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O processo era kafkiano. Mas, Battisti se salvou

Falamos em Caso Dreyfus, por se tratar de uma terrível injustiça e pelo intenso debate que gerou.

Comparamos com o martírio de Sacco e Vanzetti, porque os dois perseguidores togados de Cesare Battisti foram igual e absurdamente tendenciosos, alinhando-se, até o mais ínfimo detalhe, com o pleito italiano.

A execução destes imigrantes anarquistas em 1927 teve, como pretexto, homicídios que as autoridades estadunidenses sabiam terem sido cometidos por criminosos sem envolvimento político; e como verdadeiro motivo, a intimidação dos agrupamentos revolucionários.

Oficialmente inocentados meio século depois, foram, portanto, assassinados por linchadores travestidos de julgadores — como Battisti, por muito pouco, escapou de ser.

O paralelo mais apropriado, contudo, talvez não seja histórico, e sim literário: é com a via crucis de Joseph K. Com a diferença de que Battisti acabou sendo salvo por uma corrente de bons brasileiros e uma extraordinária estrangeira.

A exemplo do personagem principal de O Processo, Battisti repentinamente se viu em meio a um pesadelo do qual não conseguia acordar, sob acusações despropositadas e sem encontrar nenhuma autoridade que levasse em conta seus protestos e provas de inocência. Mais kafkiano, impossível.

Daí tanto perguntar, no seu livro Minha fuga sem fim, em entrevistas e mensagens: “Por que eu?”.

TRADIÇÃO DE FAMÍLIA

Neto, filho e irmão mais novo de comunistas, engajou-se naturalmente na Juventude do PCI e, aos 13 anos, já participava dos protestos estudantis que marcaram o 1968 europeu.

Depois, no cenário radicalizado do pós-1968, o ardor da idade, também naturalmente, o foi conduzindo cada vez mais para a esquerda: do PCI à Lotta Continua, desta à Autonomia Operária, até desembocar no Proletários Armados para o Comunismo, pequena organização regional com cerca de 60 integrantes.

Participou de assaltos para sustentar o movimento — as  expropriações de capitalistas — e não nega. Mas, assustado com a escalada de violência desatinada — cujo ápice foi a execução do sequestrado premiê Aldo Moro pelas Brigadas Vermelhas — desligou-se em 1978, logo após o primeiro assassinato reivindicado por um núcleo dos PAC, do qual só tomou conhecimento  a posteriori, recebendo-o com indignação.

Já era um mero foragido sem partido quando os PAC vitimaram outras três pessoas, no ano seguinte.

Detido, foi condenado em 1981 pelo que realmente fez (participação em grupo armado, assalto e receptação de armas), mas a uma pena rigorosa demais (12 anos), característica dos  anos de chumbo na Itália, quando se admitia até a permanência de um suspeito em prisão PREVENTIVA por MAIS DE 10 ANOS!!!

Resgatado em outubro de 1981, por uma operação comandada pelo líder dos PAC, Pietro Mutti, abandonou a Itália, a luta armada e a própria participação política, ocultando-se na França, depois no México, onde iniciou sua carreira literária.

Aceitando a oferta do presidente François Mitterrand — abrigo permanente para os perseguidos políticos italianos que se comprometessem a não desenvolver atividades revolucionárias em solo francês –, levava existência pacata e laboriosa há 14 anos, quando, em 2004, a Itália o escolheu como alvo.

Tinha sido um personagem secundário e obscuro nos  anos de chumbo, quando cerca de 600 grupos e grupúsculos de ultraesquerda se constituíram na Itália. O fenômeno ganhou maiores proporções porque muitos militantes sinceros de esquerda foram levados ao desespero pela  traição histórica do PCI, que tornou a revolução inviável num horizonte visível ao mancomunar-se com a reacionária, corrupta e mafiosa Democracia Cristã.

Destes 600, um terço esteve envolvido em ações armadas.

“POR QUE EU?”

Nem os PAC tinham posição de destaque na ultraesquerda, nem Battisti era personagem destacado dos PAC. Foi apenas a válvula de escape de que o  delator premiado Pietro Mutti e outros  arrependidos, em depoimentos escandalosamente orquestrados, serviram-se para obter reduções de pena: estava a salvo no exterior, então poderiam descarregar sobre ele, sem dano, as próprias culpas.

Num tribunal que só faltou ser presidido por Tomás de Torquemada, Battisti acabou sendo novamente julgado na Itália e condenado à prisão perpétua em 1987.

A sentença se lastreou unicamente no depoimento desses prisioneiros que aspiravam a obter favores da Justiça italiana — cujas grotescas mentiras se evidenciaram, p. ex., na atribuição da autoria direta de dois homicídios quase simultâneos a Battisti, tendo a acusação de ser reescrita quando se percebeu a impossibilidade material de ele estar de corpo presente em ambas as cidades.

Depois, provou-se de forma cabal que Battisti não só fora representado por advogados hostis (pois defendiam os  arrependidos cujos interesses conflitavam com os dele), como também falsários (pois forjaram as procurações que os davam como seus patronos).

Battisti escapara das garras da Justiça italiana, então valia tudo contra ele. Mas, ainda, como  vilão menor.

Passou a ser encarado como um  vilão maior quando alcançou o sucesso literário. Tinha muito a revelar sobre o  macartismo à italiana dos anos de chumbo, tantas vezes denunciado pela Anistia Internacional e outros defensores dos direitos humanos.

Foi aí, em 2004, que a Itália direcionou suas baterias contra Battisti, investindo pesado em persuasões e pressões para que a França desonrasse a palavra empenhada por um presidente da República. Tudo isto facilitado pela voga direitista na Europa e pela histeria insuflada  ad nauseam a partir do atentado contra o WTC.

Ao mesmo tempo que concedia a extradição antes negada, a França, por meio do seu serviço secreto, facilitou a evasão de Battisti. A habitual duplicidade francesa.

VÍTIMA DE DOIS SEQUESTROS. NO BRASIL

E o pesadelo se transferiu para o Brasil, onde o escritor teve a infelicidade de encontrar, no STF, dois inquisidores dispostos a tudo para entregarem o troféu a Silvio Berlusconi.

Preso em março/2007, seu caso deveria ter sido encerrado em janeiro/2009, quando o então ministro da Justiça Tarso Genro lhe concedeu refúgio.

Mas, ao contrário do que estabelecia a Lei do Refúgio, bem como da jurisprudência consolidada em episódios anteriores, o relator Cezar Peluso manteve Battisti sequestrado, na esperança de convencer o STF a revogar (na prática) a Lei e jogar no lixo a jurisprudência.

Apostando numa hipótese coerente com suas convicções pessoais (conservadoras, medievalistas e reacionárias), Peluso manteve encarcerado quem deveria libertar.

Ele e o então presidente Gilmar Mendes atraíram mais três ministros para sua aventura que, em última análise, visava erigir o Supremo em alternativa ao Poder Executivo, esvaziando-o ao assumir suas prerrogativas inerentes. A criminalização dos movimentos sociais também fazia, obviamente, parte do  pacote.

Foram juridicamente aberrantes as duas primeiras votações, em que o STF, por 5×4, derrubou uma decisão legítima do ministro da Justiça e autorizou a extradição de um condenado por delitos políticos, ao arrepio das leis e tradições brasileiras.

Como na nossa ditadura militar, delitos políticos foram falciosamente  metamorfoseados em crimes comuns — a despeito da sentença italiana, dezenas de vezes, imputar a Battisti a subversão contra o Estado italiano e enquadrá-lo numa lei instituída exatamente para combater tal subversão!

blitzkrieg direitista foi detida na terceira votação, quando Peluso e Mendes tentavam  automatizar a extradição, cassando também uma  prerrogativa do presidente da República, condutor das relações internacionais do Brasil.

Contra este acinte à Constituição insurgiu-se um ministro legalista, Carlos Ayres Britto. Também por 5×4, ficou definido que a decisão final continuava sendo do presidente da República, como sempre foi.

Sabendo que Luiz Inácio Lula da Silva não cederia às afrontosas pressões italianas, o premiê Silvio Berlusconi já se conformava com a derrota em fevereiro de 2010, pedindo apenas que a pílula fosse dourada para não o deixar muito mal com o eleitorado do seu país.

Mesmo assim, quando Lula encerrou de vez o caso, Peluso apostou numa nova tentativa de virada de mesa. Ao invés de libertar Battisti no próprio dia 31/12/2010, que era o que lhe restava fazer segundo o ministro Marco Aurélio de Mello e o grande jurista Dalmo de Abreu Dallari, manteve-o, ainda, sequestrado.

E o sequestro, desta vez, saltou aos olhos e clamou aos céus. Só não viu quem não quis.

Com o STF decidindo, por sonoros 6×3 (só Ellen Gracie embarcou na canoa furada de Peluso e Mendes), que não havia mais motivo nenhum para o processo prosseguir nem para Battisti ser mantido preso, como fica a situação de quem cerceou arbitrariamente sua liberdade por cinco meses e oito dias?

Torno a perguntar: quem julga o presidente da mais alta Corte?

UM IMPERADOR EM PARAFUSO

Além do governo neofascista de Berlusconi, que usou todo o peso de um país do 1º mundo na tentativa de arrancar Battisti do Brasil; da cabeça-de-ponte no Supremo e do previsível engajamento dos reacionários brasileiros na cruzada italiana (vide a arguição da inconstitucionalidade do parecer da Advocacia Geral da União, por parte do DEM), uma menção especial cabe à grande imprensa brasileira em geral e a Mino Carta em particular.

Eles protagonizaram uma das páginas mais vergonhosas de nosso jornalismo em todos os tempos, com uma satanização sem limites, omitindo informações importantes, maximizando insignificâncias, não abrindo espaço para o  outro lado, cerceando o direito de resposta, manipulando, mentindo, pressionando, picareteando.

Nos momentos mais cruciais do caso, tratavam Battisti como  terrorista, o que nem a discricionária Justiça italiana dos  anos de chumbo ousara. Tudo fizeram para que um ex-militante inativo há três décadas  fosse confundido com um Bin-Laden da vida.

Quanto a Mino Carta, sem jamais admitir que sua hostilidade a Battisti se devia a ser fanático adepto do PCI e feroz inimigo dos que contestaram o PCI, transformou sua revista num panfleto de péssima qualidade, multiplicando as matérias rancorosas contra Battisti de forma tão obsessiva que acabou sendo rejeitado até pelos leitores do seu blogue. Aí, como o imperador que supõe ser, escafedeu-se do próprio blogue…

Finalmente, se a jornada kafkiana de Battisti chegou a bom termo, isto em muito se deve ao espírito de Justiça e à faina incansável de Fred Vargas, Carlos Lungarzo e Eduardo Suplicy; aos artigos magistrais de Dalmo Dallari; ao abnegado trabalho de divulgação desenvolvido por Rui Martins na fase em que poucos se interessavam pelo assunto; e à dedicação de uma militância jovem e apaixonada, que vestiu a camisa e deu o sangue pela causa.

Seria impossível lembrar e citar todos; nem isto é tão importante quando se luta por ideais. Nossa verdadeira recompensa é saber que ajudamos a impedir que este episódio terminasse como o de Olga Benário e de Sacco e Vanzetti.

Por mais difícil que se apresente e por mais poderosos que sejam os inimigos enfrentados, nenhuma luta está perdida na véspera. Esta é a lição que fica.

O fracasso de uma escalada autoritária

O Caso Battisti terminou em janeiro de 2009, quando o Governo brasileiro decidiu que havia motivos suficientes para conceder ao escritor italiano o direito de residir e trabalhar em nosso país.

Cumpriu o papel dos governos, que têm os meios e ferramentas para verificar, no exterior, quem persegue objetivos políticos e quem não passa de um bandido em pele de idealista.

O Judiciário não tem esses meios. Acabará se fiando, sempre, na palavra de governos interessados em repatriar pessoas, por motivos justos ou injustos.

Ou seja, a razão de estado tende a invariavelmente prevalecer sobre os direitos individuais, pois os juízes vão se basear nas sentenças condenatórias que têm em mãos e sua propensão é a de acreditarem na decisão tomada por seus congêneres do outro país. Seria a revogação, na prática, do instituto do refúgio.

Aqueles que descartam até a mera discussão da sentença italiana de Battisti são, curiosamente, os mesmos que contestam o entendimento cubano de que Orlando Zapata não passava de um preso comum. Um julgamento fraudado da Itália estaria acima de qualquer suspeita, mas as razões de Cuba são desconsideradas de pronto.

No entanto, salvo fazendo uma distinção apriorística, ideológica, entre os dois países, um Cezar Peluso da vida, a partir da documentação cubana e aplicando os mesmos critérios que utilizou no Caso Battisti, concluiria necessariamente que Orlando Zapata não passava de um mero delinquente.

Daí a pertinência da Lei do Refúgio brasileira, cujos procedimentos eram as mesmos dos de outras  nações: governos estrangeiros pleiteiam a extradição ao Judiciário, mas, quando o Executivo concede o refúgio, tal pedido fica automaticamente prejudicado e é arquivado.

Pois o Governo brasileiro, sim, poderia inteirar-se das informações que não estão nos autos, concluindo, no hipotético exemplo dado acima, que os dois casos não receberam tratamento isento das autoridades das respectivas nações, configurando, ambos, perseguição política.

CONTORCIONISMO JURÍDICO

Estou falando apenas em tese, pois, entrando nas especificidades do Caso Battisti, tenho de reconhecer que, além de desinformação, houve tendenciosidade pura e simples.

Pois a sentença da Itália é de uma clareza cristalina, ao condenar Battisti por ações praticadas com o objetivo de subverter o Estado italiano, mediante o enquadramento em lei criada especificamente para combater a contestação armada dos ultras.

Então, o que houve aqui foi um verdadeiro contorcionismo jurídico: a sentença italiana estaria certa quanto à culpabilidade de Battisti em três homicídios e à autoria intelectual num quarto; mas estaria errada ao considerar política a motivação desses quatro assassinatos.

Como a motivação política excluiria de imediato a possibilidade de extradição, o governo da Itália a requereu com o subterfúgio de mascarar a própria sentença que sua Justiça lavrou.

E o ministro Cezar Peluso ousou, no seu relatório, omitir e não levar em consideração algo que, conforme destacou seu colega Marco Aurélio de Mello, era citado nada menos do que TRINTA E QUATRO vezes na sagrada sentença italiana…

Por que? Aqui vou usar a liberdade que tenho, como leigo e como escritor, de apontar as motivações que saltaram aos olhos mas não podem ser provadas, de Cezar Peluso:

  • conservador e reacionário convicto, ele gostaria que a contestação política fosse criminalizada de uma forma que não é compatível com nosso atual ordenamento jurídico;
  • então, na tentativa de impor uma derrota exemplar à esquerda, abrindo um precedente para a crucificação de outros contestadores aqui e alhures, ele tratou de mascarar a realidade do Caso Battisti.
E o fez, p. ex., fingindo ignorar sua escancarada motivação política; utilizando cálculos engenhosos para eludir que a sentença italiana já estava prescrita; e se recusando a verificar (como lhe foi pedido pela defesa) se a condenação se deu mesmo à revelia, tendo Cesare sido representado por advogados que utilizaram procurações falsificadas para se passar por seus defensores, enquanto o prejudicavam e favoreciam co-réus.

Desde o início eu denunciei este vezo, primeiramente em Gilmar Mendes, depois em Cezar Peluso: eles queriam contrabandear para o Brasil a rigidez que os EUA e outros países adotaram a partir do atentado contra o WTC, limitando direitos humanos a pretexto de combaterem o terrorismo.

E, não encontrando respaldo para sua escalada autoritária nem no Executivo nem no Legislativo, tiveram de tentar resolver tudo na esfera do Judiciário, utilizando o Caso Battisti como ariete para arrombar várias portas legais.

Só criaram o caos. Depois de praticamente usurparem do Executivo a prerrogativa de decidir refúgio, detonando lei e jurisprudência, acabaram sendo detidos por um ministro que os apoiava, mas recuou horrorizado ante os descalabros jurídicos que se sucediam, cada um mais grave do que o anterior.

E chegamos à paradoxal situação atual, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva é chamado a decidir de novo o que seu governo já decidiu, soberanamente e com pleno direito de o fazer. Ou seja, o caso verdadeiramente acabou há mais de um ano, mas o STF lhe deu sobrevida artificial… para nada.

En passant, foi-se alongando a detenção arbitrária de quem jamais deveria ter sido preso no Brasil e há mais de três anos é mantido como nosso único preso político, para imensa vergonha de quantos juramos nunca mais deixar que o País incidisse nos abusos de 1964/85.

Não tenho dúvida de que a escalada autoritária será detida no fundamental: a derrota do linchamento togado de Cesare Battisti fará recuarem momentaneamente as forças do obscurantismo, que tentam exumar as práticas autoritárias não só do macartismo à italiana dos anos de chumbo, como das próprias ditaduras latinoamericanas.

É importante, entretanto, que os defensores dos direitos humanos e os cidadãos com espírito de justiça não se desmobilizem, continuando a defender os institutos do asilo político e do refúgio humanitário contra a sanha dos caçadores de bruxas.

Inclusive lutando para que, em casos futuros que tramitarem no STF, seja restabelecido o status quo ante, eliminando-se o samba do crioulo doido jurídico produzido pela primeira votação do julgamento do Caso Battisti, quando o Supremo resolveu apreciar um refúgio já concedido pelo Governo, ao invés de simplesmente arquivar o pedido de extradição, como sempre fizera .

Cesare Battisti ou Joseph K. (*)?

O Caso Battisti será debatido hoje (15/04) na Associação dos Professores da PUC/SP, a partir das 19 horas.

Quem puder, compareça: rua Bartira, 407, Capital.

Os demais poderão acompanhar a transmissão ao vivo no site http://www.passapalavra.info.

Estão confirmadas as participações do bom Carlos Lungarzo, que trouxe para o Comitê de Solidariedade a Cesare Battisti os conhecimentos adquiridos em três décadas de militância na Anistia Internacional; de outro professor, Lúcio Flávio de Almeida, do Depto. de Política da PUC/SP; e deste que vos escreve.

Outros defensores das causas justas poderão integrar a mesa, se conseguirem desvencilhar-se a tempo de seus compromissos. Somos poucos para tantas lutas.

Em pauta, a kafkiana situação do escritor italiano, preso há mais de três anos no Brasil por causa de crimes ocorridos há mais de três décadas na Itália e já prescritos (o tendencioso relator do processo de extradição no STF, Cezar Peluso, distorceu os cálculos…).

Crimes de que não foi acusado no primeiro julgamento, em julho de 1979, quando recebeu a exageradíssima sentença de 12 anos de prisão, por mera subversão contra o Estado italiano.

Crimes que lhe foram jogados nas costas quando o processo, já transitado em julgado, foi reaberto em 1987 por conta das delações premiadas de Pietro Mutti, o líder do grupo de ultraesquerda do qual Battisti havia participado.

Acusado por um juiz, noutro processo, de mentir sistematica e descaradamente à Justiça, distribuindo culpas de acordo com suas conveniências, Mutti inculpou Battisti por quatro assassinatos — e, pateticamente, a acusação teve de ser reescrita pelos promotores quando se constatou que dois desses episódios haviam ocorrido com um intervalo de tempo insuficiente para que Cesare pudesse ter se locomovido de uma a outra cidade.

Em vez de jogarem esse amontoado de mentiras no lixo, inventaram que Battisti teria sido o autor intelectual de um desses homicídios. Poderiam também ter-lhe atribuído o dom da ubiquidade, por que não? As fábulas aceitam tudo…

Com o único respaldo de outros interessados em favores da Justiça italiana, cujos depoimentos magicamente se casaram com os de Mutti, Battisti foi condenado em 1987 à prisão perpétua.

Depois ficou indiscutivelmente provado que, foragido no México, ele esteve representado nesse julgamento por advogados que não constituíra para tanto, os quais fraudaram procurações para apresentarem-se como seus defensores (embora houvesse conflito de interesses entre Battisti e os co-réus que eles também defendiam).

Nem sequer isto foi levado em conta pela Justiça italiana, que lhe nega o direito líquido e certo a novo julgamento, como qualquer sentenciado à pena máxima cuja condenação tenha se dado à revelia.

O quadro se completa com as pressões políticas e caríssimas campanhas de mídia que a Itália desenvolveu para convencer a França a renegar o compromissso solene que assumira com os perseguidos políticos italianos, de deixá-los residir e trabalhar em paz, desde que se abstivessem de interferir na política de sua pátria.

E com as descabidas pressões políticas sobre o governo brasileiro, depois que este, soberanamente, concedeu refúgio a Battisti.

Além da interferência exorbitante nos trâmites do caso no STF, com o servil consentimento de Cezar Peluso, que em momento algum mostrou a isenção inerente a um relator, tomando invariavelmente partido pela posição italiana contra Battisti e contra o ministro da Justiça do Brasil (que sempre deu e deveria continuar dando a última palavra nos casos de asilo político e refúgio humanitário).

Assim se roubaram três anos da vida de Cesare Battisti, cidadão que já foi mais do que punido pelo que realmente fez, mas querem transformar em bode expiatório do que não fez, como um símbolo do triunfo da pior direita européia sobre os ideais de 1968.

Fico me lembrando de uma peça decisiva na eleição de John Kennedy à presidência dos EUA: a foto de Richard Nixon, malencarado e com sorriso matreiro, mais a legenda “você compraria um carro usado deste homem?”. O eleitorado dos EUA não comprou.

Hoje, face aos escândalos sexuais, à corrupção escancarada, à brutal perseguição aos imigrantes, à antiga ligação com a Máfia e à óbvia condição de herdeiro político de Mussolini, seria o caso de se perguntar, sobre Berlusconi: você acreditaria numa cruzada encabeçada por este homem?

* Joseph K. é o personagem principal de “O Processo”, de Franz Kafka: um cidadão que, sem saber sequer do que o acusam, acaba sendo julgado e executado por um poder que atua nas sombras.

Caso Battisti será debatido 5ª feira na PUC/SP

Já lá se vão quase cinco meses desde que, em 17/11/2009, o Supremo Tribunal Federal admitiu o óbvio: cabe ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva determinar o destino do escritor e perseguido político Cesare Battisti, que jamais deveria ter sido detido em terras brasileiras e já teve sua condição de refugiado reconhecida pelo Ministério da Justiça.

Só um detalhe impede Lula de confirmar o que seu governo, soberanamente, decidiu em janeiro/2009: a inacreditável lerdeza com que o relator Cezar Peluso está desempenhando sua missão de mandar o acórdão do STF para publicação.

É o que falta para que o caso passe à alçada do nosso presidente e este coloque Battisti em liberdade, livrando o Brasil do opróbrio de estar mantendo (desde março/2007!!!) um prisioneiro político, mesmo depois de encerrado o período infame da ditadura militar.

Como bem notou Carlos Lungarzo, da Anistia Internacional, a obsessão berlusconiana em fazer cumprir uma sentença fraudulenta e já prescrita se deve a “uma mistura de ódio ilimitado, espírito de vendetta e sede de sangue”, tendo Battisti sido erigido em símbolo através do qual se tentam criminalizar os movimentos contestatórios do pós-1968.

Ele “foi convertido em inimigo por aqueles que são inimigos dos Direitos Humanos”, afirma Lungarzo. Concordo plenamente.

Daí a oportunidade do debate Cesare Battisti: três anos de prisão política, marcado para o próximo dia 15, às 19h, na Associação dos Professores da PUC/SP (rua Bartira, 407, no bairro paulistano de Perdizes).

Peço aos cidadãos com espírito de justiça que compareçam — e, também, que nos ajudem a divulgar, pois a luta para trazer luzes a este assunto vem sendo das mais desiguais. Os interesses dominantes preferem as trevas, como sempre.

Quanto aos colegas da imprensa, convido-os a tomarem conhecimento do contraditório  sistematicamente sonegado pela mídia ao longo destes três anos.

Nem que seja apenas para seu próprio esclarecimento, já que estão sendo impedidos de revelar a verdade…

O novo campeão da direita togada

Lungarzo compara o novo presidente do STF a um inquisidor medieval.

Visceralmente avesso aos podres poderes, só tomei conhecimento da existência de Cezar Peluso, ministro do Supremo Tribunal Federal, quando ele apresentou seu relatório no kafkiano julgamento do pedido de extradição do escritor italiano Cesare Battisti.

Fiquei pasmo: tendo várias vezes entrado em contato com a Justiça em minha longa trajetória de lutas, jamais vira um relator tão arbitrário. Conseguiu ser pior ainda do que os farsantes que atuavam nas auditorias militares durante a ditadura de 1964/85.

Assim o analisei imediatamente após a primeira sessão de julgamento:

“O ministro Cezar Pelluzo produziu um relatório tão parcial e tendencioso que, fosse o STF um tribunal que se desse ao respeito, não poderia sequer ter sido aceito.

“Pois o que se espera de um relator é uma apreciação desapaixonada, que avalie com equilíbrio os argumentos de ambas as partes, não o alinhamento incondicional com uma parte (a Itália) contra a outra (Cesare Battisti e o governo brasileiro)”.

Peluso está prestes a assumir a presidência da mais alta corte do País. Rodízio tem consequências nocivas como esta: conferir tamanho poder a quem dele fará o pior uso possível. Se como ministro tem sido uma calamidade, imaginem como presidente!

Daí a importância do que é revelado sobre Peluso no artigo Acórdão do Caso Battisti: críticas e propostas, de Carlos Lungarzo.

Como militante da Anistia Internacional há três décadas, Lungarzo acompanhou atentamente a trajetória recente desse juiz. E traça um perfil devastador, que nos deve inspirar muitas reflexões:

“…Peluso é o verdadeiro arquiteto da condenação do escritor italiano. (…) Peluso teceu complicadas falácias, às quais grudou fatos pseudo-históricos que temperou com sarcasmos e ofensas ao ministro da Justiça. Tático preciso no curto prazo, o relator rogou de joelhos a tutela da Itália, e poluiu os discursos de seus ‘dissidentes’, como no caso de Eros Grau, para tergiversar seu voto.

…ele não desesperou quando, apesar de todos seus esforços para criar o caos, não conseguiu que Eros Grau desistisse de votar pelo direito de Lula. Apertou os dentes e comentou sobre as conseqüências desse ato: se Battisti não fosse extraditado, ficaria eternamente preso no Brasil, porque só ele poderia liberá-lo. É mais que provável (embora não ainda provado) que sua experiência tenha ajudado o advogado da Itália a retificar a proclamação de resultado na extemporânea sessão de dezembro, fora de qualquer prática legal, coagindo Eros Grau a cair na ‘virada de mesa’, como foi chamada por Marco Aurélio.

Peluso não é um político ambicioso, um magistrado performático: é um personagem de O Nome da Rosa com experiência em acender fogueiras. Ele ficou famoso por vários votos que emitiu no STF desde que foi nomeado ministro.

Aborto de Anencéfalos

No dia 27/09/2004, o procurador geral Cláudio Fonteles, fundamentalista católico e militante franciscano, (…) requereu ao Plenário do STF uma definição sobre a liminar concedida por Marco Aurélio de Mello a uma mulher grávida de um feto anencefálico para poder abortar legalmente.

O julgamento, promovido pelo lobby dos bispos, mostrou (muito antes do caso Battisti) os riscos de uma sociedade na qual a justiça é distribuída por fanáticos místicos e pessoas que, sob qualquer pretexto, se aliam a eles… De maneira imprevisível para um país ocidental, pretensamente líder no continente, na alvorada do século 21, a liminar foi cassada parcialmente por 7 votos contra 4 durante a sessão do 20/10.

Nem todos esses sete votos em favor da tortura ritual foram da mesma intensidade. O voto de Cézar Peluso destacou-se por ser o único que cassava a liminar na íntegra, interrompendo de imediato qualquer processo no qual pudesse ser aplicada.

Alguém interrogou Peluso sobre a crueldade gratuita de uma lei que exigia gerar um filho que estava destinado a morrer imediatamente. O juiz não duvidou em sua resposta:

– Todos nascemos para morrer.

Durante uma sessão do tribunal, o advogado Barroso (um dos defensores do caso Battisti) e outros se referiram ao sofrimento de uma mãe que deveria passar meses de uma gravidez de altíssimo risco, para dar à luz uma criança com a qual criaria laços de carinho, e que veria morrer horas depois numa agonia horrível. Também então respondeu com convicção, para que ninguém pudesse acusá-lo de algum sentimento profano:

– O sofrimento não degrada a dignidade humana. É, ao contrário, essencial. O remorso também é sofrimento.

Se você duvida de que alguém possa ter dito algo dessa espécie num país ocidental no século 21, clique aqui.

Células-Tronco

No 29/05/2008, o STF chegou a uma conclusão favorável sobre a lei que permite o uso de células tronco embrionárias em pesquisas biológicas. Aquela sessão é considerada por todos uma das mais tumultuadas e confusas já tidas no tribunal. Segundo alguns observadores, inclusos colegas de Peluso, este teria hesitado sobre se deveria votar a favor ou contra. Entretanto, até alguns ministros conservadores se impressionaram pelos argumentos dos cientistas, e pelo terrível espetáculo de ativistas cadeirantes que reclamavam seu direito á vida e à felicidade nas redondezas do fórum.

Mas a lei contava com a maldição da CNBB, e de dois de seus Oberführer mais importantes: o monástico procurador Fonteles e o advogado dos militares, Ives Gandra Martins, ferrenho inimigo do Plano Nacional de DH e da Lei de Igualdade Racial. Peluso ficou algum tempo acima do muro, o suficiente para que seu voto fosse computado como negativo. No dia seguinte, tentou consertar a situação e, envergonhado, acusou aos membros da audiência de não ter entendido seu voto, que, segundo ele, era positivo.

Contra os DH

A magistratura curte, em sua maioria, um senso de sacralidade sobre sua própria atividade. Isto ficou em evidência quando a historiadora, escritora e antropóloga francesa Fred Vargas formulou suas famosas 13 perguntas ao Ministro Peluso, nas quais as falácias do relatório ficavam expostas, e as afirmações inverídicas sobre fatos eram contrastadas com os fatos reais acontecidos durante os 4 crimes tortuosamente imputados a Battisti.

Peluso, comprometido com o holocausto de Battisti, recusou-se a responder as perguntas formuladas por Vargas, e até a pedir documentos que a Itália sonegava, que teriam importância fundamental para julgar o extraditando. P. ex., o relator rejeitou a possibilidade de conferir (com uma perícia feita no Brasil) a falsificação que o Tribunal do Júri de Milão fez das procurações atribuídas a Battisti. Veja minha demonstração passo-a-passo das provas encontradas por Fred Vargas aqui.

O currículo de Peluso contra os DH não se limita a atacar o direito à diversidade religiosa (quando defendeu a presença do crucifixo no STF), nem a negar os direitos biológicos ao aborto e à saúde, nem mesmo a condenar inocentes em função de interesses da direita, a cuja parte mais arcaica e inquisitorial ele pertence. Não é “apenas” isso, não…

No ano 2005, antes de ter adquirido sua fama atual, já Peluso adotou uma atitude condizente com sua vocação. Concedeu habeas corpus ao coronel Mario Colares Pantoja, comandante do massacre em Eldorado dos Carajás (Pará), no qual 19 manifestantes sem-terra pacíficos foram assassinados. Um prêmio merecido para aqueles que querem limpar o planeta de inconformados que exigem os direitos que só os senhores merecem. Se a faxina for feita com sangue, o espaço ficará mais limpo.

Este é um retrato rápido, rigorosamente documentado, do homem que mantém Cesare Battisti como refém. Uma pessoa que louva o sofrimento (dos outros), que acredita na identidade entre o ser humano e o esperma ancorado no óvulo, despreza os plebeus que se incomodam com o despotismo do Judiciário, louva a presença de cadafalsos num país considerado laico, e facilita a vida de genocidas.

Puritanismo, sadismo, carolice, desprezo pela humanidade. Este é o homem que os milhares de amigos de Battisti devemos confrontar. Detrás dele, o poder da espada, a cruz e a mídia. Uma luta desigual da qual não podemos fugir.”

O Acórdão do Caso Battisti: Críticas e Propostas


Desde novembro de 2009, quando o Presidente Lula admitiu ter chegado a uma decisão sobre a extradição de Cesare Battisti, começou a crescer a convicção de que sua resposta seria a rejeição. Essa idéia firmou-se através de diversos boatos, e foi admitida como inevitável pelas forças de direita no Brasil e no exterior, que reduziram ao mínimo suas antes exuberantes provocações e ameaças. Também esse desfecho tornou-se evidente para a esquerda italiana exilada nas Américas e na Suíça, na França e na Escandinávia, e para os ativistas e intelectuais franceses.

Entretanto, o acórdão que deve legalizar o parecer do Supremo Tribunal continua estagnado, enquanto o escritor italiano já completou três anos de uma prisão iníqua, contrária às leis nacionais e internacionais. Embora o processo foi encerrado pouco antes do Natal, e completa agora seus 4 meses, a demora não é compatível com a situação específica deste caso: uma pessoa foi condenada de maneira fraudulenta, cumpre uma prisão cujo caráter ilegal é cediço, e um chefe de estado espera para poder manifestar sua decisão e fechar a questão para sempre.

Impotente para torcer a vontade presidencial, e consciente de que as ameaças de julgar novamente o caso (agora com base na decisão de Lula) é um blefe de fulheiro de carteado, o egrégio colegiado se limita a demorar a publicação do acórdão tanto como seja possível. Se não obtiver algum benefício de uma situação nova que, sem dúvida, não surgirá, pelo menos terá a satisfação de estender ao máximo o sofrimento moral de Battisti e dos milhares de pessoas que o apóiam no Brasil e na França.

Estes fatos devem servir de estímulo, não para alarme geral, mas para uma ação racional e coordenada da comunidade de DH e do círculo de solidariedade com Battisti. Mesmo que o escritor italiano tenha mostrado sempre sua solidez emocional e a força de suas convicções, a submissão a uma tortura psicológica planejada pelo maior órgão jurídico de um estado, deve lembrar que a parte saudável da sociedade não pode tornar-se cúmplice, por omissão, de um fato que escarnece o senso mais básico de humanidade.

A Saga do Acórdão Infinito

A mídia, se adequando à nova situação, tem substituído os ataques contínuos e degradantes por insinuações leves que visam apenas gerar decepção no círculo de amigos de Battisti e nos verdadeiros ativistas de DH. Em geral, os jornais apresentam as opiniões ou desejos da direita política e judicial como se fossem informações de fatos reais.

Assim, por exemplo, quando Cesare foi condenado a 2 anos de limitação da liberdade em regime aberto, vários colunistas deixaram deslizar, como se fossem notícias ouvidas por acaso, algumas frases de incerteza para confundir os defensores dos DH. A mais frequente era que “Lula poderia deixar o caso para depois do fim da pena”, mas, sendo que seu mandato termina em dezembro, “a decisão ficaria para o sucessor”. Este ato de terrorismo mediático foi repetido em três grandes jornais e em algumas redes de TV, instruídas por setores políticos e judiciais para criar dúvidas e inseguranças.

O truque pode ter produzido um impacto efêmero em alguns ativistas, especialmente entre os que moram no exterior e não conseguem decodificar as cínicas campanhas da mídia mercenária nacional. Mas, logo em seguida, perdeu efetividade. Apesar de sua inocuidade contra um público experiente em ouvir terrorismo verbal, estas provocações macias podem continuar. Para os serviços de comunicação da direita e para os próprios jornais, esta infiltração de intrigas não gera um grande desgaste: embora não efetiva, tampouco é custosa.

No caso do acórdão, a imprensa se tornou parceira mais fiel das instigações da direita judicial. Com efeito, desde alguns setores do STF se fez circular, já desde dezembro, a “dificuldade” para redigir um acórdão que, segundo o relator, desafiava sua capacidade intelectual.

Deve ser muito forte a auto-estima do ministro Peluso, para acreditar que um problema precisa ser difícil para desafiar sua inteligência.

De qualquer maneira, o problema de redigir uma sentença, acórdão, súmula ou qualquer documento cujo conteúdo já está construído, é uma simples questão de digitação e leitura.

Entretanto, a imprensa também se tornou eco destas provocações de baixa voltagem, porém frequentes. Alguns jornais explicavam a seus leitores que um acórdão é um documento complexo, que exige o relatório de todas as ações acontecidas durante as sessões, a reprodução das alegações dos ministros e dos advogados, as discussões entre eles, e a apresentação da “decisão” (em realidade, da opinião) final do tribunal. Também insistiam na dramática complexidade deste caso, onde, pela primeira vez, o STF devia decidir sobre os direitos de um presidente.

Como é sobejamente conhecido, o conteúdo das sessões é transcrito durante o decorrer das falas, e sua ordenação e sistematização é um trabalho puramente lingüístico e não jurídico. O único ponto delicado é a leitura e aquiescência de todos os magistrados que intervieram no processo. É verdade que o STF está superlotado de trabalho, por causa da tendência brasileira, ironizada pelo ministro Marco Aurélio, de incumbir à Corte de todos os fenômenos da vida do país. Entretanto, o caso Battisti merece prioridade por vários motivos. O mais importante é a regra internacional que exige que atos jurídicos sobre pessoas que estão privadas da liberdade devem ter preferência na apreciação dos juízes.

A Balada do Relator

Cézar Peluso é muito menos mencionado que Gilmar Mendes. Como líder de uma autêntica direita, empenhada na desestabilização do governo e no extermínio dos movimentos sociais, dotado de uma capacidade excepcional de colocar-se em evidência e agredir outros poderes ou grupos populares, Mendes é muito mais conhecido que o reservado relator.  Contudo, apesar de ser visto como um disciplinador da “ralé” e um arauto da faxina social, a classe média não é entusiasta do ministro. Sua leniência com os colarinhos brancos incomoda o alpinismo social da pequena burguesia, a qual, animada pelo tesão de participar no bolo das camadas ricas, observa com angústia como este é devorado pelos grandes estelionatários.

A figura de Mendes promove ânimos contraditórios. Durante um tempo, uma revista da burguesia nacionalista e populista (que fora favorita da esquerda (?) antes do caso Battisti), atacou a Mendes justamente por seu perfil despótico. Essa revista publicou até matérias valiosíssimas sobre a desaparição de Andréa Wonsoski, cujo caso você poder ver aqui. Mas, após de que Mendes se perfilasse como o decapitador de Battisti, seus editores começaram a colocar sua figura em suas hagiografias.

Entretanto, comparando os discursos de ambos, fica claro que, menos agressivo, mais informado e mais insidioso, Peluso é o verdadeiro arquiteto da condenação do escritor italiano. O ex-chefe do STF manteve sempre um clima de ameaça e provocação estridentes, colocando o Presidente Lula em situações humilhantes. Já Peluso teceu complicadas falácias, às quais grudou fatos pseudo-históricos que temperou com sarcasmos e ofensas ao ministro da Justiça. Táctico preciso no curto prazo, o relator rogou de joelhos a tutela da Itália, e poluiu os discursos de seus “dissidentes”, como no caso de Eros Grau, para tergiversar seu voto.

Peluso é também sutil na lutas. Evita o confronto escandaloso e prefere a insinuação lacerante. Enquanto Mendes está mais para chefe de um batalhão da ROTA, Peluso está mais para o Inquisidor de Jeremy Irons no filme Casanova. Por exemplo, ele não desesperou quando, apesar de todos seus esforços para criar o caos, não conseguiu que Eros Grau desistisse de votar pelo direito de Lula. Apertou os dentes e comentou sobre as conseqüências desse ato: se Battisti não fosse extraditado, ficaria eternamente preso no Brasil, porque só ele poderia liberá-lo. É mais que provável (embora não ainda provado) que sua experiência tenha ajudado o advogado da Itália a retificar a proclamação de resultado na extemporânea sessão de dezembro, fora de qualquer prática legal, coagindo a Eros Grau a cair na “virada de mesa”, como foi chamada por Marco Aurélio.

Peluso não é um político ambicioso, um magistrado performático: é um personagem de O Nome da Rosa com experiência em acender fogueiras. Ele ficou famoso por vários votos que emitiu no STF desde que foi nomeado ministro.

Aborto de Anencéfalos

No dia 27/09/2004, o Procurador Geral Cláudio Fonteles, fundamentalista católico e militante franciscano, que compartilha as teorias biológicas da Igreja, aquelas que no século 13 se aplicavam para tirar os demônios dos corpos dos possuídos, requereu ao Plenário do STF uma definição sobre a liminar concedida por Marco Aurélio de Mello a uma mulher grávida de um feto encefálico para poder abortar legalmente.

O julgamento, promovido pelo lobby dos bispos, mostrou (muito antes do caso Battisti) os riscos de uma sociedade onde a justiça é distribuída por fanáticos místicos e pessoas que, sob qualquer pretexto, se aliam a eles para escalar. De maneira imprevisível para um país ocidental, pretensamente líder no continente, na alvorada do século 21, a liminar foi cassada parcialmente por 7 votos contra 4 durante a sessão do 20/10.

Nem todos esses sete votos em favor da tortura ritual foram da mesma intensidade. O voto de Cézar Peluso destacou-se por ser o único que casava a liminar na íntegra, interrompendo de imediato qualquer processo na qual pudesse ser aplicada.

Alguém interrogou Peluso sobre a crueldade gratuita de uma lei que exigia gerar um filho que estava destinado a morrer imediatamente. O juiz não duvidou em sua resposta:

– “Todos nascemos para morrer.

Durante uma sessão do tribunal, o advogado Barroso (um dos defensores do caso Battisti) e outros se referiram ao sofrimento de uma mãe que deveria passar meses de uma gravidez de altíssimo risco, para dar a luz uma criança com a qual criaria laços de carinho, e que veria morrer horas depois numa agonia horrível. Também então respondeu com convicção, para que ninguém pudesse acusá-lo de algum sentimento profano:

-“O sofrimento não degrada a dignidade humana. É, ao contrário, essencial. O remorso também é sofrimento.

Se você duvida de que alguém possa ter dito algo dessa espécie num país ocidental no século 21, clique aqui.

De passagem, Peluso referiu-se às “intenções” dos que defendiam a liminar. Segundo ele, se exige do STF que decida com base nas mudanças no conhecimento científico, e acrescentou:

Isto “não deixa dúvida quanto à impossibilidade”.

A resposta foi clara e precisa, com o mesmo rigor que a daria (com o devido respeito para o senhor juiz) um cientista, e seu significado é transparente. Ouso conjeturar que na mente do ministro estavam estas palavras:

A ciência nada tem com as verdades imutáveis da justiça, que são as da fé. Os que não gostarem, ocuparão o lugar de Galileu, Giordano Bruno, Miguel Servet e todos os outros”.

Células-Tronco

No 29/05/2008, o STF chegou a uma conclusão favorável sobre a lei que permite o uso de células tronco embrionárias em pesquisas biológicas. Aquela sessão é considerada por todos uma das mais tumultuadas e confusas já tidas no tribunal. Segundo alguns observadores, e incluso colegas de Peluso, este teria hesitado sobre se devia votar a favor ou contra. Entretanto, até alguns ministros conservadores se impressionaram pelos argumentos dos cientistas, e pelo terrível espetáculo de ativistas cadeirantes que reclamavam seu direito á vida e à felicidade nas redondezas do fórum.

Mas a lei contava com a maldição da CNBB, e de dois de seus Oberführer mais importantes: o monástico procurador Fonteles e o advogado dos militares, Ives Gandra Martins, ferrenho inimigo do Plano Nacional de DH e da Lei de Igualdade Racial. Peluso ficou algum tempo acima do muro, o suficiente para que seu voto fosse computado como negativo. No dia seguinte, tentou concertar a situação e, envergonhado, acusou aos membros da audiência de não ter entendido seu voto, que, segundo ele, era positivo.

Contra os DH

A magistratura curte, em sua maioria, um senso de sacralidade sobre sua própria atividade. Isto ficou em evidência quando a historiadora, escritora e antropóloga francesa Fred Vargas formulou suas famosas 13 perguntas ao Ministro Peluso onde as falácias do relatório ficavam despidas, e as afirmações inverídicas sobre fatos eram contrastadas com os fatos reais acontecidos durante os 4 crimes tortuosamente imputados a Battisti.

O exercício natural (não apenas nas democracias, mas até na ditadura brasileira dos anos 70) de que um cidadão formule perguntas ou objeções à justiça foi recebido por alguns togados enraivecidos como um ataque contra sua sacralidade. A estrangeira não tinha entendido que justiça no Brasil é assunto das elites e dos poderosos, e que pedir isonomia é uma afronta ao totemismo jurídico.

Peluso, comprometido com o holocausto de Battisti, recusou-se a responder as perguntas formuladas por Vargas, e até a pedir documentos que a Itália sonegava, que teriam importância fundamental para julgar o extraditando. Por exemplo, o relator rejeitou a possibilidade de conferir (com uma perícia feita no Brasil) a falsificação que o Tribunal do Júri de Milão fez das procurações atribuídas a Battisti. Veja minha demonstração passo-a-passo das provas encontradas por Fred Vargas aqui.

O currículo de Peluso contra os DH não se limita a atacar o direito á diversidade religiosa (quando defendeu a presença do crucifixo no STF), nem a negar os direitos biológicos ao aborto e a saúde, nem mesmo a condenar inocentes em função de interesses da direita, a cuja parte mais arcaica e inquisitorial ele pertence. Não é “apenas” isso, não..

No ano 2005, antes de ter adquirido sua fama atual, já Peluso adotou uma atitude condizente com sua vocação. Concedeu habeas corpus ao coronel Mario Colares Pantoja, comandante do massacre em Eldorado dos Carajás (Pará), no qual 19 manifestantes sem-terra pacíficos foram assassinados. Um prêmio merecido para aqueles que querem limpar o planeta de inconformados que exigem os direitos que só os senhores merecem. Se a faxina for feita com sangue, o espaço ficará mais limpo.

Este é um retrato rápido, rigorosamente documentado, do homem que mantém Cesare Battisti como refém. Uma pessoa que louva o sofrimento (dos outros), que acredita na identidade entre o ser humano e o esperma ancorado no óvulo, despreza os plebeus que se incomodam com o despotismo do judiciário, louva a presença de cadafalsos num país considerado laico, e facilita a vida de genocidas.

Puritanismo, sadismo, carolice, desprezo pela humanidade. Este é o homem que os milhares de amigos de Battisti devemos confrontar. Detrás dele, o poder da espada, a cruz, e a mídia. Uma luta desigual da que não podemos fugir.

O Que Significa o Caso Battisti?

Um sobrevivente de Araguaia me disse que Battisti era um herói. Pessoalmente, acho que classificações como herói, santo, gênio e similares nos afastam da realidade humana, onde alguns têm certos atributos e outras possuem “virtudes” ou “defeitos” diferentes. Herói lembra muito a militarismo e misticismo. Battisti é um homem íntegro, inteligente, fiel à causa que defendeu toda sua vida, e um escritor de talento. Um ser humano parecido a milhões neste planeta, e diferente de outros milhões.

No começo, deveríamos defender Cesare porque é uma pessoa vítima de uma injustiça, da coprofagia da mídia, da barbárie das elites, das forças da repressão e de seus fieis escudeiros, alguns magistrados. Cesare, porém, foi convertido pela sanha excepcional de seus inimigos, numa figura especial, num símbolo. Não estou defendendo nenhuma metafísica. Não atribuo a Battisti nenhuma iluminação, nenhum poder especial.

Ele se tornou especial apenas, porque, por uma mistura de ódio ilimitado, espírito de vendetta, sede de sangue, foi convertido em inimigo, por aqueles que são inimigos dos Direitos Humanos.

O calvário de Battisti não tange apenas aos que somos ativistas permanentes dos DH, mas também a todos cujos direitos são ameaçadas. Os que estão contra Battisti não atacam apenas um projeto socialista ou libertário de sociedade. Também atacam o direito á vida privada. No quadro de Peluso que traçamos acima, vemos que os inimigos de Battisti são os inimigos do direito das mulheres a decidir sobre seus úteros, são os que duvidam sobre se devem permitir que cadeirantes andem por suas próprias pernas, são os que se deliciam com a figuras de genocidas circulando livremente.

Devemos apoiar a causa de Cesare porque é um ser humano injustiçado, porque é um amigo, mas principalmente, porque seus inimigos são os defensores das trevas e a barbárie, porque o triunfo de seus inimigos seria um golpe brutal na civilização.

Pensemos que o padre Ubaldo Steri, chefe de Charitas, defende a extradição de Battisti. (Vide) Uma pessoa não é responsável por tudo o que faz a instituição á que pertence, e até pode não aprová-lo, mas organizações totalitárias, que recusam a autocrítica, contaminam com seus atos todas suas hierarquias. Aliás, a direção de Charitas é um posto de relevo dentro da Igreja. Então, estamos na época certa para um minuto de reflexão. Também a Igreja está entre os inimigos de Battisti, uma instituição que treme desde a cúpula com os clamores de crianças estupradas.

Apoiar a causa de Battisti é um problema da dignidade (não se curvar a pressões de feitores e bajuladores do poder), de justiça (não condenar um inocente), de humanitarismo (proteger um lutador social) e de defesa (nos protegermos de seus inimigos, cujo espetro de atrocidades passa da pedofilia aos assassinatos de camponeses e à tortura de mulheres grávidas).

Esquema de um Plano de Ação

O que as leis prescrevem no caso Battisti é sobejamente conhecido. No entanto, por  natural confiança na capacidade profissional das pessoas, a maioria acredita na palavra de especialistas. Portanto, devemos convocar aos juristas que apóiam a causa de Cesare a escrever um folheto explicativo, onde se demonstre de maneira detalhada, porém amena, por que Battisti deve ser liberado, asilado e protegido. Lembremos que de todos os mais respeitados juristas brasileiros, apenas um está contra Battisti, e talvez seja mais por saudosismo familiar que por convicção.

Deveríamos também nos reunirmos todos os apoiadores de Cesare, de todos os níveis e hierarquias. Talvez seja o momento em que as celebridades que defendem os DH não se envergonhem de trabalhar junto a desconhecidos. Afinal, o caso de Battisti é de risco de morte, e nada é mais democrático que a morte.

Desejo, salientar, falando nisso, que tenho oferecido à Comissão de DH da Câmara a possibilidade de proferir uma palestra apresentando minha formulação passo a passo das descobertas de Fred Vargas sobre a fraude das procurações dos advogados italianos de Cesare. Minha prova, sobre a qual publiquei uma matéria a semana passada, está numa apresentação PowerPoint de meu site e meu blog.

https://sites.google.com/site/lungarbattisti

http://ocasodecesarebattisti.blogspot.com

Não recebi nenhuma resposta. Minha investigação, baseada na descoberta de Fred Vargas, é pessoal e não estou pedindo privilégios oriundos da minha ONG. Creio, humildemente, que minha apresentação mostra de maneira irrefutável que as procurações foram falsificadas, e que só não acreditarão nela os que já têm compromisso com a condenação de Cesare.

Mantenho minha proposta para qualquer outro grupo que possua condições de tornar pública a exibição desta apresentação.

Além disso, os companheiros mais próximos dos movimentos sociais e com mais penetração nos grupos de Direitos Humanos, tal vez poderiam organizar um ato num local protegido para manifestar, de maneira muito clara, nossa posição sobre o caso do acórdão, e assinar um compromisso público de defesa de Battisti até as últimas conseqüências. Só nas minhas redes sociais há mais de 3000 pessoas que apóiam sem reserva a luta em favor de Battisti, e muitos outros que simpatizam com ela.

Não deve excluir-se, como ação intermédia, um reclamo internacional junto aos tribunais e comissões de DH do resto do mundo. Porque, além de todas as razões invocadas, a decisão do STF tem ferido quase mortalmente o direito de asilo, e tem cuspido sobre os compromissos internacionais de Genebra (1951, 1967) e em todos os derivados deles.

Battisti é apenas uma pessoa como todos nós, mas os fascistas e místicos o têm convertido num símbolo. Da defesa desse símbolo pode depender o futuro dos DH não apenas no Brasil, mas em toda a região.