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Poeticidade

poetryHoje à tarde, na academia, pensei neste assunto: a poeticidade. A poesia é uma forma de ser e de estar no mundo. Uma forma de conhecer.
Uma forma de ser e de estar no mundo, pensei. Uma forma fluente, integrada.
Coincidentemente, hoje passei um bom tempo meditando na serenidade. Serenidade tem várias conotações, que me detive a ler e considerar.
Serenidade. Calma. Lembrei das águas e daquele episódio em que Jesus diz para os discípulos não terem medo.
Lembrei do livro do Eclesiástico, onde fala da oração. Orar é unir-se a Deus. Assim, esta tarde me veio uma calma muito grande.
Despreocupação. Confiança. Fluidez, flexibilidade. Estar aqui agora a escrever estas coisas, me traz muita calma.
Pôr umas letras em um papel me traz uma calma muito grande. É como se a vivência do dia se condensasse aqui. Existência poética.

Lugar de mim

Nunca enfatizarei o bastante, o quanto tenho voltado a ser quem sou, graças ao diálogo. Um diálogo em boa medida possibilitado em particular por esta revista, mas também em espaços como a família e os amigos e amigas. Aquelas pessoas que nos querem bem, que se importam conosco.
A gente pode ter-se perdido, como creio que foi o meu caso, mas podemos nos ter de volta. E para isto, é imprescindível esse espaço aconchegante, caloroso e confiável, de algumas pessoas que verdadeiramente nos querem bem.
Não se volta pela mão de doutrinas ou teorias, dogmas nem fórmulas mágicas. Volta-se pela companhia de pessoas inteiras em quem começamos a ter reflexos do ser que somos. Reflexos que tínhamos deixado de ver, em função da necessidade imposta por papéis sociais em que fomos nos alienando, nos estranhando.
Alguém que acreditou em mim, alguém em quem fui tendo outra vez vislumbres do ser que sou, tornou-se uma peça chave na recuperação da minha identidade. Este alguém é alguém em particular, e várias outras pessoas. Volta-se em comunidade. Daí a Terapia Comunitária Integrativa como um lugar em que a pessoa pode ir se tendo de volta.
Pode ir se lembrando de quem é.
Como seres humanos, somos seres de habitação, seres que ocupam um lugar, ou muitos lugares. Mas os lugares não são espaços arbitrários. O lugar da nossa habitação, os lugares em que podemos ser e de fato somos quem somos, são lugares nossos, lugares próprios.
“Poéticamente habita o ser humano”, disse o poeta. Poéticamente, porque o lugar que somos, o lugar da nossa pertença, é um lugar integrado, não figurado. É um lugar real, feito por nós mesmos; não é um lugar emprestado, ou cedido por alguém.
No tempo em que comecei a me ter de volta em escritos, pela palavra lançada em busca de ecos no diálogo, esta revista era ainda um blog. O fato de ter sido aceito para formar parte deste espaço, foi muito significativo para mim.
Eu comecei a ter vislumbres do meu próprio ser, na medida em que ia interagindo com outras pessoas, algumas conhecidas diretamente, outras virtualmente. E nestes já mais de 13 anos de permanência neste espaço, a vida foi indo, a vida foi vindo, nesse seu vaivém.
Agora estou voltando da minha terra natal, Mendoza, Argentina, onde pude ir me incorporando a trabalhos formativos em Terapia Comunitária Integrativa, em Posadas (Misiones) e Paraná (Entre Ríos). Isto marcou uma inflexão.
Tive que sair da Argentina por causa da situação criada no país pela ditadura cívico-militar que se ensenhoreou da vida e da morte dos argentinos e das argentinas, nos anos de 1976 a 1983. Quebra, perda de raízes.
A recuperação da minha identidade vem ocorrendo nos espaços da Terapia Comunitária Integrativa, mas também no espaço da família e das redes solidárias, de amigos e amigas. Nas redes da saúde mental comunitária e da literatura e da poesia.
A literatura e a poesia como lugares em que se recupera a unidade da vida, a realidade da vivência, sua integridade. A vida tal como ela é, nos vem nestes espaços de refazimento, em que não somos genéricos (ninguém é genérico ou genérica), mas individuais: o ser que somos.
No exercício do diálogo propiciado pelas publicações nesta revista e também nos meus blogs e nos livros que fui publicando nestes 13 anos, foi se desfazendo o estranhamento em que tinha caído, sem me dar conta.
“Ninguém se enxerga sozinho. Necessitamos do outro como nosso espelho e nosso guia” (Peter Berger). Na medida em que fui me vendo nas falas e nas vidas, nas experiências e nas histórias de vida de outras pessoas, pude ir reconstruindo meu próprio lugar.
Pude ir me vendo de novo como um ser com raízes, com uma história pessoal e familiar parecida (embora única), em meio a esforços coletivos de recuperação da própria identidade. Isto é o que a Terapia Comunitária Integrativa possibilita.
Desfaz-se a ilusão da fragmentação, da solidão e do isolamento. Podemos nos ver novamente como coletivos, como partes de uma trama maior que nos inclui, nos contém e nos sustenta, nos dá sentido. Há uma esperança, há um amanhã, porque há raízes, há pertencimento.

Viajando

Hoje à tarde passei, sem saber como nem ter me proposto a isto, olhando para os livros da minha biblioteca. Olhando para eles, tão diferentes um do outro. Comprados em lugares diferentes.
Cada um a me lembrar algo de mim, do tempo em que o li, quando livros relidos. Passei um tempo prazeroso a olhar para os meus livros. Desfrutando do que ele fizeram e fazem por mim. Continuarão a fazer, sem dúvida. Folheei alguns, como os Diálogos com Borges, Cecília Meireles de bolso (uma coleção de poemas).
E não pude deixar de me surpreender. Borges e Cortázar falando em rosas. Edgar Allan Poe. Espelhos. Labirinitos. Machado de Assis. José Saramago. Uma costura infinita. Como resultado deste passeio, desta excursão bibliográfica, perduram alguns elos, alguns fios que me unem a pessoas muito queridas que me motivaram a ler esses livros ou esses poemas. Essas leituras. Alguma coisa muito tênue costura os livros entre si e comigo.

Volviendo


Esa tarde, andaba como deambulando, sin saber bien qué hacer. Nada nuevo en cuanto a ésto. Cuántas novedades, sin embargo, en estos últimos días. La vuelta a la tierra natal, casi sin pensarlo, o sin saber bien como, y sin embargo, sabiendo, sí, como no. Volver a Mendoza era  algo que le traía sensaciones que no sabía bien como traer a las palabras. Lo había hablado ya con algunas personas, conocidos, amigos, gente de la familia. Pero hay algo que se queda adentro de uno, y que no se deja trasponer al mundo de las palabras. La tarde va pasando. Los ruidos de la calle. Un auto que pasa. Los pájaros que cantan. Los recuerdos de los días pasados desde que llegaste.

Voltando

Esses dias de estar em Mendoza sem data para voltar para João Pessoa, estão sendo uma experiência bastante interessante. Menos ansiedade e expectativas. Uma certa quietude. Um sentir a terra me acolhendo, de um modo que não saberia dizer com palavras. É, de alguma forma, como se nunca tivesse ido embora.
Por vezes me surpreendo, como agora há pouco ao voltar para a casa do meu pai, vendo o reflexo da água da acéquia na parede lateral da mesma, e esse reflexo me faz saber que sempre estive ali, que nunca fui embora. Como se uma parte minha, eternamente criança, tivesse armazenado todas as memórias boas e elas estivessem aí, voltando vez por outra.
O cheiro dos aguaribays. A siesta mendocina. As ruas cobertas de árvores verdejantes, jogando a sua sombra sobre o xadrez de calçadas, ruas e praças. A praça Espanha, com seus azulejos coloridos e suas fontes. A praça Itália. Praça Independência. O Parque San Martín e o Rosedal.
O encontro com algum velho amigo que fazia muito tempo que não via. Encontrando novas pessoas. Perspectivas de novas amizades. Como se Mendoza estivesse me dizendo: estive à tua espera todo este tempo. Sei que não foste embora por querer, mas estive e estarei sempre para ti.

Escribiendo y pintando

No siempre hay algo que escribir o pintar, y sin embargo uno va a la hoja y garabatea algunas cosas. Sean palabras o imágenes coloridas o en blanco y negro. Como cuando éramos chicos. Unos garabatos hacen bien.
Pasar el lápiz por la hoja pensando en aquella mujer bella que te gustaría dibujar. Que alguna vez viste o soñaste o imaginaste. Talvez aquella estatua del rosedal de Mendoza, inmemorial, que veías en tus tiempos de estudiante, en tantos otros tiempos después, y ahora.
O aquel sol que pintaste ayer, siempre el sol, tanto sol, sal. Un sol enorme, como tantas otras veces. Un sol amarillo ocupando todo el cielo. Amarillo expandiéndose hacia todos lados, anaranjado, ocupando todo el cielo.
O entonces ahora, esta mañana de domingo, donde otra vez vuelves a tu lugar, esa tela, esta hoja, ese tejido que te contiene, en el cual te apoyas, y que te comunica. El lugar que te pertenece. Sos ese lugar.
Y desde allí miras en todas las direcciones, hacia todo tu alrededor. Como si vieras –y ves– todo lo que has escrito en tu vida, todo lo que pintaste y dibujaste. Los colores se ven como sobre las montañas del entramado de la hoja, un amarillo y un rojo, anaranjado y rosado, verde.
El marrón y el gris de las montañas, el blanco. Entonces sabes, estuviste siempre allí. El río que baja de la montaña. Los sauces. Las piedras, los cactus, la jarilla, los chañares. Los algarrobos.

A Terapia Comunitária Integrativa é uma rede relacional

Muitas vezes, necessitamos de apoio, de contenção. Temos necessidade de nos sentirmos parte de alguma coisa. Então, a rede. No meu caso, a rede da Terapia Comunitária Integrativa. Uma rede nos sustenta e nos contém, e também nos comunica. Estas necessidades que experimento em mim mesmo, são também necessidades experimentadas por muitas outras pessoas. Poderiamos dizer que são necessidades humanas básicas.

O propósito destas linhas é o de tentar reconstruir, de uma maneira coerente e objetiva, como é que a TCI, enquanto uma rede relacional, enquanto uma rede social e comunitária, age no sentido de sustentar uma pessoa, proporcionando uma sensação efetiva de pertencimento, de capacidade (eu posso), de sentido, de projeto, e, por que não dizer, de imortalidade.

Na medida em que me integro como rede, na medida em que começo a me ver novamente como alguém que faz parte da existência, alguém que não apenas está no mundo, mas é o do mundo, sinto uma sensação de perenidade, de imortalidade.

Não mais me vejo quebrado, partido, fragmentado. Esta sensação de ser parte de um todo, a pessoa começa a recuperar na medida em que pode começar a se ver nos demais. Isto ocorre nas rodas de TCI, e também nos cursos de Cuidando do Cuidador, nos encontros de terapeutas comunitários, e aos poucos, começa a ser algo mais permanente na vida da pessoa.

A partir do momento em que começo a me ver e a ver a minha história de vida como uma história que me pertence, que foi e é feita por mim mesmo e que não me foi imposta, volto a ter uma sensação de pertencimento muito prazerosa e forte. Deixo de me sentir vítima das outras pessoas, do destino, dos acontecimentos. Percebo que eu sou, sobre tudo, uma criação de mim mesmo.

E esta criação é comunitária. Começou no seio da minha família, foi prosseguindo pelos meus grupos de amigos e colegas, nas diferentes fases da minha vida, e continua hoje. Quando busco a minha força interior, fecho os olhos e vejo a rede da Terapia Comunitária Integrativa. Vejo esses laços que foram sendo construídos ao longo do tempo, com pessoas, mas sobre tudo comigo mesmo.

Na medida em que fui me tendo de volta, em que deixei de me sentir vítima de pessoas e de acontecimentos do passado ou do presente, fui recuperando a noção da minha responsabilidade no processo que me faz ser a pessoa que sou hoje.
Então, quando necessito me sentir parte, sentir que faço parte de algo maior que me contém e me envolve, me sustenta e me comunica, volto o olhar para meu interior e para o meu redor. E encontro ali, dentro e fora de mim, a rede da TCI.

Pertencimento

Voltavas do VII Congresso Brasileiro de Terapia Comunitária Integrativa. Carapibus, Conde, Paraíba. Um congresso diferente. Voltavas pleno, saciado interiormente. A tua história no lugar onde estás, o teu ser o ser que é. Tantos rostos, expressões, olhares, conversas, cantos, danças, rodas de terapia comunitária. Vias os corredores do hotel, a piscina, o mar verde no horizonte. As idas e vindas ao restaurante. Os cômicos. As comidas. As palavras. E esta tentativa de juntar o que foram estes dias. Ainda continuarão voltando. Sabes que continuarão a vir. Uma paz profunda nos invade quando somos o ser que somos, quando estamos no lugar que é nosso, que nunca poderia deixar de nos pertencer.

O inacabamento do saber

Saber que o saber não está acabado, nos põe frente à possibilidade de virmos a conhecer, de virmos a saber alguma coisa. O que está aqui, o que quer que seja que está aqui, eu, vocês, qualquer coisa, é desconhecida, a menos que tenhamos aprendido a nos distanciar dela a força de acreditar em suposições, em ideias alheias incorporadas como se fossem próprias.

O mundo dos preconceitos, da falsa objetividade, das ideias erradas tidas como certas, se sobrepõe ao que existe. Há toda uma construção, ou muitas construções se interpondo como véus entre quem quer conhecer, e o que quer que venhamos a querer conhecer. Ideologias, crenças, falsas ideias sobre nós mesmos, os outros, o mundo. Tudo isso deve cessar, deve abrir passagem para que o conhecimento seja possível, para que de fato possamos vir a conhecer alguma coisa. Mas isto, que se diz com facilidade, da muito trabalho.

Tudo que é humano dá trabalho. Deu trabalho também incorporarmos todos esses véus que nos separam da realidade, que nos impedem de conhecer a verdade, saber o que está aqui. A pedagogia de Paulo Freire e a Terapia Comunitária Integrativa, como uma prática e uma forma de conhecer que se baseia como um dos seus pilares fundamentais, nesta pedagogia, são duas veredas que podem nos ajudar a saber quem somos, a saber o que está aqui. Estes dois caminhos, que na verdade são um só, nos permitem afastar o que se interpõe entre nós e a verdade.

De que forma, ou de que formas? Pondo em questão, criticando as ideias feitas, combatendo a síndrome da miséria psíquica, o “eu não posso,” “eu não valho nada”, afirmando a autoestima positiva da pessoa, a sua fé nela mesma, a confiança na sua capacidade, no seu valor. Recuperando a história de vida da pessoa e os seus laços com a sua cultura, com a matriz cultural que lhe é própria, a pessoa se reintegra a um estado de inocência, a um estado de paz, a um fluir que faz com que ela perceba que da mesma forma como foi capaz de vencer todas as dificuldades que se lhe apresentaram no passado, também é capaz de enfrentar este hoje em que há outras dificuldades.

A pessoa vai perdendo a sua sensação de impotência, de isolamento, de estranheza. Percebe que o mundo é feito de pessoas que, como ela, passam por situações muito parecidas, e que, na essência, a caminhada de cada ser humano se parece muito com a do demais. A pessoa recebe do coletivo, da rede da qual passa a fazer parte ou da qual se percebe fazendo parte, uma aprovação, uma aprovação essencial, uma permissão para ser como ela é. Ela não precisa deixar de ser quem ela é para ser aceita.

Este reencontro da pessoa com seu ser verdadeiro, com o ser que ela é, é um novo nascimento. Isto ocorre nas formações em TCI, nas rodas da TCI, quando a pessoa percebe que a sua caminhada a trouxe de volta para um estado original de confiança em si mesma e nos demais. A pessoa volta a saber que a sua vida faz sentido, um sentido que ela mesma cria, com liberdade e responsabilidade, saindo da condição de vítima para a de autora e gestora da sua autonomia.

Obviamente a pedagogia de Paulo Freire, como também a TCI, são possibilidades, ferramentas, não resolvem os problemas, não são soluções milagrosas. Abrem portas para dentro da pessoa, para a revalorização da vida, bem como abrem portas para o mundo em volta. Um mundo que vai sendo, assim como a pessoa vai sendo. Mas a caminhada exige sempre que cada um de nós assuma o desafio de se encontrar de fato, total e efetivamente, com seu ser profundo, com seu ser verdadeiro. As muletas podem até ser necessárias durante algum tempo, mas finalmente a pessoa tem que aprender a caminhar por ela mesma.

Não se trata de reprogramar as pessoas, mas sim de desprogramá-las, evidenciando as cadeias comportamentais, valorativas e de crenças, ideologias costumes, hábitos, etc. que oprimem o ser, deformando o seu existir. As rodas, a horizontalidade, a escuta de si e dos outros, abrem portas, reaproximam a pessoa do que está aqui. Oferecem a possibilidade de que a pessoa se re-encontre com esse estado primeiro de inocência de que falávamos, de confiança infantil, de crença na própria capacidade de construir seus sonhos, em redes, coletivamente, comunitariamente, mas também pessoalmente, individualmente.

Uma ferramenta valiosíssima nesta tarefa de re-encontro com o ser autêntico, são as perguntas. Elas estão presentes o tempo todo nestas duas formas de conhecimento, que na verdade é uma só. Perguntar abre portas, e importa mais a pergunta do que as respostas, no meu entender. Você se coloca outra vez diante de si mesmo como alguém que é capaz de re-escrever a sua história de vida. Inaugurar este instante, habitar o presente. O passado não pode ser o algoz do aqui e agora. Não nos podemos tornar escravos do que fomos, do que foi.

O que foi me permitiu chegar até aqui, e não o desprezo. Mas o aqui e agora me põe outra vez na situação de quem vê o mundo e a si mesmo por primeira vez. Re-inauguramos o assombro, a surpresa, a condição de quem está frente a frente com um desconhecido interior e exterior, sem medo, confiantes. Não há receitas, apenas partilhas de experiências, e a recuperação de uma noção de ser fluente que se apoia cada vez mais nas redes, nos vínculos com os demais, na crença de que a soma de fazeres coletivos pode ser e é libertadora.

Não poderia deixar de mencionar, mesmo que brevemente, uma outra forma de saber que tem me resultado valiosíssima nesta caminhada em direção ao conhecimento do que está aqui: a poesia e a literatura. Elas vem me permitindo desfazer cada vez mais essa sobrecarga de pensamento alheio que me entorpecia o viver. Desfazendo as deformações que se originam nessa falsa objetividade criada pela intelectualidade raciocinante, como diz Julio Cortázar.