Neste 2º Domingo do Advento, o evangelho lido nas comunidades, Mateus 3, 1 – 12 nos traz a figura de João Batista como quem primeiro anuncia e testemunha a vinda do reino de Deus, ou dos céus, como diz Mateus.
Para Mateus, quem começou o evangelho foi João Batista, profeta de Israel. João revela que a mensagem do reino é comum aos dois testamentos. Não há solução de continuidade. O fio condutor é o profetismo, a capacidade de ver os sinais do reino e fazer a vontade do Pai para que o reino e sua justiça sejam sempre a prioridade. Em Mateus, Jesus representa a verdadeira realização do Judaísmo: a plenitude da lei e dos profetas.
As palavras de João pedindo conversão e justiça (e não apenas ritos), são atuais. Ele pede arrependimento, conversão. Esse apelo: “Arrependei-vos, o reino dos céus está chegando” (Mt 3, 2). O original grego diz: “Mudem de mente(metanoiete), porque o reino divino acabou de chegar (em grego: eggiken). Alguns textos traduzem como “está perto ou próximo”. Só se for geograficamente porque em termos de tempo, conforme esse evangelho, já chegou. E só Mateus diz isso. Já chegou!
Afirmar que o reino já chegou, mesmo quando vivemos na realidade social e política, uma situação oposta ao projeto divino, é uma profecia corajosa. É subversiva em relação a todos os impérios e aos nossos costumes e convenções costumeiras. Naquele tempo, afirmar que o reino de Deus já chegou era negar o poder do império. E o evangelho afirma isso no tempo em que o Império Romano era mais poderoso e atuante.
Hoje, o que significa afirmar que o reino de Deus já chegou? Como podemos afirmar que esse reino chegou, se o mundo parece caminhar na direção contrária ao reino? Qualquer pessoa pode ver que, que tanto na Igreja Católica, como em Igrejas evangélicas e pentecostais, muitos ministros e grupos cristãos se fecham em uma forma de religião narcisista e auto-referencial, descomprometida com a profecia do reino como transformação do mundo.
Ao contrário disso, o reinado divino pede antes de tudo conversão, isso é, “voltar atrás” e regressar a uma relação de aliança de fidelidade e compromisso com Deus. Mais tarde, o próprio Jesus vai dizer: “Não é quem me diz: Senhor, Senhor, que entra no reino, mas quem, de fato, realiza a vontade do Pai”(7, 21). De qualquer modo, João acolhe a todos e não se considera ele mesmo como realização das profecias. Ele vê as profecias realizadas na pessoa do Cristo, que vem após ele.. Esse “virá após mim”(v. 11) significa que o Cristo o seguirá como discípulo. Jesus se insere na história como discípulo de um profeta e é acolhido pelo povo como profeta. Também nós, se somos verdadeiramente cristãos, temos de ser discípulos do profeta Jesus e viver o profetismo que nos é pedido.
Para revitalizar o profetismo, Joao Batista se coloca no deserto entre o rio Jordão e a terra prometida. É o lugar da antiga conquista da terra e do Êxodo. Foi pelo rio Jordão que, segundo a Bíblia, os hebreus entraram na terra prometida (Js 3, 14- 17). Então, o Jordão tem uma dimensão simbólica na história de Israel. Era como se, ao ser mergulhado/a naquele rio, (batizada), as pessoas e comunidades passassem de um império do mal (de Roma) ao reinado divino. A palavra usada para significar “banho” (miqweh) tem duplo sentido: banho e esperança. Daí que o batismo de João podia ter um sentido de anúncio do Reino futuro.
Hoje, podemos atualizar isso dizendo: Só se vive um cristianismo profético retomando uma espiritualidade sócio-político libertadora. Só assumindo as causas da libertação, podemos ser profetas como João Batista e como Jesus e, assim viver o Advento como tempo de retomada da expectativa do reino.
Assumir as causas da libertação, nós assumimos junto com todos os movimentos sociais e partidos de esquerda que lutam pela transformação do país e do mundo. No entanto, talvez alguém de vocês me perguntem se não há algum diferencial nessa profecia do reino que é a nossa, ou seja, a profecia propriamente cristã.
Não parece que Jesus tenha se preocupado com isso. Ele quis, ele mesmo se inserir no caminho da esperança e do movimento profético. No entanto, sem dúvida, há algo de próprio e de novo neste anúncio de João Batista sobre o batismo (mergulho) nessa vida nova. A vida nova que propomos para o mundo tem de começar por nós mesmos que devemos nela mergulhar (ser batizados).
Profetas como Isaías, Jeremias e Oséias apresentam a aliança do Senhor como um casamento de Deus com o seu povo. Agora, João diz que o povo rompeu com este casamento e Jesus é o Casamenteiro que vem reatar este casamento de Deus com o povo. No evangelho, João afirma que não precisará desatar as sandálias de Jesus porque Jesus representa Deus, o Esposo da humanidade. Por isso, João Batista fala do gesto de desatar as sandálias dizendo que não é digno de desatar as sandálias do Messias. É uma imagem que remete à cultura patriarcal da sociedade israelita antiga, mas comparar a aliança com Deus com a intimidade do casamento pode ser atual. Temos de redescobrir como viver uma fé profética, que se expressa no compromisso social e político transformador e, ao mesmo tempo, se renova na relação carinhosa e afetuosa da relação de intimidade com Deus.
Neste domingo, as Igrejas antigas celebram a festa do Batismo do Senhor. Esta celebração, ainda ligada à festa da Epifania, encerra o ciclo litúrgico do Natal. Assim, amanhã a Igreja passa a celebrar o que se chama “tempo comum do ano”. Todos os quatro evangelhos concordam que a missão pública de Jesus se inicia com o seu batismo. Hoje lemos a versão de Mateus (Mt 3, 13- 17). Conforme esses relatos, o fato de ter sido batizado (mergulhado) por João no rio Jordão é o que dá a Jesus a sua vocação profética. Isso significa que ele não é um impostor e sua autoridade de profeta lhe permite falar em nome de Deus. Mateus conta que Jesus veio da Galileia para receber o batismo. Ao dizer que foi de João Batista que Jesus recebeu o batismo, o evangelho revela que João foi o mestre de Jesus. Foi com João Batista que Jesus aprendeu a ser profeta. João ensinou a Jesus o que Deus quer dizer ao mundo e mostrou a importância de Jesus ter coragem de dizê-lo, mesmo se isso contraria o poder político e principalmente o religioso.
Para nós, isso revela uma forma própria de olhar a missão. A vinda do projeto de Deus ao mundo (o reinado divino) é anterior à missão de Jesus. Conforme Mateus, não é Jesus quem inaugura o reino. Assim que João é apresentado pelo evangelho, proclama: “Mudem de vida (se convertam), pois o Reino dos céus está próximo” (Mt 3, 2). (Nos outros evangelhos, só Jesus diz isso e não João. Em Mateus é João que diz. Mais tarde, Jesus só repetirá o que João já tinha dito. Ver Mt 4, 17). É uma perspectiva teológica inovadora: João não é simplesmente o “precursor” de Jesus. Não é só um preparador. Ele é o profeta que anuncia que a realização do projeto divino no mundo e faz de Jesus um profeta para nós. Jesus anuncia o reino porque já o recebeu. Ele o descobre presente no mundo, nos acontecimentos da vida e nas pessoas. Jesus descobre o projeto divino acontecendo no mundo com os olhos de João Batista, com os olhos de um profeta, de todos os profetas.
Que maravilha! O Reino dos céus sempre esteve presente, misturado com a história do povo. Os profetas o souberam enxergar, apontar, realizar. Então, para nós, um modo bom de celebrar hoje o batismo de Jesus é aprender a descobrir e a testemunhar o reino de Deus presente no mundo, independente de religião e da Igreja. Diferentemente da visão de Paulo de que com a vinda de Jesus, os cristãos serão arrebatados ao céu, na visão do batismo de Jesus é o céu que desce à terra, o Espírito que se une ao ser humano e começamos assim um mundo novo.
João Batista faz isso mais através de um rito simbólico, o batismo do que simplesmente de uma pregação. Batismo é o termo grego para mergulho, inserção. No tempo de Jesus, o mergulho nas águas do rio Jordão, proposto e coordenado pelo profeta João, era símbolo de purificação e de banho regenerador para uma vida nova. Para nós, a noção de pecado é moral. Naquela cultura, o pecado era social e cultural. Era viver uma situação que afastava a pessoa do templo e da pureza ritual. Pecadores eram os trabalhadores pobres que dependiam dos estrangeiros ricos para sobreviver. Eram as mulheres que ficavam impuras quando menstruavam e quando davam a luz. Eram as pessoas que abatiam animais para vender… Isso significa que eram os pobres marginalizados. Batismo para perdão dos pecados era para libertação das marginalizações que, em nome de Deus, deixavam os pobres fora da fé.
A celebração do batismo de Jesus nos confirma que adianta a gente inserir-se nos movimentos sociais e grupos de base. Vale a pena passar pelo mesmo caminho de Jesus, ser discípulo de João, o profeta. Como João e Jesus, mergulhar (batismo é mergulho) na vida dos marginalizados para apontar que Deus está do lado deles e, assim, ser testemunhas da ressurreição de Jesus, através do sacramento do batismo cristão.
Hoje, no mundo, profetas e profetizas do reino de Deus como foi João Batista são todas as pessoas que ajudam as pessoas e grupos de base a manter a esperança e ainda acreditar na possibilidade do novo que vem. É essa missão que faz o que, simbolicamente, o evangelho conta na cena do batismo de Jesus: os céus se abriram para dizer que, a partir de então, não dá mais para dividir céu e terra, fé e política, espiritualidade e compromisso libertador. Quem vive isso, escuta hoje no seu coração a palavra de Deus que retoma a profecia de Isaías: “Este é o meu filho, a minha filha, em quem ponho toda a minha afeição”.
Multiplicam-se, nos quatro cantos do mundo, os sinais de barbárie, ou mais precisamente, da barbárie capitalista, em seus estertores. A besta apocalíptica volta a atacar, em todo o mundo. Também no Brasil. Uma onda de extremismo protagonizado pela extrema direita varre parte considerável do mundo atual: nos Estados Unidos, na Itália, na Hungria, na Inglaterra… e no Brasil! Aqui tem lugar uma síndrome rara de maldades, concentradas num só grupo/pessoa. O país, por força de um processo eleitoral de legitimidade questionada, repleto de “fakes news” resultou numa pavorosa coincidência: em um mesmo grupo/pessoa de gestores, vem incidindo uma confluência de predicados perversos: rara estupidez, compulsão à mentira, ecocídio, misoginia, homofobia, racismo, beligerância gratuita,… Reinstala-se, no Brasil, o velho e pavoroso FEBEAPÁ: Festival de besteiras que assolam o país… Um fenômeno surrealista de alto poder deletério. Ações de resistência se tornam urgentes como nunca antes. Um resistência criativa há de comportar, por certo, o exercício da profecia, a atuação de forças comprometidas com um novo modo de produção, organicamente articulado a um novo modo de consumo e a um novo modo de gestão societal.
Em âmbito nacional e mundial, vêm multiplicando-se os sinais de barbárie: deliberadas políticas de agressão socioambiental; crescimento dos índices de desigualdade social; aumento inaudito dos índices de feminicídio; de crimes homofóbicos; implementação de políticas ditatoriais
Em sua fase mais perversa, o Capitalismo refina seus instrumentos necrófilos, dentre os quais a institucionalização da mentira, tratada ora como pós-verdade, ora como “fake news” ou termos similares. Como a mentira não tem a última palavra no processo de humanização, cedo ou tarde acaba descosturada, desmascarada pela ação profética (adjetivo este aqui assumido para além de uma categoria meramente teológica). Em contextos passados da história, algo semelhante se produziu, ainda que em intensidade bem menor. Nas últimas décadas, contudo, o Capitalismo tem priorizado cada vez mais a institucionalização da mentira como estratégia de sobrevivência. Mas, tal recurso também tem limites. As linhas que seguem têm como propósito trazer a lume a eficácia da ação profética como instrumento demolidor de máscaras, de que se tem servido abusivamente a ideologia capitalista, nas diferentes esferas da realidade. Começamos por destacar alguns cenários, a título de ilustração exemplificativa de como o modelo hegemônico usa e abusa das mais torpes ferramentas da mentira, com o fim de manter sua hegemonia, mundo a fora. Em seguida, cuidamos de situar brevemente a força demolidora da ação profética ante as diversas formas de mentira, inclusive sob a estratégia de sua institucionalização. Por último, centramos atenção em mostrar como a ação profética, em nossos dias, pode (e deve) ter um lugar mais destacado, desde que protagonizada pelas forças sociais historicamente vocacionadas a superar o atual modo de produção (articuladamente ao modo de consumo e ao modo de gestão societal).
O Capitalismo se nutre da mentira e da ocultação de seus instrumentos de sustentação.
A despeito de todas as suas astúcias de aparência, o Capitalismo não sobrevive sem máscaras e falsas justificativas. Esta tem sido a moldura que o envolve, nas mais distintas esferas da realidade em que atua. Sucede que tem sido justamente em sua fase última, em seus estertores, que ele vem apelando para um recurso extremo: a crescente sofisticação da mentira, agora sob a forma de “pós-verdade” e de “fake news”, das quais tem usado e abusado, em diversas partes do mundo onde prevalece.
Para tanto, recorre ao que há de mais avançado nas ferramentas tecnológicas, em especial o uso e abuso dos algoritmos, através dos quais consegue multiplicar exponencialmente o poder de divulgação de mensagens sabidamente falsas, de factoides disparados em massa, de modo a fabricar notícias mentirosas, servindo-se inclusive de dados relativos ao perfil dos destinatários. Prática que evoca as artimanhas usadas pelo conhecido ideólogo nazista, Goebbels, para quem uma mentira repetida mil vezes acabaria ganhando ares de verdade. Assim aconteceu em várias partes do mundo; assim se deu nos Estados Unidos, durante a campanha eleitoral que culminou na eleição de Trump; assim desdeu no Brasil, por ocasião da campanha eleitoral de Bolsonaro. Não são casuais as afinidades múltiplas do desgoverno Bolsonaro com o desgoverno Trump.
E não se trata de pessoas isoladas – Trump, Bolsonaro e seus auxiliares -, mas especialmente de forças poderosas que se põem por trás deles, até porque são pessoas reconhecidamente estúpidas, sem qualquer capacidade de formulação, mas de exímios cumpridores de “scripts” elaborados pelas forças que representam: as grandes transnacionais atuando nas mais distintas áreas econômicas, inclusive na indústria de armamentos de guerra, na indústria de petróleo, das poderosas indústrias de mineração, do agronegócio, etc, sem esquecer de sua forte atuação também no campo da cultura, da educação e até das religiões (haja vista, por exemplo, o poder da Bancada dita “evangélica”, com sua teologia da prosperidade…). A atuação destas forças não se restringe as manipulações do Mercado capitalista, mas se estende pelos aparelhos de Estado.
As transnacionais, as grandes empreiteiras, as grandes empresas de mineração e do agronegócio, e sobretudo, do mundo financista, todas sabem o quanto lucram por meio da divulgação das “fake news” e da mentira institucionalizada. Basta conferir as taxas de escandalosa lucratividade auferidas pelos principais bancos atuando no Brasil… Na pior das crises vividas pelo povo mais pobre, o mundo financista arranca sucessivos superávits, com taxas de lucro acima dos 20%…
O que aqui vem entendido por profetismo?
Mesmo tendo consciência da diversidade conceitual concernente ao termo “Profecia” ou “Profeta”, importa explicitar o significado que lhe atribuímos, nas linhas que seguem. Em primeiro lugar, sublinhamos que, a despeito de a abordagem hegemônica comportar uma predominância teológica, buscamos tratar “Profecia”, “Profetismo” ou “Profeta”!, para além de sua semântica estritamente teológica, situando-os também como conceitos interdisciplinares. Desde sua etimologia, “Profeta” – de “phemi”=falar e “pro” = diante de, em lugar de – significa aquele que fala em nome de uma divindade, ou seu porta-voz, ou ainda o mensageiro ou intérprete de uma divindade. Prática registrada em âmbito do mundo antigo, inclusive no antigo Oriente Médio (Egito, Síria, Iraque, a região do médio Eufrates, a região Babilônica.) Neste caso, o profeta comporta uma dimensão antes política que religiosa, no sentido de não ser alguém ligado a uma prática religiosa, ligada ao culto, mas principalmente um intérprete que cuida de externar ao rei os sinais que distingue, cumprindo um papel de pessoa encarrega de oferecer ao rei um conselho sobretudo de animação, de apoio. Sentido diferente recebe o profeta bíblico.
Não se trata, portanto, de um fenômeno apenas bíblico. O próprio profetismo bíblico comporta semelhanças e diferenças com o exercido em outros povos. Quanto à semelhança, por ex. os profetas egípcios intervinham por meio de oráculo, como porta-vozes de uma divindade. Mas, há também diferenças consideráveis:
– enquanto os profetas do Oriente Médio antigo exerci ciam seu ofício junto ao rei e ao povo, com um propósito de apoio à política mantida pelo rei, em tempos de crise, e não tinham vínculo com o culto, os profetas bíblicos, por sua vez, agiam como mensageiros e intérpretes de Adonai, o Senhor, transmitindo suas mensagens ao rei e ao povo, no mais das vezes, para apresentar denúncias tanto contra a ordem política quanto em relação aos desvios do culto, isto é: agiam tanto no plano político quanto no plano religioso.
A profecia se praticava tanto no terreno pessoal como no âmbito coletivo.
Os profetas eram advertidos para comunicarem, não sua posição, mas a de quem os enviava a profetizar. Eram sempre recriminados, se fossem infiéis à fonte da mensagem.
As denúncias que os profetas são enviados a fazer, não têm por objetivo a condenação, mas a conversão (do povo ou do rei) de seus malfeitos. O anúncio desponta como o alvo maior.
A profecia não está vinculada necessariamente a um a instituição. Deus chama a quem ele quer, onde, quando e como quer.
A interpretação da profecia requer um contínuo exercício de discernimento da parte de quem os escuta, pois não há garantia absoluta de acerto de que aquela palavra vem mesmo de Deus, ou se pode ser objeto de eventual manipulação de quem a comunica e de quem a escuta.
A missão do profeta é advertir dos riscos e das consequências dos malfeitos, em especial por parte de reis ou lideranças religiosas que abusam do seu poder.
Diferentemente dos profetas do antigo Oriente Médio, tidos como “profissionais” e ligados aos interesses do rei, os profetas bíblicos (por exemplo: Moisés, Josué, Samuel, Natan, Isaías, Jeremias, Amós…) eram enviados por Adonai, para denunciarem os maus feitos, e anunciarem a libertação dos oprimidos. Eles recebiam tarefas específicas.
Uma delas é a de despertarem a memória histórica de seus contemporâneos, incentivando-os a rememorarem testemunhos e práticas (pessoais e coletivas) do passado menos recente e mais recente, transmitidos por figuras históricas respeitáveis, cujo legado a todos convida a uma revisitação, com o propósito menos de “matar” saudade, e mais de reavivar compromissos, de rever metas e caminhos inconsequentes. Isto significa não uma rendição ao passado, mas um convite a uma atitude coerente entre passado-presente-futuro, razão por que é somente pela práxis assumida no presente, que se revela o verdadeiro sentido de tal revisitação do passado. Em semelhantes exercícios, tem-se mostrado fecunda a contribuição de bons clássicos, a exemplo de Ernst Bloch, por meio de seu “Princípio Esperança”, a clamar pela renovação de compromissos com a causa libertadora, acenando para o “Já” e o “Ainda não”., isto é: o horizonte almejado há de ser sinalizado já no presente, graças ao testemunho que se pode e que se deve oferecer, pessoal e coletivamente, com a consciência de que o que se obtém no presente “ainda não” corresponde em plenitude ao que se deseja.
Outra dimensão relevante do exercício da profecia tem a ver, ao mesmo tempo, com a crítica e a autocrítica. De um lado o profeta – homem ou mulher – não hesita em denunciar os malfeitos da sociedade, começando a fazê-lo pelas autoridades e pelos segmentos privilegiados da sociedade, o que lhes custa muito caro, por vezes a própria vida; por outro lado, tem a coragem de, ao dirigir suas críticas, a quem quer que seja – também aos setores populares -, cuida de também colocar-se, por primeiro, sob a linha de tiro, isto é, examina sua própria consciência, inclusive acerca da denúncia que dirige aos outros. Aí repousa sua credibilidade perante os destinatários e os diversos segmentos da sociedade, esta faceta ressurge de uma atualidade a toda prova.
Também ao interno das Igrejas cristãs, inclusive da Igreja Católica, vimos assistindo a uma sucessão de atentados ao direito e à justiça, ao ponto de se ouvir até de autoridades, de bispos, declarações de que não apreciam um perfil profético, nas ações eclesiais, preferindo as ações de assistencialismo…
Seja como for, a ação profética segue sendo um componente essencial das lutas, nos mais diversos setores da sociedade e também ao interno da(s) Igrejas.
Que tipo de ação profética se apresenta mais fecunda, em nossos dias?
Nos impasses da atualidade, em que contrastam fortemente, por um lado, as ações de barbárie e, por outro, a escassez de profecia, resulta útil perguntar- nos: que tipo de ação profética se perfila mais urgente, aos nossos dias? De modo despretensioso, ousamos pôr-nos em busca de elementos de resposta. Sem ignorar nem subestimar a relevância de uma ação profética exercitada por pessoas, entendemos que ainda mais fecunda seria articular uma profecia exercida por pessoas – mulheres e homens – a um outro tipo de ação profética protagonizada por sujeitos coletivos. Tal consideração nos remete a um conhecido episódio bíblico, em que pessoas próximas a Moisés o procuraram para se queixarem de haverem encontrado pessoas fora do grupo a profetizarem. A resposta de Moisés lhes soaria desconcertante: “Tens tu ciúmes por mim? Quem dera que todo o povo do Senhor fosse profeta, e que o Senhor pusesse o seu espírito sobre ele!” (Números 11:29b).
Em décadas recentes, ao interno do que se tem denominado “Igreja na Base”, especialmente em circunstâncias de marchas, procissões e romaria, costumava-se entoar um canto, uma de cujas estrofes assim dizia: “No deserto, antigamente / O povo de Deus marchou/ Moisés andava na frente/ Hoje, Moisés é a gente/ Quando enfrenta o opressor”.
Sendo a ação profética um chamamento, ao mesmo tempo, pessoal e coletivo, sua expressão comunitária parece lhe conferir mais força e eficácia, sobretudo
Especialmente em contextos de barbárie, a ação profética se revela mais eficaz, quando assumida coletivamente, ainda que sem prejuízo da incidência pessoal, como sinalizada pelo profeta Joel. Ação potencializada quando assumida comunitariamente. A propósito deste tema, tivemos hoje, na reunião semanal do Grupo Kairós, mais um tópico do livro “O Caminho”, de autoria do Pe. José Comblin. Tomamos a liberdade de citar um trecho, em que ele ressalta a força da ação profética, quando exercida pela/na comunidade:
“Outra dificuldade é a de achar lideranças, pessoas estejam dispostas a formar, assumir responsabilidades coletiva, dirigir, manter unidas as comunidades. Todos sabem como é difícil achar tais pessoas nos assentamentos, nos bairros, nas favelas. Muitos têm na mente o modelo de liderança criado pelos políticos. O “Chefão” tem os seus cabos eleitorais, os seus capangas, que lhe são devotamente dedicados – porque ele lhes oferece, além da proteção de um homem forte, uma certa socialização. É a prática do clientelismo. Há tendência muito forte para formar caciques – no mau sentido da palavra -, e não dirigentes de comunidades, pessoas que buscam na sua clientela uma força política, uma vantagem pessoal e não o bem e a unidade de todos.
Quando aparecem lideranças verdadeiras, é preciso multiplicar as ações de graças, porque são pérolas preciosas. A estrutura da Igreja católica não favorece o surgimento de tais lideranças. O sacerdote, pela sua posição social, pelo monopólio de todos os poderes, impede a existência dessas lideranças – e o aparecimento de pessoas que possam assumir responsabilidades. O padre busca auxiliares para aplicar os planos e as decisões tomadas por ele. Por isso as comunidades eclesiais de base prosperam, sobretudo lá onde não havia sacerdote ou onde ele somente aparecia de vez em quando.”
(Comblin, J. O Caminho: ensaio sobre o seguimento de Jesus São Paulo: Paulus, 2004, p. 201-202)
Também forte se revela a ação profética, quando exercitada pelas forças sociais historicamente vocacionadas a protagonizar mudanças substantivas, em vista de uma sociedade alternativa ao modelo hegemônico atual. Mas, de que ação profética se trata?
Trata-se de uma ação inserida no cotidiano organizativo, formativo e de lutas dessas forças sociais. Trata-se de uma ação profética que trabalhe bem a memória histórica dos oprimidos, de modo a extrair lições das lutas sociais do passado recente e menos recente, sem a pretensão de reeditar as mesmas lutas, mas de recolher inspiração para o enfrentamento dos desafios presentes.
Trata-se de uma ação profética que induza os sujeitos – mulheres e homens – dessas organizações de base a um constante aprimoramento dos sentidos (do ver, do ouvir, do sentir…), de modo a agudizar sua percepção dos sinais dos tempos, interpretá-los e levá-los a sério, em seu dia-a-dia. Trata-se de uma ação profética capaz de comprometer seus agentes a exercitar uma crítica consistente sobre o atual modelo societal, que seja precedida da autocrítica: inócua é a crítica que não parta da autocrítica – acaba levando ao descrédito dos que denunciam, sem anunciar pelo seu testemunho.
Eis apenas algumas pistas que podem ser úteis a nossas organizações de base, como forma de resistência propositiva face aos gigantescos desafios que enfrentamos, nesses tempos de barbárie e obscurantismo.
Nesta sexta (26), fui à Unicamp, a Universidade de Campinas, para participar de uma mesa sobre mídias digitais e democracia. Na volta, comecei a receber mensagens, “Lula falou de você na entrevista!”, “Lula falou do Paz e Bem e do curso de Canudos na entrevista!”. Só consegui ver-ouvir à noite. Chorei.
A foto que ilustra este breve artigo é do instante em que ele falava na entrevista que concedeu aos jornalistas Mônica Bergamo e Florestan Ferandes Jr na cadeia em Curitiba :
“Eu passo o tempo inteiro sozinho. Eu leio, eu vejo pendrive que o pessoal me manda, assisto a filmes, muitos filmes. Muita série, muito discurso, muita aula. Eu por exemplo fiz, na minha cela… Que eu não trato de cela, eu trato de sala porque é melhor. Eu fiz um curso sobre Canudos, tem um curso sobre Canudos no canal Paz e Bem, recontando a história e mostrando as mentiras que Euclides da Cunha contou sobre Canudos [no livro “Os Sertões”].Ou seja, a história não é aquela. Então eu fiz um curso de oito aulas. Agora eu sugeri ao Mauro Lopes, do canal Paz e Bem, que faça um curso, Retratos do Brasil. Sobre todas as lutas sociais no Brasil. E agora acho que toda segunda-feira tem uma aula [no canal].Eu espero juntar umas quatro ou cinco, recebo um pendrive, vou assistindo e vou me aprimorando. Quando sair daqui, sairei doutor.”
Não sei como agradecer a você, Lula.
Sua entrevista foi uma aula de amor ao povo brasileiro, à vida, uma aula de política e espiritualidade que passa à história do país.
Na entrevista de quase duas horas, Lula mostrou que é mais que um sindicalista, mais que um político, mais que o fundador do PT, mais que o ex-presidente da República mais amado do Brasil. Lula é tudo isso e, sobre todas as coisas, é um profeta.
Muitas pessoas não entenderam porque Lula se entregou, porque não correu para uma embaixada, porque não aceita a prisão domiciliar. É preciso entender o que é o profetismo e a característica comum a todos profetas: um profeta não abre mão da denúncia dos poderosos para negociar vantagens para si; um profeta não cede na fidelidade ao seu povo, não abandona o projeto de um tempo-lugar de justiça e paz.
Quando Lula citou o curso de Canudos e se disse disposto, se necessário, a morrer na cadeia, traçou um paralelo histórico entre ele e Antônio Conselheiro, entre ele e o povo de Canudos, massacrado pelo Exército das elites em 1897 ao fim de quatro expedições. Com sua saga, Lula revive a saga de Conselheiro e do povo de Belo Monte, torna-se o Conselheiro pós-moderno. Morreram Conselheiro e o povo, mas não se entregaram. Se necessário, Lula morrerá na cadeia, mas não se entregará. Porque é profeta.
E, se um um profeta é a voz da indignação contra o esmagamento do povo, cultiva generosidade e perdão; nunca o ódio.
Leia estas frases de Lula na entrevista:
“Eu tento ser alegre e trabalhar muito a questão do ódio. Eu trabalho muito para vencer a questão do ódio. A questão da mágoa profunda
(…) eu curto a solidão tentando aprender, mentalizar a minha espiritualidade, tentando gostar mais do ser humano, tentar ficar um pouco mais humano. Eu acho que eu vou sair daqui melhor do que eu entrei. Com menos raiva das pessoas.
(…) A dona Marisa perdeu motivação de vida, não saia mais de casa, não queria mais conversar nada. O AVC dela foi por isso. Agora, não pense que por causa disso eu vou ficar com meu coração cheio de ódio.”
Este conjunto de frases de Lula é um dos pontos altos da entrevista e constituem um pequeno tratado de espiritualidade; merecem ser meditadas por todas e todos que desejam fazer um caminho de amor e esperança na vida.
Um profeta é em si mesmo expressão da Palavra. Assim é Lula e se mostrou por inteiro ao país.
Se você não assistiu, veja, reveja, leia a transcrição.
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Por toda a América Latina, se espalha a notícia: no próximo mês de agosto, Monsenhor Oscar Romero será canonizado, ou seja, o papa o proclamará exemplo de santidade para todos os católicos. Desde o seu martírio, em 24 de março de 1980, as comunidades cristãs da América Latina e Caribe já o chamam de “São Romero das Américas”.
Em 2000, a Igreja Anglicana colocou no átrio de entrada da Catedral de Londres as figuras dos santos que marcaram o século XX e ali colocaram Oscar Romero, ao lado do pastor Martin-Luther King e do Mahatma Gandhi, considerado um santo da religião hinduísta.
O fato do papa canonizar Romero tem um valor em si de nos recordar que Deus está com seus profetas, que, geralmente, em seu tempo foram ignorados e incompreendidos. Quando, em 1977, Romero foi nomeado arcebispo de San Salvador, capital do país, era um bispo tradicional, eclesiástico e, de certa forma, ingênuo. Naquele tempo, havia 40 anos, o país estava mergulhado em uma guerra civil sangrenta. Um governo militar impunha uma ordem social e econômica que massacrava os mais pobres. Qualquer pessoa que contestasse isso desaparecia. Na missa de corpo presente de Romero, o bispo Artur Rivera y Damas afirmou: “Poucos dias depois da posse do arcebispo, assassinaram o padre Rutílio Grande, um de seus colaboradores mais próximos. O assassinato do padre, junto com um lavrador e um filho pequeno provocou uma mudança na atitude de Dom Romero. A partir daí ele mudou e passou a assumir a defesa dos perseguidos e a denunciar o que estava ocorrendo no país ”. Jon Sobriño, amigo do arcebispo e teólogo, declarou: “Em geral, com 59 anos, as pessoas se acomodam em suas estruturas mentais, principalmente quando se recebe cargo de poder, como é o caso de um bispo. Ao contrário, Romero foi capaz de mudar de pensamento e de modo de vida. Mudou o modo de ser bispo”.
Pouco dias depois do martírio de Romero, Jon Sobriño escreveu: “Ainda que me pareça simples ou estranho dizer isso, Romero foi um homem que acreditou em Deus ”. Hoje, essas palavras de Sobrino, ao insistir que um bispo católico acreditava em Deus, ganham mais força ainda. Sobrino reflete sobre o que significa “crer em Deus” e que consequências essa fé teve para a vida de Romero. Ele teve a coragem de crer em Deus, desfazendo as imagens de Deus unidas ao poder e ao status-quo. Para Romero, crer em Deus significou assumir radicalmente a causa de Deus, a vontade divina. Na Universidade de Louvain, o arcebispo declarou: “Estar a favor da vida ou da morte. Não há neutralidade possível. Ou servimos à vida, ou somos cúmplices da morte de muitos seres humanos. Aqui se revela qual é a nossa fé: ou cremos no Deus da vida, ou usamos o nome de Deus, servindo aos algozes da morte”.
Monsenhor Romero trabalhou por mudanças de estruturas no país. Dizia que a pobreza extrema dos lavradores tocava no coração de Deus. Quando se nega a dignidade do ser humano se nega a existência de Deus. Por causa disso, depois de várias ameaças de morte, na tarde de 24 de março de 1980, Romero foi assassinado, quando celebrava a missa em uma capela de hospital da cidade.
O assassinato do arcebispo chamou a atenção do mundo todo. Provocou uma tal consciência mundial sobre a realidade iníqua de El Salvador que, alguns anos depois, a ditadura caiu. Desde alguns anos, o povo consegue eleger governos democráticos e mudar, em alguns aspectos, a estrutura da sociedade. A realidade do país continua sendo de grande desigualdade social. No entanto, ao menos, a violência do Estado foi superada e El Salvador vive um processo de integração no continente latino-americano e busca restabelecer a justiça para o povo empobrecido.
Nesse momento, o papa Francisco insiste que bispos e padres recoloquem a Igreja no caminho da profecia e deem prioridade à solidariedade aos mais empobrecidos do mundo. A figura de Oscar Romero é símbolo de um profeta dos pobres e mártir da justiça. Até hoje, em nosso continente, resoam as palavras que no domingo, véspera do seu martírio, Monsenhor Oscar Romero falou em sua homilia: “Frequentemente tenho sido ameaçado. Como cristão, não creio em morte sem ressurreição. Se me matam, ressuscitarei no povo salvadorenho” (…) Ofereço a Deus o meu sangue pela libertação e pela ressurreição do meu país. O martírio é uma graça que não creio merecer. Mas, se Deus aceitar o sacrifício de minha vida, que meu sangue seja semente de liberdade e o sinal de que, em breve, a esperança se tornará realidade. (…) Um bispo vai morrer, mas a Igreja de Deus que é o seu povo não morrerá nunca”.