bornhausen (SC) e os Gerdau-Johannpeter (RS).

Vários dos nomes citados acima foram ministros da ditadura, governadores e prefeitos nomeados ou eleitos por votação indireta, deputados e senadores no regime militar. Poucos, como Ulisses e Barbosa Lima, passaram para a oposição logo de cara. Mas, pelo menos no início, todos eles apoiaram o golpe.

Com a tomada do poder à força pelos militares, os nacionalistas, socialistas, comunistas e esquerdistas de todo tipo, além de alguns políticos de direita mas considerados potenciais adversários – como Juscelino, Lacerda e Adhemar – foram perseguidos, presos, cassados, banidos (expulsos do país) ou assassinados. Sobrou muito pouca gente no PTB (todos os ministros de João Goulart foram declarados inelegíveis), e as pessoas do PSB, PCB e outros tiveram de ficar escondidas – a “clandestinidade”.

A UDN e o PSD foram os partidos que apoiaram a ditadura abertamente no início. Mas, em 1965, houve eleições estaduais e esses partidos foram derrotados em postos-chave, como o Rio de Janeiro (então Estado da Guanabara) e Minas. Como em qualquer ditadura, os militares não tinham tolerância à oposição e baixaram o Ato Institucional Nº2 (AI-2), cassando todos os partidos (inclusive o PSD e a UDN) e criando regras tão exigentes para a formação de novos partidos que, na prática, só puderam ser criados dois: a Aliança Renovadora Nacional (ARENA) e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB).

Os políticos da UDN migraram em peso para a ARENA, partido criado pelos políticos civis para apoiar a ditadura dos militares. Entre as principais lideranças do partido estavam Francelino Pereira e José Sarney. Quase toda a UDN mineira foi para a ARENA. Além dos udenistas históricos, houve arenistas de origem empresarial ou técnica que foram ascendendo na burocracia de governos e órgãos públicos graças a nomeações (porque o AI-3, em fevereiro de 1966, acabou com a eleição direta para governador e prefeito). Entre eles, estavam Antônio Carlos Magalhães (BA; sem parentesco com Juracy), Paulo Maluf, Paulo Egydio (SP), Hélio Garcia e Eliseu Resende (MG). Entre os membros da direita ideológica estavam Célio Borja (RJ) e Abreu Sodré (SP), o líder estudantil Marco Maciel (PE), o militar Mário Andreazza, o fascista Filinto Müller (ex-chefe de polícia de Getúlio e o homem que mandou Olga Benário para os nazistas), além de economistas e banqueiros como Olavo Setúbal, Delfim Netto, Roberto Campos, Pratini de Moraes e Mário Henrique Simonsen.

Já o PSD ficou mais dividido: a maioria foi para a ARENA, mas parte expressiva foi para o MDB, de oposição “comportada” à ditadura, e formado com remanescentes do PTB getulista. Entre os ex-pessedistas, estavam Tancredo Neves (MG), Ulisses Guimarães (SP), Amaral Peixoto e Chagas Freitas (RJ). José Maria Alkmin (sem parentesco com Geraldo Alckmin), amigo de Juscelino, do PSD, foi para a ARENA e acabou escolhido como vice de Castelo Branco, o primeiro presidente da ditadura. Assim como a ARENA, o partido conta com quadros que ascendem em administrações locais, como Mario Covas, Orestes Quércia (SP), José Richa (PR), Miro Teixeira (RJ), Paulo Brossard, Pedro Simon (RS) e Renan Calheiros (AL). Houve ainda correntes “janistas”, paulistas ligados a Jânio Quadros, como Franco Montoro e o brigadeiro José Vicente Faria Lima.

À parte da política formal, sem poder concorrer aos cargos e sob ameaça de serem presos, torturados e mortos, estavam os políticos da esquerda. Contavam-se tanto a esquerda tradicional, fosse getulista (Leonel Brizola) ou socialista (Miguel Arraes, Francisco Julião, Ricardo Zarattini), além do PCB, chamado de Partidão (Luís Carlos Prestes, Gregório Bezerra). Todos estes foram para o exílio. Quem ficou foi obrigado a se manter na oposição intelectual, como diversos acadêmicos (Fernando Henrique Cardoso, Florestan Fernandes, Francisco Weffort, Maria da Conceição Tavares, Marilena Chauí, Emir Sader) ou a aderir à clandestinidade. Havia ainda as lideranças mais jovens que militavam no movimento estudantil (José Serra, Vladimir Palmeira, filho do udenista Rui Palmeira), igualmente perseguidos e dos quais vários também se exilaram. Todos estes estavam na oposição à ditadura.

Dos que decidiram pegar em armas contra a ditadura, milhares eram jovens até então desconhecidos que ingressaram nas dissidências do Partidão que apoiavam a luta armada, inicialmente lideradas por nomes da velha guarda comunista, como o PCdoB (João Amazonas, Maurício Grabois, Haroldo Lima, Pedro Pomar, Vladimir Pomar), o PCR (Manuel Lisboa), o PCBR (Mário Alves, Jacob Gorender, Apolônio de Carvalho) e o PRC (José Genoíno, Tarso Genro), além das guerrilhas ALN (Carlos Marighella, Joaquim Câmara Ferreira, Nilmário Miranda, Paulo Vannuchi, José Dirceu), MR-8 (ou Dissidência da Guanabara): Franklin Martins, Fernando Gabeira, Daniel Aarão Reis, César Benjamin, Vera Magalhães, Stuart Angel), VPR (Carlos Lamarca, Iara Iavelberg, Alfredo Sirkis), VAR-Palmares (Dilma Rousseff, Carlos Minc), POLOP (ligada ao PSB; Moniz Bandeira, Paul Singer) e a esquerda católica mineira (Frei Betto, Frei Tito, Herbert de Souza, Vinícius Caldeira Brant; o catarinense Leonardo Boff, também adepto da Teologia da Libertação, foi por outro caminho).

Mais para o fim do regime, uma corrente do movimento estudantil de linha trotskista se destacou das outras: a Libelu (Liberdade e Luta), que tinha entre seus membros nomes como Antonio Palocci, Reinaldo Azevedo, Demétrio Magnoli, Eugênio Bucci, Luis Favre, Clara Ant, Luiz Gushiken e Glauco Arbix.

Mas o quadro mudou muito à medida que se aproximava a volta ao governo civil e à democracia, no processo lento, gradual e repressivo chamado de “abertura” (1974-1985). O MDB já não dava conta das demandas da esquerda, e mesmo na ARENA havia políticos de direita ideológica que não se conformavam com o crescimento dos burocratas, muitas vezes corruptos, representados por Maluf.

Em 1978, foi na prática autorizado o fim do bipartidarismo, com regras mais fáceis de cumprir para a fundação de novos partidos. Leonel Brizola voltou e quis refundar o PTB para reagrupar os getulistas, mas a Justiça Eleitoral (ainda manipulada pelos militares, que viam na força da sigla uma ameaça) deu a legenda para uma sobrinha de Getúlio, Ivete Vargas, que não tinha nenhum comprometimento com a esquerda nem a causa trabalhista. Sem outra saída, Brizola fundou o Partido Democrático Trabalhista, o PDT.

O MDB acrescentou a palavra “Partido” ao nome e virou PMDB, mas começou a cindir quando cresceu eleitoralmente, gerando disputas internas regionais. Algumas destas dissidências se uniram a setores descontentes da ARENA para formar o PP (Partido Popular), apelidado de “centrão”, sob a liderança de Tancredo Neves e seu escudeiro Miro Teixeira, tendo ainda banqueiros da antiga UDN, como Magalhães Pinto e Olavo Setúbal. O PP durou apenas dois anos e foi incorporado ao PMDB em 1982.

A ARENA se converteu em PDS (não confundir com o antigo PSD!), sigla para Partido Democrático Social – curioso nome para o partido de um regime que não tinha nada de democrático, nem de social. Com ele ficaram Maluf, Sarney, Aureliano, Mário Andreazza, e membros civis menos expressivos da ditadura, como Francisco Dornelles (sobrinho de Tancredo e de Getúlio) e Fernando Collor.

Mas, naquele mesmo final de década de 1970, ocorreu um fenômeno socio-político que teria conseqüências transformadoras para o país: a ascensão do novo sindicalismo brasileiro, marcadamente paulista, sem laços com o getulismo, simbolizado pelas vitoriosas greves de metalúrgicos do ABC Paulista. A liderança que emergiu desse movimento foi Luiz Inácio Lula da Silva. E grupos tanto da esquerda tradicional quanto das antigas guerrilhas e dissidências já ativas prestararam atenção a esse fenômeno (exceto o MR-8, que se incorporou ao PMDB). A lei de anistia de 1979 permitiu a vários exilados que voltassem (Serra, Gabeira, Sirkis, Franklin Martins), cancelou banimentos e soltou oposicionistas presos (Dilma, Genoíno). Muitos deles viram em Lula uma liderança natural em ascensão, e com ele articularam um novo partido político que se apresentasse como diferente de toda a política tradicional feita no país até então.

O primeiro teste para o novo quadro partidário brasileiro foi a eleição para governador, em 1982. Leonel Brizola, pelo PDT, enfrentou uma tentativa de fraude e conseguiu se eleger no Rio de Janeiro. Lula concorreu a governador de São Paulo pelo PT, mas o eleito foi Franco Montoro, do PMDB. Já peemedebista, Tancredo foi eleito governador de Minas, e a oposição ainda garantiu outros 7 governos estaduais. Os outros 12 ficaram com os governistas do PDS (Rondônia, Roraima e Amapá ainda eram territórios federais).

O segundo teste foi a campanha pelas eleições diretas para presidente, a “Diretas Já!”, em 1984. Todos os partidos menos o PDS se uniram nessa campanha. PMDB, PDT, PT e PTB deram as mãos para exigir que o congresso aprovasse a mudança na lei para que o presidente fosse escolhido pelos eleitores, não pelos parlamentares. O autor da emenda era o deputado Dante de Oliveira, do PMDB matogrossense. Com isso, foi possível ver, no mesmo palanque, Ulisses, Brizola, Fernando Henrique, Montoro, Lula e outros políticos que jamais voltariam a estar juntos.

Na votação, porém, a emenda constitucional foi rejeitada e a eleição do ano seguinte seria feita por via indireta. Articularam-se as candidaturas: só PDS e PMDB (como fora com ARENA e MDB) teriam força para eleger seus candidatos. Mas a direção do PDS aprovou o nome de Maluf, o que gerou um descontentamento generalizado nos setores da direita ideológica, que fundaram uma dissidência: a Frente Liberal. À frente dela estavam Sarney, Marco Maciel, Antônio Carlos Magalhães, Jorge Bornhausen, Agripino Maia e outros conservadores com base política forte em áreas rurais, principalmente no nordeste. Em troca do apoio, Sarney (até semanas antes o líder do partido pró-ditadura) foi indicado a vice na chapa da oposição. Com a soma de votos PMDB + FL e ainda alguns do PDT brizolista, o peemedebista Tancredo Neves foi eleito.

Mas, como se sabe, passou mal na véspera da posse e foi internado. Sarney recebeu a faixa provisoriamente, em seu nome. Uma semana depois, Tancredo morreu. Sarney virou presidente de fato e de direito. Ele, que até pouco tempo antes tinha liderado a base de sustentação da ditadura militar, por uma ironia mais que por arranjo político, lideraria a transição para o governo civil. Seu ministério foi montado com nomes inicialmente escolhidos por Tancredo, com quadros do PMDB e da FL, além de alguns do PDS: Francisco Dornelles na Fazenda, Olavo Setúbal no Itamaraty, Pedro Simon na Agricultura, Aureliano Chaves nas Minas e Energia, ACM nas Comunicações, Marco Maciel na Educação e Renato Archer na Ciência e Tecnologia.

Mais dois partidos com grande expressão ainda surgiriam nos anos 1980, no contexto da Assembléia Constituinte, convocada para redigir uma nova constituição que substituísse a da ditadura. A Frente Liberal também ia adicionar um “P” ao nome para virar PFL, partido dos coronéis e dos conservadores convictos, com Marco Maciel, ACM, Agripino, Bornhausen e Aureliano. E os progressistas de São Paulo (Montoro, Covas, FHC, Sérgio Motta, depois aderidos por José Serra), defensores do modelo europeu de governo (parlamentarismo e social-democracia) fundariam a Social-Democracia Brasileira, que com outro “P” viraria o PSDB (e adotaram a figura do tucano como mascote). O Partido Verde foi fundado em 1986 pelos ex-guerrilheiros Sirkis, Gabeira e Minc (antes militantes do PT; este último voltaria ao partido pouco tempo depois), mas continuaria minúsculo até hoje.

A história recente desses partidos e do que fizeram em seus governos está mais fresca na memória. Sarney fez um governo fracassado na economia e na transição democrática; foi sucedido por um aventureiro – Collor – que, sem base de alianças, levou sua camarilha particular para governar do Planalto e fez o estrago institucional, econômico e ético já conhecido. A situação só foi corrigida por seu vice Itamar Franco, um emedebista histórico que, embora tenha liderado um “governo de união nacional” (em tese, com todos os partidos), privilegiou a composição com PMDB, PSDB e PFL, alavancando a aliança neo-oligárquica que faria os tucanos serem alçados de um partido de expressão regional limitada a São Paulo (Covas-Montoro), Paraná (José Richa) e Ceará (Jereissati) ao status de partido nacional. O PT correu por fora na oposição constante, sempre com Lula como líder, e em poucos anos desbancou o PDT brizolista como força maior da esquerda. O PDS/ARENA mudou de nome mais três vezes (para PPR, PPB e, finalmente, PP) e se manteve com Maluf e Dornelles, além de Espiridião Amin em Santa Catarina. O PTB apoiou Collor e minguou e foi tomado pelo empresário José Carlos Martinez e depois pelo maverick Roberto Jefferson. O PCB foi re-legalizado, mas sequestrado por Roberto Freire, que o transformou radicalmente em partido de “nova direita” sob a legenda PPS. O PCdoB passou a ser partido legal, com forte base no movimento estudantil. O PV não foi nada.

Desde o governo Fernando Henrique (1995-2003), os campos políticos foram muito bem definidos. Os partidos dos políticos que apoiaram a ditadura, que perseguiu, prendeu e matou milhares de brasileiros, censurou jornais, entregou riquezas nacionais nas mãos de empresários amigos ou estrangeiros, acobertou a corrupção endêmica e manteve a miséria como política de Estado, apoiaram o grupo de FHC-Serra, do PSDB, por meio do PFL, PP/ARENA, (ex-)PTB e outros. Os tucanos, que tinham combatido a ditadura, não tiveram vergonha em se aliar às mesmas pessoas que tinham financiado, ordenado ou compactuado com as prisões, torturas e mortes. E, no poder, conduziram finalmente um governo udenista, vendendo a Vale, a CSN, a Telebrás, e preparando o desmonte da Petrobrás – que a UDN nunca quis que existisse. Já a maior parte do campo que combateu de fato a ditadura (ou seja, à parte do MDB “comportadinho”) esteve na oposição, na maior parte do tempo fragmentada (Lula e Brizola se aliaram em 1998 a toda a esquerda, mas foram derrotados por FHC reeleito).

O atual cenário só se definiu de fato em 2002. Para conseguir se eleger presidente, depois de três tentativas derrotadas, Lula aceitou o apoio de setores muito questionáveis. Aproximou-se de nacionalistas de direita e do fenômeno crescente do poder das igrejas neopentecostais, sendo a mais forte delas a Igreja Universal do Reino de Deus, que tomara de assalto o pequeno Partido Liberal (PL, de Alvaro Valle, um ex-membro do PFL e liberal clássico por ideologia). Uma vez eleito, o apoio foi cobrado, é claro, e a composição da base aliada contou ainda com os improváveis votos do PP/ARENA de Maluf/Amin/Dornelles (sim, o mesmo partido de base da ditadura) e do PTB de Martinez/Jefferson (o primeiro morreu num acidente de helicóptero logo depois). Um esquema regular de repasse de dinheiro, a título de dívidas de campanha, foi montado por quadros do PT para remunerar o apoio. Quando acuado num caso menor de corrupção, Jefferson pôs a boca no mundo, e o que se viu foi o “escândalo do mensalão” (muito insuflado pela mídia, é verdade). O PT entrou em convulsão e nasceu a principal dissidência, que jurou fidelidade aos princípios originais do partido metalúrgico: o PSOL, de Heloísa Helena e Plínio de Arruda Sampaio. A IURD saiu do PL (que ficou oco e virou PR) e fundou um novo partido, o PRB, tendo o vice José Alencar como líder-mor (e sem vinculação religiosa).

No entanto, a despeito do choque, o sucesso do primeiro mandato levou à reeleição de Lula em 2006, quando o campo se reajustou. O PMDB entrou de corpo e alma para o governo, tendo Sarney à frente, um relutante Michel Temer na retaguarda e Renan Calheiros a tiracolo. O PP/ARENA foi mantido, com Maluf e Lula evitando menções mútuas para escapar ao constrangimento recíproco. O PDT, sem Brizola (morto em 2004), voltou ao seio da esquerda. E o PTB pós-mensalão se bandeou para o lado tucano, seguido pelo PPS de Freire e o PV de Sirkis-Gabeira. Em 2007, o PFL mudou de nome para “Democratas” (DEM), mas manteve exatamente o mesmo quadro e a mesma ideologia conservadora e oligárquica. Ganhou a adesão do prefeito carioca Cesar Maia, primo de Agripino e ex-brizolista, alçado à prefeitura inicialmente pelo PMDB. Pôs o filho, Rodrigo Maia, como presidente do partido, em substituição ao velho cacique Bornhausen – aquele que disse, em referência ao PT, que era preciso “acabar com essa raça”.

Essa raça, porém, é uma raça heróica, que pegou em armas e não teve medo de morrer para derrotar a ditadura dos generais pagos pelos empresários e fazendeiros, todos assassinos em algum grau. É a raça de Frei Betto, Leonardo Boff, Maria da Conceição, Marilena Chauí, Emir Sader (viúvo de Vera Magalhães), Válter Pomar (filho de Vladimir e neto de Pedro Pomar), dos ex-guerrilheiros José Genoíno, Tarso Genro, Nilmário Miranda, Paulo Vannuchi, Franklin Martins, Carlos Minc, Ricardo Zarattini, de Hildegard Angel (irmã de Stuart e filha de Zuzu Angel), de André Singer (filho de Paul Singer e ex-porta-voz de Lula), de Eduardo Campos (neto de Miguel Arraes), Ciro Gomes (amigo, mas adversário, de Jereissati) e Vladimir Palmeira. Todos combateram a ditadura. Todos estão com Dilma.

O lado oposto, se também puder ser chamado de raça, é uma raça acovardada, cúmplice da tortura e de assassinatos, que saqueou o patrimônio nacional. É a raça de Marco Maciel, Jorge Bornhausen, Agripino Maia, Afif Domingos, Jarbas Negri (da máfia das sanguessugas), da família de Antônio Carlos Magalhães, a latifundiária Kátia Abreu, o duplo-corrupto José Roberto Arruda (painel do senado e mensalão de Brasília), Geraldo Alckmin (cria de Covas), Orestes Quércia, Beto Richa (filho de José Richa), Moreira Franco (cria e genro de Amaral Peixoto), a imprensa dos Mesquita, dos Frias e dos Marinho. Todos estão com José Serra. Todos estiveram com a ditadura.

Há exceções de ambos os lados, é verdade. Gabeira e Sirkis, ex-guerrilheiros, preferiram abraçar Sarney Filho em seu partido e se aliar ao DEM/PFL e ao PPS de Freire, e ainda tiraram a histórica Marina Silva do PT (cuja seção no Acre ela fundara com Chico Mendes e Jorge Viana) para lançá-la como candidatura tira-votos de Dilma. César Benjamin, no PSOL, usou a tribuna da mídia corporativa para denegrir Lula. O “czar da economia” dos militares, Delfim Netto, apóia Lula de primeira hora. Antônio Ermírio de Moraes também. Já Reinaldo Azevedo e Demétrio Magnoli, da trotskista Libelu, se tornaram dois dos mais estridentes detratores anti-esquerdistas. Mas cada uma dessas exceções não altera a essência do projeto político de cada um. Dilma não é mais coronelista por ter apoio de Renan e Sarney, nem Serra é mais revolucionário por ter Gabeira e os ex-trotskistas.

Esse desfile de nomes não é uma aula de história do Brasil. É um mapa dos campos políticos que se enfrentam agora. Um tem pessoas que lutaram pelo Brasil. O outro tem pessoas que operaram contra o Brasil. Essas pessoas, no poder, não vão negar suas biografias. Quem sempre defendeu o Brasil continuará defendendo. Quem sempre prejudicou o Brasil poderá destruí-lo de vez.