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Um martírio político e o momento brasileiro

Neste domingo, em Roma, em uma mesma cerimônia, o papa Francisco vai proclamar como santos o papa Paulo VI e Dom Oscar Romero, arcebispo de San Salvador, assassinado em 1980, quando celebrava a eucaristia em uma capela de hospital.

Sobre o processo de canonização e o seu estilo, muitos de nós temos críticas e desejamos uma renovação mais de acordo com o evangelho. Antes de tudo, devemos lembrar que São Paulo chama todos os batizados de santos, santificados pela graça. Por isso, é bom sempre repetir: o papa não torna ninguém santo. Apenas, proclama que tal pessoa (que já está no céu pela graça divina) tem seu nome na lista (no canon) dos santos,  por ser reconhecido/a como exemplo de santidade para o povo de Deus. Hoje, qualquer pessoa mais crítica contesta os critérios medievais usados durante o processo, além de que em uma Igreja mais sinodal, se deveria esperar que o método do processo de canonização se torne menos monárquico e, economicamente, mais acessível ao mundo dos pobres. Apesar disso tudo, é certo que, para o mundo inteiro, as canonizações desse domingo são muito significativas.

Paulo VI foi o papa que continuou o Concílio Vaticano II e se tornou responsável pela renovação da Igreja que o Concílio propôs. Foi o papa que foi a Jerusalém, abraçou o patriarca Atenágoras e juntos aboliram os documentos de excomunhão mútua publicados em 1054. Paulo VI é o papa que deu a tiara (tríplice coroa), até então usada por todos os papas. Ele a deu para projetos sociais que beneficiassem os pobres. E assim deu o primeiro passo para o papa deixar de ser chefe de Estado, processo que os papas seguintes não quiseram continuar. Canonizar Paulo VI é um modo claro de valorizar o esforço de renovação e retomá-lo nos ambientes eclesiais nos quais o antigo regime ainda domina. Proclamar Paulo VI como santo é deixar claro que o trabalho de renovação da Igreja pode ser um belo caminho de santidade.

Quanto à canonização de Oscar Romero, o mundo inteiro sabe que alguns bispos de El Salvador e grupos dentro do Vaticano fizeram de tudo para evitar a canonização. Não vale a pena repetir as intrigas e maledicências inventadas para destruir a honra de Romero. No tempo da beaficação, o papa Francisco chegou a afirmar que ele foi mártir duas vezes: no dia em que perdeu a vida por seu amor aos pobres e depois quando, já morto, foi vítima de calúnias para manchar sua imagem e destruir sua profecia. Agora, ao colocar o nome de Romero na lista dos santos, o papa simplesmente reconhece o fato de que, desde 1980, os pobres da América Latina já chamam Romero de “São Romero de las Américas”. 

Essa canonização, além de ter esse significado profundo para a América Latina, é o reconhecimento de um martírio de conteúdo profundamente social e político. O papa e todas as pessoas que conhecem a história sabem que Monsenhor Romero não foi um santo da caridade, no estilo de Madre Teresa de Calcutá, de Charles de Foulcaud ou de Santa Terezinha do Menino Jesus, figuras maravilhosas da Igreja. Romero testemunhou o reino de Deus e deu sua vida, ao tomar partido na luta de libertação do povo de El Salvador e ao enfrentar uma ditadura com a qual os outros bispos, em sua maioria,  eram condescendentes. Embora desarmado e sem nenhum vínculo direto com a guerrilha, foi profeta da justiça e do direito do povo e de sua libertação. Romero foi e é um mártir político.

A expressão não é minha. Um dos maiores teólogos cristãos da atualidade, Jungmann Moltmann, pastor evangélico alemão afirmou: “No antigo império romano, os mártires que se negavam a prestar culto ao imperador, contribuíram a propagar a liberdade. (cometeram um ato de subversão política). Assim também em nossos tempos, as Igrejas que esquecem a seus mártires políticos estão em perigo de acomodar-se à religião política da sociedade em que vivem” (do livro La Iglesia, fuerza del Espíritu, Salamanca, 1978, p. 118).

Atualmente, muitos cristãos se perguntam como foi possível que, apesar de uma minoria profética que denunciou isso, a maioria do clero e dos fieis católicos e evangélicos foram coniventes e até colaboradores com a escravidão dos índios e negros. Do mesmo modo, pode ser que, em um futuro próximo, cristãos se perguntem: Como se tornou possível que, no começo do século XXI, no Brasil, nos Estados Unidos e em outros países, pastores e fieis, católicos e evangélicos, tenham escolhido votar na extrema direita?

Todos sabem que esses seus candidatos conservadores farão tudo para manter as desigualdades sociais. Sempre ficam do lado da elite rica contra os empobrecidos. São adeptos de guerras e violências. No entanto, bispos, pastores, padres e fieis, votam neles. Será porque, no terreno da moral sexual, esses fascistas, embora não vivam, defendem a moral tradicional? Certamente, além desses cristãos fundamentalistas, preocupados obsessivamente com os temas da moral sexual, muitos outros têm no seu DNA uma tendência de apoiar pessoas autoritárias e com tendência totalitária. Por que? As Igrejas assistem a essa tragédia e não se perguntam em que erraram na formação de seus ministros e fieis. E o mundo teria o direito de se perguntar o que, hoje, Jesus diria desse Cristianismo de direita.

Certamente, essa ala tradicional da Igreja, pouco ligará para a canonização de Oscar Romero. Na cerimônia de sua beatificação, um cardeal chegou a pregar que Monsenhor Romero é santo porque tinha uma profunda devoção a Virgem Maria, ao papa e ao Santíssimo Sacramento (nessa ordem).  O mundo inteiro sabe que, nesse domingo, em Roma, ao canonizar Romero, não será essa a pregação do papa Francisco. Para usar um termo de Santo Inácio de Antioquia, no começo do Cristianismo, “a luta social e política de Monsenhor Romero junto a seu povo e o seu testemunho de amor aos pobres o torna para nós Palavra viva de Deus”. Santo Oscar Romero, rogai a Deus por nós e ajudai-nos no caminho da conversão nossa e de nossas Igrejas”.

Medellín 50 anos

Medellin, Igreja para todos a partir dos pobres

 Há 50 anos, aos 6 de setembro de 1968, se encerrava a 2ª Conferência dos bispos católicos da América Latina e Caribe. Ela ocorreu em Medelllín (Colômbia) e significou praticamente o nascimento de uma Igreja com cara latino-americana e caribenha. De fato, a Igreja Católica está presente no continente desde a colonização há mais de 500 anos, mas somente a partir de 1968 conseguiu deixar de ser uma Igreja europeia que parecia sempre estrangeira.

 A conferência de Medellín teve como tema “A missão da Igreja no processo de transformação social e política da América Latina”. Pela primeira vez, um papa atravessou o Atlântico e Paulo VI abriu a conferência, dando aos bispos apoio e estimulando a que eles adaptassem o Concílio Vaticano II ao continente, mas indo além  dele. Na época, Dom Helder Camara e depois Dom Pedro Casaldáliga afirmaram: “Para a América Latina, Medellín foi um verdadeiro Pentecostes”.

Medellín se caracterizou por três temas fundamentais:

  1. saber ler e interpretar os sinais dos tempos, como havia proposto o papa João XXIII. (Isso significa prestar atenção e inserir-se na realidade social, política e cultural de nossos povos).
  2. A partir da situação de profunda desigualdade social e injustiça existente no continente, a Igreja deve sempre unir-se aos pobres, apoiar as suas organizações próprias e unir-se a eles na caminhada por sua libertação.
  3. A libertação social e política dos povos e de cada pessoa não é apenas uma meta qualquer. É etapa e sinal da salvação que Jesus veio trazer ao mundo. Por isso, os processos de libertação dos povos e das pessoas fazem parte intrínseca e essencial da missão da Igreja.

A missão da Igreja não é apenas religiosa, nem principalmente cultual. Em Medellín, os bispos nos ensinaram que a missão da Igreja é testemunhar e ensaiar no mundo o reino de Deus, isso é, o projeto divino de justiça e de paz. Entre muitas afirmações e propostas importantes, em Medellín, os bispos concluíram que a Igreja deve ser pobre, missionária e pascal, ou seja, como diz o papa Francisco “em saída”. Sua missão é servir como libertadora “de toda a humanidade e de cada ser humano por inteiro”(Cf. Conclusões de Medellin, 5, 15).

A partir de Medellín, surgiu no continente um novo modo de ser Igreja que se expressou nas comunidades eclesiais de base, nos grupos bíblicos, nas pastorais sociais e na inserção de uma parte das Igrejas na caminhada da libertação. De 1968 para cá, o mundo mudou muito. O Império norte-americano conseguiu invadir vários países. Ele provocou várias guerras, vendeu e usou suas armas. Matou uma boa quantidade de pobres, africanos, asiáticos e latino-americanos, considerados descartáveis.

Quanto à Igreja Católica, ela sobrevive a várias crises e escândalos de diversos tipos. No entanto, a traição mais séria dos eclesiásticos mais tradicionais não é em matéria de moral sexual. É questão de humanidade. O que está vindo à tona como omissão, ou conivência culpável de autoridades religiosas atesta uma insensibilidade em relação a vítimas inocentes. No entanto, revela um desvio mais profundo e radical: o afastamento do caminho do evangelho de Jesus. Esse não se interessou em fazer uma religião ou em deixar no mundo uma estrutura de poder que se auto-protegeria. Conforme o evangelho de Lucas, seu projeto, proclamado, em seu primeiro discurso público foi: “O sopro (Espírito) de Deus veio sobre mim e me enviou para trazer a libertação dos oprimidos, curar os doentes e  proclamar um ano de graça (jubileu) de libertação para todos” (Lc 4, 16- 21).

No decorrer da história, os eclesiásticos reinterpretaram esse texto em um sentido espiritualizador. A cura se refere aos problemas interiores e a libertação é a salvação da alma. Aqui, o mundo pode continuar dominado pelos senhores do dinheiro e do poder. Infelizmente, ainda há eclesiásticos que, enquanto podem, lhes são muito próximos. Em séculos passados, muitos bispos e padres davam assistência espiritual aos senhores de escravos e, de vez em quando, eles mesmos recebiam alguns escravos como presentes. Essa forma de interpretar a fé e a espiritualidade se mantém muito forte seja no Congresso Nacional, onde está bem representada pela chamada “bancada evangélica”, como pelo comércio religioso, que cada dia é mais lucrativo. Agora, através dos 50 anos da conferência de Medellín e das crises pelas quais passa a Igreja, os cristãos e cristãs são chamadas a “ouvir o que o Espírito diz, hoje, às Igrejas”e “voltar ao seu primeiro amor” (Ap 2, 5- 7). Na Bíblia, o primeiro amor do povo foi o Êxodo, onde conheceu intimamente a Deus, em meio à caminhada da libertação. É preciso voltar a essa mística da caminhada libertadora.

Quando a Igreja passa a olhar apenas para si mesma e se preocupa apenas com suas atividades internas, se torna idólatra. Deixa de ser sinal de Jesus Cristo e apresenta uma imagem mesquinha e indigna de Deus. Ainda bem que, nas periferias, com ou sem apoio oficial, as comunidades e pastorais proféticas continuam obedecendo a voz do Espírito que sopra onde quer. Medellín foi um marco e precisamos lembrá-lo porque, em muitos casos, a nossa Igreja em 2018 parece que nem consegue ainda chegar ao que Medellín chegou em 1968. No entanto, é claro que, hoje, os desafios são outros e é urgente nos abrir ao que o Espírito diz hoje às Igrejas. Como disse Paulo, “onde houver espírito de liberdade, aí está o Espírito de Deus” (2 Cor 3, 17).

A dimensão socioestrutural da opção pelos pobres

Por Francisco de Aquino Júnior*

A Igreja da América Latina ajudou o conjunto da Igreja a redescobrir nas últimas décadas a centralidade dos pobres e marginalizados na revelação e na fé cristãs. Apesar das ponderações, das advertências, dos receios e das “precisões”, admite-se, em geral, que o cuidado dos pobres e marginalizados é constitutivo da fé cristã.

E essa consciência foi assumida de modo explícito inclusive pelo magistério da Igreja de Roma. Na Carta Encíclica Solicitudo rei sociales, 1987, João Paulo II fala da “opção ou [do] amor preferencial pelos pobres” como um dos temas e uma das orientações “repetidamente ventilados pelo Magistério nestes últimos anos” (SRS, 42). Na Carta Encíclica Deus caritas est, 2005, Bento XVI fala da caridade como um dos “âmbitos essenciais” da Igreja. Ela “pertence tanto à sua essência como o serviço dos sacramentos e o anúncio do Evangelho” (DCE, 22). E na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, 2013, Francisco afirma que “no coração de Deus, ocupam lugar preferencial os pobres” (EG, 197), que “esta preferência divina tem consequências na vida de fé de todos os cristãos” e que, “inspirada por tal preferência, a Igreja fez uma opção pelos pobres, entendida como uma ‘forma especial de primado da prática da caridade cristã, testemunhada por toda a tradição da Igreja’” (EG, 198).

Mas há uma tendência muito forte na Igreja a reduzir a opção pelos pobres ou o serviço da caridade à sua dimensão assistencial ou ao que se convencionou chamar “obras de misericórdia”: visitar doentes, idosos e encarcerados; distribuir alimentos e roupas; socorrer pessoas em suas necessidades imediatas e cotidianas etc. Sem dúvida, isso é necessário e é evangélico. Mas nem é suficiente nem esgota o serviço da caridade ou a opção pelos pobres na Igreja. Há também uma dimensão igualmente necessária e evangélica que diz respeito à organização da sociedade e à luta pela justiça, enquanto luta pela garantia de direitos dos pobres e marginalizados. É a dimensão socioestrutural da opção pelos pobres ou do serviço da caridade.

E é precisamente sobre esta dimensão que queremos tratar neste artigo. Primeiro, mostrando como a Igreja foi tomando consciência desta questão nas últimas décadas. Depois, explicitando em que consiste a dimensão estrutural e como se dá o processo de transformação da sociedade. Por fim, indicando as formas como a Igreja vive e dinamiza a dimensão socioestrutural da opção pelos pobres ou do serviço da caridade.

 

Despertar eclesial

A consciência explícita dessa problemática e desse desafio é relativamente recente na Igreja. Certamente, podemos encontrar indícios disso na Escritura e na Tradição da Igreja. Pensemos, por exemplo, na denúncia dos profetas contra a acumulação de riquezas, contra o salário não pago dos trabalhadores, contra a violação do direito das viúvas nos tribunais, contra a espoliação dos bens dos pequenos, contra um culto aliado à injustiça social e, sobretudo, em sua defesa radical do direito do pobre, do órfão, da viúva e do estrangeiro. Pensemos também nas reflexões sobre a destinação universal dos bens e sobre a política como arte do bem comum, desenvolvidas na Tradição da Igreja. Tudo isso é indício do que estamos chamando aqui de dimensão socioestrutural da caridade ou da opção pelos pobres.

Mas sua consciência explícita começa a se desenvolver na Europa no século XIX, no contexto da complexificação da sociedade (revolução industrial, revolução francesa, revolução científica) e do desenvolvimento das ciências sociais. Consolida-se a partir da Igreja da América Latina com as conferências episcopais de Medellin e Puebla e com as teologias da libertação. E, aos poucos, vai sendo assumida pelo conjunto da Igreja.

Um marco importante no surgimento da consciência da dimensão estrutural da fé é, não obstante suas ambiguidades e contradições, o chamado “catolicismo social” que se desenvolveu na Europa no contexto da revolução industrial e da situação da classe e do movimento operários nascentes. É neste contexto que se insere a Encíclica Rerum novarum do papa Leão XIII (1891) Sobre a condição dos operários. Tudo isso vai se desenvolvendo ao longo do século XX e ganha novo impulso, novas perspectivas e novas dimensões com o Concílio Vaticano II (1962-1965) e a Constituição Pastoral Gaudium et Spes sobre A Igreja no mundo de hoje (1965).

Contudo, é na Igreja da América Latina e a partir dela que essa consciência se torna mais explícita e é levada às últimas consequências, tanto em termos teológicos, quanto em termos pastorais.

A Conferência de Medellín (1968), por exemplo, já falava de “estruturas opressoras” (introdução), “estruturas injustas” (Justiça, I), “violência institucionalizada” (Paz, 2, II) e apontava para a necessidade de “novas e renovadas estruturas” (Justiça, II). E a Conferência de Puebla (1979) reconhece que a pobreza “não é uma etapa casual, mas sim o produto de determinadas situações e estruturas econômicas, sociais e políticas” (30) e chega a falar explicitamente de “dimensão social do pecado”, de “estruturas de pecado” ou de “pecado social” (28, 70, 73, 281, 282, 452, 487, 1258).

Além da percepção dessa dimensão estrutural da injustiça e de seu caráter pecaminoso, Medellín afirmava claramente que “criar uma ordem social justa, sem a qual a paz é ilusória, é uma tarefa eminentemente cristã” e que “a justiça e consequentemente a paz conquistam-se por uma ação dinâmica de conscientização e de organização dos setores populares, capaz de urgir os poderes públicos, muitas vezes, impotentes nos seus projetos sociais, sem o apoio popular” (Paz 2, II).

Essas intuições foram sendo aprofundadas e desenvolvidas na reflexão teológico-pastoral na América Latina e assumidas, em grande medida, pelo magistério romano para o conjunto da Igreja.

O Compêndio de Doutrina Social da Igreja, por exemplo, tratando dos “princípios da doutrina social da Igreja”, fala da “via da caridade” e, neste contexto, fala da “caridade social e política”: “A caridade social e política não se esgota nas relações entre as pessoas, mas se desdobra na rede em que tais relações se inserem, que é precisamente a comunidade social e política, e sobre esta intervém, visando ao bem possível para a comunidade no seu conjunto. Sob tantos aspectos, o próximo a ser amado se apresenta ‘em sociedade’, de sorte que amá-lo realmente, prover às suas necessidades ou à sua indigência pode significar algo de diferente do bem que lhes pode querer no plano puramente inter-individual: amá-lo no plano social significa, de acordo com as situações, valer-se das mediações sociais para melhorar sua vida ou remover os fatores sociais que causam a sua indigência. Sem dúvida alguma, é um ato de caridade a obra de misericórdia com que se responde aqui e agora a uma necessidade real e imperiosa do próximo, mas é um ato de caridade igualmente indispensável o empenho com vistas a organizar e estruturar a sociedade de modo que o próximo não venha a encontrar-se na miséria, sobretudo quando esta se torna a situação em que se debate um incomensurável número de pessoas e mesmo povos inteiros, situação esta que assume hoje as proporções de uma verdadeira e própria questão social mundial” (208).

E o papa Francisco tem insistido muito em que a opção pelos pobres “envolve tanto à cooperação para resolver as causas estruturais da pobreza e promover o desenvolvimento integral dos pobres, como os gestos mais simples e diários de solidariedade para com as misérias muito concretas que encontramos” (EG, 188); passa não só pelos gestos pessoais e comunitários de solidariedade, mas também pela luta pela transformação das estruturas da sociedade. “Embora ‘justa ordem da sociedade e do Estado seja dever central da política’, a Igreja ‘não pode nem deve ficar à margem na luta pela justiça” (EG, 183). E isso é urgente: “A necessidade de resolver os problemas estruturais da pobreza não pode esperar […] Os planos de assistência, que acorrem a determinadas emergências, deveriam considerar-se como respostas provisórias. Enquanto não forem solucionados os problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social, não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problema algum. A desigualdade é a raiz dos males sociais” (EG, 202).

Na Encíclica Laudato Si, fala explicitamente de “amor civil e político”: “O amor, cheio de pequenos gestos e cuidado mútuo, é também civil e político, manifestando-se em todas as ações que procuram construir um mundo melhor. O amor à sociedade e o compromisso pelo bem comum são uma forma eminente de caridade, que toca não só as relações entre indivíduos, mas também ‘as macro relações como relacionamentos sociais, econômicos, políticos’” (LS, 231). E, falando da “conversão ecológica”, adverte que “para se resolver uma situação tão complexa como esta que enfrenta o mundo atual, não basta que cada um seja melhor […] Aos problemas sociais responde-se, não com a mera soma de bens individuais, mas com redes comunitárias: ‘As exigências desta obra serão tão grandes, que as possibilidades das iniciativas individuais e a cooperação dos particulares, formados de maneira individualista, não serão capazes de lhes dar resposta. Será necessária uma união de forças e uma unidade de contribuições. A conversão ecológica, que se requer para uma mudança duradoura, é também uma conversão comunitária” (LS, 219).

De modo que não se pode perder de vista a dimensão socioestrutural da opção pelos pobres. E para isto não basta a conversão do coração. É preciso insistir também na necessidade e urgência de transformação das estruturas da sociedade. O que exige uma melhor compreensão da problemática socioestrutural.

 

A problemática socioestrutural

Não há muita dificuldade em compreender a dimensão assistencial da caridade ou da opção pelos pobres. É um fato que em nossas comunidades, em nosso país e no mundo inteiro muitas pessoas são marginalizadas e passam necessidade, carecendo até das condições materiais básicas de sobrevivência. E nós devemos fazer tudo que estiver ao nosso alcance para socorrê-las em suas necessidades cotidianas.

Acontece que a pobreza e a marginalização não são fatos isolados em nosso mundo. Não é apenas problema de alguns indivíduos que, por mera casualidade, circunstância ou “decisão” pessoal, encontram-se nessa situação. Certamente isso também existe: doença, catástrofe, crise familiar, desilusão amorosa, dependência química, comodismo etc. Mas isso vale para alguns casos isolados. Não explica o fenômeno massivo da pobreza e marginalização sociais em nosso mundo. Em última instância, esse fenômeno é fruto do modo mesmo de estruturação e organização da sociedade. Ele faz com que os bens e riquezas produzidos estejam concentrados nas mãos de uns poucos; faz com que amplos setores da sociedade sejam marginalizados em razão de sua cultura, de sua raça, de seu sexo, de sua orientação sexual, de sua idade, de sua deficiência física ou mental, de seus delitos etc.; e reduz a natureza a mero recurso econômico para acumulação ilimitada de riquezas, causando grandes desequilíbrios socioambientais e comprometendo inclusive o futuro da vida no planeta.

Por isso mesmo, uma caridade que se queira eficaz não pode se reduzir ao nível meramente assistencial, por mais que isso seja necessário. Precisa se enfrentar também com os mecanismos sociais que produzem essa situação. Para isso é importante compreender minimamente o processo de estruturação e organização da sociedade, bem como o modo de interferir nesse processo em vista da garantia dos direitos dos pobres e marginalizados. É o que faremos a seguir.

 

  1. Estruturas da sociedade

Não vamos entrar aqui na discussão acerca da gênese da sociedade e de seu processo de estruturação, uma discussão importante e complexa na filosofia e nas ciências sociais. Partimos diretamente do fato de que nascemos e vivemos em uma sociedade concreta, organizada de uma forma bem determinada; e de que essa sociedade, organizada desta forma, condiciona e determina em grande medida, para o bem e/ou para o mal, a vida de todas as pessoas.

Certamente, esta sociedade foi organizada desta forma por pessoas e grupos muito concretos. Não é fruto do acaso nem é um dado natural. Não há nenhum determinismo aqui. Mas uma vez organizada desta forma, ela adquire certa autonomia em relação às pessoas e aos grupos concretos e passa a condicionar, possibilitando ou impossibilitando, a vida das pessoas e dos grupos.

Essa foi a grande descoberta das ciências sociais no século XIX. Houve e há muita discussão em torno da compreensão da sociedade e da relação entre a sociedade e os indivíduos. Mas uma coisa é certa: a sociedade não é a mera soma dos indivíduos. Ela tem certa autonomia em relação aos indivíduos e interfere diretamente na vida das pessoas: ninguém escolhe nascer rico ou pobre; não é natural que a mulher seja subordinada ao homem (até na estrutura gramatical da língua), que o negro seja inferior ao branco (nas piadas, nos postos de trabalho, nos salários etc.), que determinadas pessoas e profissões sejam superiores a outras (médico X gari, catador X empresário etc.); que o Estado garanta toda infraestrutura de saneamento, transporte, segurança etc. nos bairros de classe média-alta e não nas favelas e periferias; que use o dinheiro público para construir infraestrutura para as empresas do agronegócio e destine apenas “bolsas” para a agricultura camponesa etc. Tudo isso é fruto do modo concreto como nossa sociedade está organizada.

De fato, nossa vida é muito mais condicionada e determinada pelas estruturas da sociedade do que parece. E de muitas formas: costumes, valores, regras, normas, leis, instituições, aparato policial etc. Quanto mais essa sociedade cresce e se complexifica, tanto mais cresce a interferência de seus mecanismos de organização e estruturação sociais na vida das pessoas e dos diversos grupos sociais.

Quando falamos de sociedade ou estruturas da sociedade, falamos da organização e estruturação de nossa vida coletiva. Seja no que diz respeito à produção e distribuição de bens e riquezas (economia); seja no que diz respeito às relações de poder em geral e à organização sócio-política da sociedade em particular (relações sociais e organização política); seja, ainda, no que diz respeito às mais diversas formas de justificação e legitimação dos interesses pessoais e grupais, bem como da manutenção ou transformação da ordem social vigente (cultura). Noutras palavras, falamos do conjunto de mecanismos que ordenam e regulamentam nossa vida coletiva: costumes, mentalidades, regras, normas, leis e instituições (econômicas, familiares, sexuais, sociais, educativas, religiosas, políticas, jurídicas, coercitivas etc.). Tudo isso condiciona enormemente a vida das pessoas e dos grupos. Para o bem e/ou mal.

É verdade que na maioria das vezes não nos damos conta desses mecanismos de organização e regulamentação sociais. Por isso mesmo a discussão acerca das estruturas da sociedade parece uma discussão abstrata e distante. É difícil tocar e agarrar as estruturas da sociedade. Mas não é difícil perceber, por exemplo, que alguns têm todas as condições e facilidades para produzir e/ou acumular riquezas, bem como para defender seus interesses, enquanto a grande maioria da população não dispõe dessas condições e facilidades; que os pobres pagam proporcionalmente mais imposto que os ricos; que o Estado financia a atividade econômica dos empresários e banqueiros (infraestrutura, subsídios fiscais, taxa de juros etc.); que garante toda infraestrutura urbana nos bairros de classe média-alta e não nas favelas e periferias; que certas profissões são bem reconhecidas e remuneradas e outras não; que muitas pessoas são oprimidas e marginalizadas por causa de sua cultura, de seu sexo, de sua orientação sexual, de sua idade etc.; que as leis são feitas pela elite para proteger seus interesses e que a “justiça” normalmente está do seu lado etc. E tudo isso se deve em grande medida ao modo concreto como nossa sociedade está organizada. A pobreza e a marginalização social não são uma casualidade nem uma fatalidade. São frutos de um modo injusto e desigual de organização de nossa vida coletiva. De modo que sua superação passa necessariamente pela transformação desse modo de organização da sociedade.

 

  1. Transformação da sociedade

Não é fácil transformar as estruturas da sociedade. Não só porque elas estão institucionalizadas e mesmo legalizadas; mas porque tem gente que se beneficia com elas e reage com todos os meios contra qualquer tentativa de modificação e, sobretudo, de transformação da ordem social vigente. Sem falar que esses grupos que se beneficiam com a ordem social vigente controlam a atividade econômica, a organização política do Estado, a produção do conhecimento e a difusão das informações, exercendo um domínio inclusive sobre as vítimas dessa forma de organização da sociedade.

Mas dizer que não é fácil não significa dizer que é impossível. Assim como a sociedade foi organizada desta forma através da ação de pessoas e grupos sociais, ela pode ser modificada ou mesmo transformada através da ação de pessoas e grupos sociais. É verdade que é mais fácil manter a estrutura ou ordem social vigente que transformá-la; os costumes, as regras, as normas, as leis e as instituições tendem sempre a conservar a ordem vigente. E é verdade que nem todas as pessoas nem todos os grupos têm o mesmo poder de ação e intervenção sociais: as relações de poder são extremamente desiguais em nossa sociedade. Mas a história é farta de exemplos de grupos sociais subalternos (negros, mulheres, indígenas, camponeses, operários etc.) que através de sua organização e articulação com outros setores da sociedade foram capazes de intervir e alterar a ordem social vigente.

É que a subordinação também tem seus limites. Há momentos em que a necessidade se impõe com tal força que se transforma em indignação e revolta: quando a fome aperta, o povo saqueia o comércio; quando o salário atrasa, o povo faz greve; quando não há mais alternativa de trabalho e moradia, o povo ocupa terra no campo e na cidade; quando o governo não garante condições de vida no campo, o povo ocupa estradas e prédios públicos; quando não faz demarcação de terras indígenas e quilombolas, o povo faz por sua própria conta; e assim por diante.

Muitas vezes, essa indignação e revolta são como “fogo de palha”. Outras vezes, são como “fogo de monturo” e podem se constituir como força social capaz de afrontar e alterar a ordem social vigente. Essa alteração pode ser mais superficial ou mais profunda. Em todo caso, trata-se sempre de um processo e de um processo social.

 

  1. a) Processo permanente

Antes de tudo, é preciso insistir no fato de que a transformação das estruturas da sociedade é algo processual e permanente. Não se muda a sociedade da noite para o dia a toque de mágica (imediatismo) nem de uma vez por todas (definitivamente). A mudança é um processo permanente.

Dizer que é um processo é dizer que vai se dando aos poucos, de acordo com força social acumulada e com as reais possibilidades com que se conta em cada momento. Não basta dizer que tem que mudar, é preciso dizer como mudar e, aqui, a questão se torna muito mais difícil e complexa. Até porque não se pode ignorar nem minimizar as forças de resistência e reação à transformação da ordem social vigente. Importa, em todo caso, 1) construir e fortalecer processos sociais os mais diversos de conquista de direitos; 2) articular o máximo possível esses diferentes processos sociais, acumulando força no enfrentamento da ordem social vigente; 3) e nunca desconectar as lutas e os processos concretos/locais do enfrentamento maior e mais complexo do sistema ou da ordem social vigente que produz injustiça social: local – global. O sistema se materializa e se torna palpável nas situações concretas de privilégio ou de exclusão social. E é aí que ele tem que ser atacado. Mas essas situações concretas são apenas uma expressão do sistema ou da ordem social vigente. De modo que o enfrentamento do sistema não se reduz nem se encerra em uma situação concreta de injustiça social.

Dizer que é um processo permanente é dizer nunca vai chegar ao fim. A história humana é um processo permanentemente aberto e em construção. Precisamos superar uma concepção simplista e determinista da história, segundo a qual a história caminha necessariamente para uma determinada direção e um dia vai chegar lá. Nenhum momento ou acontecimento histórico é definitivo nem perfeito. Sempre há o que fazer; sempre se pode avançar mais. A história é um processo permanente em construção. Tarefa nossa de cada dia, de toda a vida.

Sem dúvida nenhuma, o reinado de Deus vai se realizando na história na medida em que vamos vivendo e organizando nossa vida de acordo com a vontade de Deus manifestada em Jesus Cristo. Mas ele não se esgota em nenhuma situação concreta. Pelo contrário. Sua presença e realização históricas sempre provocam crise e alimentam na própria história um dinamismo de superação e transcendência. E tanto em relação às diversas circunstâncias ou situações particulares, quanto em relação ao conjunto da história em um determinado momento. Daí porque a esperança sempre renasce, fincando raízes muitas vezes no gelo do desengano. Nem sequer a morte é um limite intransponível. Ao ditado popular “a esperança é a última que morre”, nosso profeta poeta Casaldáliga costuma acrescentar que “se morrer ressuscita”, levando às últimas consequências, a partir da fé cristã, a abertura radical que caracteriza a história humana.

 

  1. b) Processo social

Mas além de ser um processo permanente, a transformação das estruturas da sociedade é um processo social que se dá mediante a constituição de uma força social capaz de confrontar a ordem social vigente e capaz de alterá-la ou mesmo transformá-la. Nenhuma pessoa sozinha consegue transformar a sociedade. Certamente, todos os processos de transformação social são desenvolvidos a partir de pessoas concretas e por pessoas concretas. Mas só se realizam na medida em que essas pessoas concretas vão se articulando e se constituindo como força social: “a união faz a força”!

É que a sociedade tem certa autonomia em relação aos indivíduos, tem um dinamismo próprio que, mediante costumes, mentalidades, regras, normas, leis e instituições as mais diversas tende a estabilizar e conservar o dinamismo ou a ordem vigente. Transformar a sociedade ou as estruturas da sociedade é transformar esses mecanismos que organizam nossa vida coletiva de uma determinada forma e que, por favorecerem a certos setores da sociedade, são defendidos por eles a todo custo.

Basta ver que todas as conquistas sociais ao longo da história se deram mediante a mobilização, organização e luta de determinados setores da sociedade. Normalmente de setores prejudicados e marginalizados na sociedade, mesmo que com o apoio e a solidariedade de outras pessoas e grupos sociais. Às vezes isso leva muito tempo. Tanto tempo, que as gerações ou setores que alcançaram essas conquistas nem se dão conta do processo histórico que possibilitou essas conquistas; processo regado muitas vezes com sangue… São os mártires da caminhada… Quantos trabalhadores, quantos camponeses, quantos indígenas, quantos negros, quantas mulheres, quantos homossexuais etc. pagaram com a própria vida o preço da luta por seus direitos. Nenhuma luta é em vão; nenhum sangue derramado na luta é em vão. Sempre pode brotar e produzir frutos. É verdade que nem sempre quem semeia e quem rega é quem colhe; mas se alguém colhe é porque alguém semeou e regou.

Daí porque a transformação das estruturas da sociedade seja um processo e um processo social. Vai se dando aos poucos: uma pequena conquista abre possibilidades de novas conquistas e assim por diante. E vai se dando a partir da mobilização, organização e luta dos marginalizados e seus aliados: a união faz a força. É um processo social permanente. Tarefa nossa de cada dia, de toda a vida, de toda a história.

 

A dimensão socioestrutural da opção pelos pobres

A dimensão socioestrutural da opção pelos pobres tem a ver precisamente com a participação e colaboração da Igreja nos processos de transformação das estruturas da sociedade – sempre a partir e em vista dos direitos dos pobres e marginalizados.

O engajamento da Igreja nos processos de transformação das estruturas da sociedade dá-se tanto através da atuação de cristãos em diversos movimentos e organizações sociais; quanto através de serviços, pastorais e organismos de apoio, acompanhamento e defesa de setores marginalizados e de suas lutas e organizações populares; quanto, ainda, pela tomada de posição da Igreja enquanto instituição e força social através de seus ministros e de seus organismos de animação e coordenação pastoral (bispos, conferências episcopais, coordenações e articulações pastorais etc.).

Convém, aqui, ao menos indicar essas diversas formas de participação da Igreja nos processos de transformação das estruturas da sociedade para que se possa compreender melhor a riqueza e a complexidade do dinamismo da pastoral social.

Em primeiro lugar, o engajamento de milhares de cristãos nas mais diversas lutas sociais (terra, água, moradia, educação, saúde, liberdade política, igualdade racial e de gênero, justiça socioambiental etc.) e nas mais diversas organizações populares (sindicatos, associações, partidos, movimentos etc.). É impossível falar das lutas, organizações e conquistas populares na América Latina nas últimas décadas sem falar da participação dos cristãos e da contribuição da fé cristã nesses processos.

Em segundo lugar, a tomada de posição pública de Igrejas locais (através de seu bispo, de seu presbitério, de sua coordenação pastoral ou de seus serviços e organismos de pastoral social) em favor de comunidades, grupos ou setores injustiçados e marginalizados: trabalhadores em greve; ocupações de terra no campo e na cidade; comunidades atingidas por barragens e projetos do agro-hidro-negócio; menores, população de rua e encarcerados vítimas da violência policial; superfaturamento de obras públicas e corrupção eleitoral, dentre outros. São situações bem concretas que acontecem em lugares bem concretos e agridem pessoas bem concretas.

Em terceiro lugar, os diversos serviços, organismos e pastorais sociais criados na Igreja para acompanhar determinados grupos e setores sociais marginalizados e colaborar com suas lutas e organizações sociais: Centros de Direitos Humanos, Comissão Pastoral da Terra, Conselho Indigenista Missionário, Pastoral Operária, Serviço Pastoral dos Migrantes, Conselho Pastoral dos Pescadores, Pastoral dos Nómades, Pastoral Carcerária, Pastoral do Povo da Rua, Pastoral da Mulher Marginalizada, Pastoral Afro-Brasileira, Pastoral da AIDS, Pastoral da Criança, Pastoral do Menor, Pastoral da Pessoa Idosa, Comissão Brasileira de Justiça e Paz, Caritas etc.

Em quarto lugar, a tomada de posição da Igreja do Brasil como instituição frente a determinados acontecimentos, questões ou processos sociais. Seja através da CNBB ou de alguma de suas comissões ou de algum de seus regionais; seja através de organizações laicais ou de alguma pastoral social específica. Pensemos, por exemplo, nas denúncias de tortura na ditadura militar e no processo de redemocratização da sociedade brasileira; na defesa da reforma agrária e dos movimentos camponeses; na defesa dos povos indígenas e quilombolas e da demarcação de suas terras; nas críticas à política econômica neoliberal dos vários governos; na denúncia da corrupção política e no apoio a processos de reforma política.

Em quinto lugar, a promoção e participação em campanhas, eventos e processos de discussão e mobilização sociais os mais diversos em torno de direitos fundamentais negados ou de mecanismos que produzem injustiça. Pensemos, aqui, por exemplo, nas campanhas da fraternidade, nas semanas sociais, nos gritos dos excluídos, nos plebiscitos populares (dívida externa, ALCA, leilão da Vale, limite da propriedade, reforma política), nos projetos de lei contra a corrupção eleitoral e de reforma política, nas diversas articulações e mobilizações em nível nacional (indígenas, camponeses, mulheres, projeto popular etc.).

Por fim, em sexto lugar, as discussões, articulações e mobilizações em nível mundial dentro da Igreja e da Igreja com diversas forças sociais. Cabe mencionar, aqui, a discussão sobre o processo de globalização e seus mecanismos de exclusão social nas últimas encíclicas sociais e nos documentos do Pontifício Conselho Justiça e Paz; a participação de (grupos) cristãos e crentes de muitas religiões no Fórum Social Mundial e no fórum paralelo ou integrado teologia e libertação, bem como em outras organizações e mobilizações sociais em nível mundial; e a atuação profética do papa Francisco no cenário mundial (migração, fome, conflitos e guerras, mercado, injustiça socioambiental etc.), particularmente através da encíclica Louvado seja “Sobre o cuidado da casa comum” e dos encontros com os movimentos populares.

Importa fortalecer e intensificar a participação dos cristãos, das comunidades, das pastorais, dos movimentos, da vida religiosa, enfim, do conjunto da Igreja, ainda que de modos distintos, nos processos de transformação da sociedade – sempre na perspectiva da justiça do Reino que tem nos pobres e marginalizados seu critério e sua medida permanentes (Lc 10, 25-37; Mt 25, 31-46).

* Doutor em teologia pela universidade de Münster/Alemanha; professor de teologia da Faculdade Católica de Fortaleza (FCF) e da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP); presbítero da Diocese de Limoeiro do Norte – CE.

Fonte: Teologia Nordeste

http://teologianordeste.net/a-dimensao-socioestrutural-da-opcao-pelos-pobres.html

 

O legado profético do Pe. José Comblin

Por Mônica Maria Muggler*

A seu modo, José Comblin foi um profeta: qual não foi o privilegio de termos conhecido, ouvido, falado, tocado ou convivido nem que por algumas horas com este que de modo simples, despretensioso, discreto, porém com os arroubos do profeta expressou a mensagem de Jesus!

José Comblin nos deixou um extenso legado: 69 livros próprios, 4 publicações coletivas, 422 artigos publicados (incluindo algumas entrevistas). Relendo alguns de seus escritos de mais de 40 anos atrás percebemos uma atualidade impressionante. Por vezes, muita coisa de suas falas e seus escritos não foi bem compreendido, gerou reações de protesto, até de indignação. Mas na verdade, hoje já compreendemos algumas dessas coisas e há outras que daqui a 50, 100 anos ou até mais ainda, serão profundamente atuais.

José Comblin era um homem simples. Jamais queria fazer-se servir: ele mesmo arrumava sua cama, varria seu quarto, tirava poeira de suas estantes de livro, lavava as suas roupas e passava suas camisas. Se alguém quisesse fazê-lo, tinha que antecipar-se, pois ele não esperava para fazer as tarefas domésticas. Fazia o café da manhã e lavava a louça enquanto esteve em sua casa.

Comia o que lhe ofereciam: embora tivesse suas preferencias inclusive por suas origens europeias, passou décadas comendo a comida nordestina do povo pobre. Mas ao receber visitas oferecia do bom e do melhor sem faltar o vinho e o aperitivo. Até, ia ao supermercado fazer as compras: dizia que era uma forma de acompanhar a realidade. Quando recebia convidados preparava a mesa com esmero, ajudava no que era preciso e ficava de prontidão com as portas abertas para receber os visitantes.

Quando podia usava o transporte coletivo ou alternativo. Andava pelas periferias em todos os lugares onde morou e o fez até poucos dias antes de sua morte. Nas suas andanças e caminhadas observava tudo: as pessoas, o que faziam, o que se passava na rua, as moradias, as plantas, os animais, a interação entre uns e outros, nenhum detalhe escapava ao seu olhar perspicaz.

Na sua maneira de vestir era muito simples: tinha apenas dois calçados – uma sandália e um sapato fechado para suas viagens aos lugares frios dentro e fora do país. Seu guarda roupa era muito simples e quando lhe perguntavam se podiam comprar um calçado, uma camisa ou calça ele respondia: prá quê, se já tenho, só posso usar um de cada vez…

Não podemos esquecer a sua veia de agricultor. Ao inserir-se no Nordeste e iniciar aquilo que se chamou a Teologia da Enxada (nome dado por Carlos Mesters) ele adotou a prática de trabalhar a terra a seu modo: plantar árvores. Em todos os lugares por onde passou plantou mudas das mais diversas árvores tanto frutíferas como nativas. Ele mesmo possuía todas as ferramentas necessárias: enxada, enxadeco, pá, ferro de cova, cavadeira, regador. Plantava e replantava. Muitas vezes as mudas não vingavam, ele tornava a plantar, e mais uma vez o fazia, assim como os pequenos agricultores. Dizem que plantou mais de duas mil árvores. E o fazia com extrema delicadeza, parecia conversar com as mudinhas, de ajoelhava sobre a terra, a ponto de pegar verminoses. Nunca se viu ele reclamar de alguma coisa: comida, dormida, hospedagem, transporte, distancias, conforto, cansaço, dores. Nunca. Nisso consistia a sua humildade: acolher tudo como se apresentava.

Era um leitor inveterado. Andava com um livro sempre à mão e aproveitava todos os momentos. Pouco via TV, muito menos os noticiários que considerava limitadíssimos além de manipulados. Mas estava sempre atualizado sobre a realidade e os fatos.

Enfim, poderíamos passar horas descrevendo sua maneira simples, humilde, discreta, despretensiosa de ser. Recordamos um pouco de sua vida cotidiana porque sabemos que é a vida do profeta que dá autenticidade às suas palavras. E o seu testemunho fala mais do que todas as palavras.

Mas é preciso falar de outra faceta muito forte: o seu amor aos pobres. Ao abraçar a América Latina, o Brasil e o Nordeste, com todo o seu conhecimento bíblico e teológico e a sua profunda espiritualidade, o amor aos pobres tomou conta de seu coração. Como grande estudioso, ele tinha um extenso conhecimento sobre os pobres, a pobreza, os mecanismos do empobrecimento. Logo buscava conhecer também as origens, a história, as etnias. Ele olhava para uma pessoa afrodescendente e dizia com acerto de que região da África ela descendia.

Ele estudava tudo o que se referia ao povo, mas, sobretudo, ele amou com força os pobres. Não uma massa anônima, mas rostos concretos, pessoas com nome e história. Ele admirava, contemplava, acolhia. E estes se sentiam à vontade com ele, conversavam, o visitavam, o abraçavam, faziam confidencias, pediam conselhos. Seu olhar luminoso e transparente nunca se desviou de ninguém. Até bandidos e traficantes batiam à sua porta e ele abria, os ouvia, atendia às suas necessidades. Estes mesmos manifestaram sua tristeza quando morreu o padre. Embora sendo renomado teólogo e escritor, sempre atendia imediatamente a quem o buscava, sem pressa, com toda atenção. Ele dizia que aos pobres era preciso devolver a autoestima, a autoconfiança, pois eles carregam dentro de si, um profundo sentimento de inferioridade, na maioria das vezes inconsciente. Daí a sua atenção, a sua delicadeza, o seu cuidado. Suas obras mais do que construções e prédios de tijolos, foram iniciativas de formação para o meio popular, lideranças do povo: sempre investiu mais nas pessoas do que nos prédios.

Em seus escritos e falas sempre recolhemos uma insistência repetida: A missão dos profetas consiste em lembrar a todos que a Igreja deveria ser dos pobres, lembrar aos pobres a sua dignidade, aos ricos o sentido dos bens materiais como serviço a todos.

Os profetas lembram que a Igreja é uma fraternidade e que os primeiros são os que servem… Que somente uma Igreja dos pobres terá capacidade e credibilidade para proclamar um reino de justiça neste mundo e para questionar a desordem estabelecida. Nisso residia a sua força e por isso o seu legado escrito não perde a sua atualidade, pois abraçar os pobres e sua causa será sempre um apelo presente e atual.

Em seus escritos e falas José Comblin sempre destacou aqueles que considerava profetas para o seu tempo. Ele nomeou pela primeira vez os Santos Padres da América Latina. Ele em escritos diversos percorre o caminho da Profecia na Igreja. Figuras inesquecíveis como Francisco de Assis, Domingos, Frei Bartolomeu de Las Casas. Francisco de Assis na sua experiência com o leproso vislumbrara que, no pobre, há alguém que os interpela e esse alguém vai muito além do próprio pobre. É um apelo que transforma a pessoa, dando uma nova orientação à sua vida.

Mais próximos na história citava: o Pacto das Catacumbas assinado em 1965 por 40 bispos que reafirmaram o compromisso com os pobres “Procuraremos viver segundo o modo ordinário de nossas populações no que concerne à habitação, à alimentação, aos meios de locomoção e a tudo o que daí se segue”. Assim, Dom Oscar Romero em San Salvador, fez-se a voz dos sem voz, foi maltratado, torturado e acabou assassinado. Dom Henrique Angelelli, na Argentina, colocou-se ao lado dos operários e também foi assassinado. D. Juan Girardi, na Guatemala, condenou a repressão das Forças Armadas. D. Helder Câmara, no Brasil, fundou a CNBB, abraçou os pobres no nordeste, desafiou a ditadura, sofreu perseguição. D. Leônidas Proaño, no Equador, fez uma reforma agrária nas terras da diocese e deu apoio a todos os movimentos de promoção dos indígenas, pois estava convencido de que a Igreja tinha uma imensa dívida para com os índios e ele queria contribuir para pagar esta dívida.

Embora faça referencia a figuras destacadas na Igreja, sempre lembrou e contava fatos que atestavam a existência de muitos pequenos profetas, homens e mulheres, anônimos, movidos pelo Espírito, porque Deus não abandona o seu povo. Mas para o mundo citava pessoas referenciais e divulgava particularmente o testemunho de Bispos da Igreja mostrando que mesmo sendo homens da instituição, é possível deixar-se guiar pelo Espírito Santo e transmitir a mais genuína Tradição de Jesus. E como homens da instituição, a sua postura de genuína liberdade cristã e o seu testemunho teriam especial repercussão. Nisso, aliás, estava a profecia.

Afirmava que a grande profecia é cuidar dos pobres. E sempre será. Esse é o apelo de Jesus, esse é o apelo sempre renovado através da história, esse é o apelo atual, essa é a insistência do Papa Francisco hoje. Cuidar dos pobres, dos frágeis, dos caídos. E hoje entre esses está o Planeta Terra, tão fragilizado. Apelo que se renova porque a tendência é melhorar de vida e acomodar-se entre os melhores. Mas José Comblin afirma que precisamos ver a cada época quem são os novos pobres. A sociedade, enquanto for capitalista, estará sempre produzindo novos pobres, novos excluídos, novos marginalizados.

Na sua coerência de vida, José Comblin foi levado pelo Espírito Santo a se preparar para a Grande Viagem (expressão que adotou de Dom Helder Câmara ao referir se á morte) à sombra de um profeta. Decidiu viver no sertão da Bahia, junto ao Frei Luiz Flávio Cappio, bispo da Diocese de Barra. A ele dedicou o seu último livro A Profecia: “… Fiel companheiro de São Francisco, Profeta do sertão nordestino, Defensor do povo do rio São Francisco”.

Hoje, em tempos do Papa Francisco, certamente José Comblin se sentiria contemplado com as suas posturas. Mas ciente e lúcido sobre o imenso desafio que significa uma reforma da Igreja. A instituição necessita de profetas, mas estes ficam muito além da instituição. Na sua função de Bispo de Roma responsável pela Igreja Universal o Papa faz o que pode, mas não pode mudar a Igreja. A mudança que todos os profetas desde a Bíblia e ao longo da história da Igreja propuseram parte de uma conversão pessoal. São pessoas que abraçam o Caminho e a mensagem de Jesus com radicalidade e dão testemunho. Isso é o que convence o mundo.

O próprio Comblin dizia: Para os nossos contemporâneos a única coisa que pode transformar a vida é o encontro com pessoas realmente evangélicas, realmente comprometidas de uma maneira convincente, de uma maneira forte, de uma maneira iluminadora, pessoas cuja vida é uma luz. Cuja vida ilumina. O que transmite o evangelho, não é a instituição, mas as pessoas que estão nessa instituição. A Igreja como instituição é o lugar situado no espaço e no tempo onde vivem os discípulos que são o corpo de Cristo, as pessoas nas quais residem as Pessoas divinas.

E, finalizando, não há outro movimento que não seja o de saída. O papel das lideranças em todos os níveis é empurrar nessa direção. Como ele dizia: O caminho que Jesus mostra situa-se neste mundo. Não é um caminho feito de atos religiosos, mas de atos realizados na vida de cada dia. Jesus não tira os discípulos do mundo, mas os envia para o mundo.

Assim, situava o profeta na história e na sociedade de cada tempo e lugar. O profeta surge diante das realidades que clamam, que oprimirem, que falseiam, realidades que ao olhar atento do profeta não admitem omissão. Hoje em dia o profeta é político no sentido de Jesus: critica os governantes que querem manter as estruturas estabelecidas que são injustas.

Jesus não enunciou uma doutrina, mas realizou atos significativos e de alto valor simbólico que denunciavam a mentira dos seus adversários e despertavam a esperança no povo. Com isso não derrubou imediatamente o Império romano. Mas desde então todos os movimentos revolucionários tiveram raízes na sua missão profética.

José Comblin, o seu legado continuará sendo força propulsora da Igreja de Jesus na medida em que nos provoca a seguir Jesus, na força do Espírito e na ternura do Pai, pelos caminhos do mundo, nas situações onde somos colocados por Deus.

*A autora nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais. É missionária leiga, vive no Nordeste do Brasil há 32 anos. Durante 27 anos atuou na equipe de Pe. José Comblin e nos últimos 15 anos de sua vida o acompanhou de perto. Hoje vive em Barra, no sertão da Bahia. E faz a ligação entre as Escolas de Formação Missionária fundadas por Comblin. São 6 no Nordeste.

Campanha da Fraternidade de 2015: Igreja e Sociedade

Servir a todos a partir do injustiçado e de jeito libertador

1. Iniciando a reflexão.

Realizada desde 1964, há 51 anos, com o tema “Fraternidade: Igreja e Sociedade” e lema “Eu vim para servir” (cf. Mc 10, 45), a Campanha da Fraternidade de 2015 (CF/15) objetiva animar a vocação e missão de todas as pessoas cristãs e das comunidades, a partir do que propõe o Concílio Ecumênico Vaticano II (1962 a 1965): Igreja povo de Deus, ecumenismo, inculturação e profecia.

Os Temas e Lemas das Campanhas da Fraternidade já realizadas contribuíram muito para colocar na pauta da política e das forças vivas da sociedade brasileira grandes injustiças que se tornaram clamores ensurdecedores. Para refrescar a memória, citamos: CF/74: Onde está o teu irmão?; CF/75: Repartir o pão, logo após o milagre econômico de 1973, denunciava ricos cada vez mais ricos à custa de pobres cada vez mais pobres; CF/78: Trabalho e Justiça para todos; CF/79: sobre Ecologia, com o lema “Preserve o que é de todos”; CF/80: sobre Migrantes, com o lema “Para onde vais?”; CF/81: Saúde para todos, o que contribuiu para a criação do SUS em 1988; CF/83: Fraternidade, sim; Violência, não; CF/85: Pão para quem tem fome; CF/86: sobre a terra, com o lema “Terra de Deus, terra de irmãos”, contribuiu para legitimar a atuação da Comissão Pastoral da Terra, do MST, recém criado, e fez nascer dezenas de movimentos sociais do campo; CF/87: sobre crianças abandonadas, com o lema “Quem acolhe o menor a mim acolhe”.

Essa foi imprescindível na criação do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1991; CF/88: sobre Os Negros, com o lema “Ouvi o clamor desse povo”, fez surgir e fortalecer o Movimento Negro, movimento popular de luta contra o racismo; CF/89, “Comunicação para a verdade e a paz” denunciou a concentração do poder midiático (mídia) em poucas nas mãos; CF/90: contra o machismo e o patriarcalismo, com o lema “Mulher e Homem, imagem de Deus”; CF/91, Solidários na dignidade do trabalho; CF/92 e CF/13: sobre a Juventude, denunciando o extermínio de jovens pelo tráfico, violência social etc; CF/93: sobre Moradia, com o lema “Onde moras?”, fez surgir inúmeros movimentos de luta por moradia; CF/95: sobre os Excluídos, com o lema “Eras tu, Senhor?” fortaleceu o Movimento Nacional do Povo de Rua e a Pastoral do povo de rua; CF/96: sobre Política, com o lema “Justiça e Paz se abraçarão”, fortaleceu o Movimento que luta por ética na Política Partidária; CF/97: Os encarcerados, acolhendo os gritos dos milhares de presos e denunciando que eles estão submetidos a situações degradantes e desumanas em prisões superlotadas; CF/98: Educação, o que ajudou a legitimar a luta por educação pública de qualidade; CF/99: Desemprego, com o lema “Sem trabalho, por quê?”; CF/01: sobre Drogas, com o lema “Vida, sim; drogas, não”; CF/02: sobre Povos Indígenas, com o lema “Por uma terra sem males”, contribuiu para o surgimento e fortalecimento de inúmeros movimentos indígenas; CF/03: sobre Pessoas idosas, contribuiu para a Criação do Estatuto do Idoso em 2003; CF/04: sobre A água, com o lema “Água, fonte de vida”; CF/06: Pessoas com deficiência; CF/07: sobre Amazônia; CF/09: sobre Segurança Pública, com o lema “A paz é fruto da justiça”; CF/10: Economia, questionando com veemência o modelo econômico capitalista-neoliberal e apontando a necessidade e justeza de fortalecermos a Economia Popular Solidária; CF/11: Vida no Planeta, com o lema “A criação geme em dores de parto”, refletiu sobre a crise ecológica mundial; CF/12: sobre Saúde Pública; CF/14: sobre Tráfico humano.

Subsidiando a vivência da Opção pelos pobres, o Texto Base da CF/2015 está organizado em quatro partes. No primeiro capítulo são apresentadas reflexões sobre “Histórico das relações Igreja e Sociedade no Brasil”, “A sociedade brasileira atual e seus desafios”, “O serviço da Igreja à sociedade brasileira” e “Igreja – Sociedade: convergência e divergências”.

2. Bases bíblicas e teológicas para a CF/15: Fraternidade e Sociedade, com o Lema “Eu vim para servir”.

Não esqueçamos: Javé, o Deus solidário e libertador, optou pelos pobres, ao ouvir o clamor dos oprimidos e descer para libertá-los (Cf. Ex 3,7-10) das garras do imperialismo dos faraós do Egito. As profetisas e os profetas da Bíblia fizeram opção pelos injustiçados ao denunciar as injustiças dos fazendeiros, do sistema monárquico, o ritualismo de muitos sacerdotes, ao desmascarar os falsos profetas, aqueles defensores da Teologia da Prosperidade. Optaram pelos empobrecidos ao consolar os aflitos (cf. Is 43,1-5) e ao incomodar os chefes da nação, como o profeta Miquéias que profetizou: “Ouvi, peço-vos, chefes e príncipes, vós que odiais o bem, e amais o mal, que arrancais a pele de cima dos pobres, e a carne de cima dos seus ossos. E que comeis a carne do meu povo, e lhes arrancais a pele, e lhes esmiuçais os ossos, e os repartis como para a panela e como carne dentro do caldeirão (Miq 3,1-3).”

Jesus de Nazaré optou pelos empobrecidos indo da solidariedade à luta pela justiça, o que lhe custou condenação à morte pelos podres poderes da época. Jesus anunciou e testemunhou um projeto de libertação integral. Em seu programa consta libertação política (libertação dos presos), social e econômica (evangelizar os pobres), restituição da visão (libertação ideológica), e “espiritual” (proclamação do Ano de Graça do Senhor). Isso em Lc 4,16-21, onde Jesus resgata o Jubileu Bíblico, que cultiva a utopia de reviver a experiência de fraternidade das origens camponesas, do tempo do deserto; recomeçar tudo de novo a partir dos oprimidos; refazer a História a partir dos injustiçados; resgatar as identidades que humanizam; conquistar justiça para os injustiçados a partir deles; redistribuir as terras dando-lhes função social; perdoar as dívidas interna e E(x)terna; redistribuir riquezas e rendas; restituir os direitos roubados, voltar a conviver de modo fraterno com a nossa mãe Terra, que é nossa única casa.

As primeiras comunidades cristãs se organizaram a partir das casas (Oikia, em grego), comunidades locais, onde buscavam vivenciar um projeto coletivo para o bem comum de todos (At 2,42-47). Ao invés de acumular, partilhavam tudo o que tinham, o que sabiam, seus problemas e buscas comunitárias. Ao longo da História dos cristianismos “144 mil” foram martirizados, porque ousaram ser luz que incomoda o mundo de trevas dos sistemas que moem vidas, foram sal na terra incomodando a comida e se fizeram fermento que causa coceira na massa (cf. Mt 5,13-16).

Sob inspiração do Concílio Vaticano II e das Conferências dos bispos da América Afrolatíndia (1ª no Rio de Janeiro, 1950; 2ª em Medellín/Colômbia, 1968; 3ª em Puebla/México, 1979; 4ª em Santo Domingos/República Dominicana, 1992; e a 5ª em Aparecida/Brasil, 2005), a Igreja Povo de Deus, reunida nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e nas Pastorais Sociais, com o respaldo e inspiração da Teologia da Libertação, milhares de pessoas cristãs doaram suas vidas na luta por reforma agrária, reforma urbana, em defesa dos Direitos Humanos e demonstraram compromisso com a construção de uma sociedade justa e solidária. Uma multidão de mártires ao longo de 514 anos de história de opressão no Brasil. Citamos alguns: Frei Caneca, Padre Henrique, Padre Ezequiel Ramin, Padre Josimo Tavares, Chico Mendes, Santo Dias, Margarida Alves, padre Gabriel, Irmã Dorothy Stang, Dom Oscar Romero, Eloy Ferreira, cristãos que se engajaram em sindicatos dos trabalhadores, no MST, na CPT, no CIMI, em muitos movimentos sociais populares e inúmeras pessoas anônimas que ao se posicionar contra as violências foram eliminadas fisicamente. Foram mortas, assim como o Galileu de Nazaré, mas estão ressuscitadas na luta. O exemplo de luta nos anima a seguir lutando coletivamente sendo luz, sal e fermento na sociedade.

2.1. Pressuposto básico teológico: Deus na história e o divino no humano.

O Deus do cristianismo é um Deus da história, quer dizer, age nas entranhas dos fatos e dos acontecimentos. O Deus da vida, mistério de infinito amor, não faz mágica. Desde que Deus, por infinito amor à humanidade, se encarnou-se, o divino está no humano.

O Concílio de Calcedônia, no ano de 451, reconheceu Jesus Cristo com “natureza” divina e humana. O apóstolo Paulo reconhece que Jesus é o Cristo, filho de Deus, mas “nascido de mulher” (Gal 4,4), ou seja, humano como nós desenvolveu seu infinito potencial de humanidade. “Jesus, de tão humano, se tornou divino,” dizia o papa João XXIII.

“Não é ele o filho de Maria e Jose?”. Progressivamente, na Galileia, Samaria e Judéia, Jesus se revela, à primeira vista, em aparentes contradições, mas, no fundo, com tal equilíbrio que chama a atenção de todos. Assim, ele testemunha que Deus é mais interior a nós do que imaginamos. A mística “encarnatória” revela a pessoa humanamente divina e divinamente humana. “Quem me vê, vê o Pai”.

Jesus, antes de se tornar mestre, foi discípulo. Antes de ensinar, aprendeu muito com muitos: com Maria e José, com o povo da sinagoga, com os vizinhos, amigos, com os acontecimentos históricos, com a natureza etc.

Somos discípulos/as de Jesus Cristo, um jovem camponês, da periferia, que foi condenado à pena de morte pelos podres poderes da política, da economia e da religião. Somos discípulos/as de um mártir. Feliz quem não esquece a vida, o testemunho e o ensinamento dos mártires.

Destemido, o Galileu de Nazaré vai enfrentando todas as perseguições, convicto de que é profundamente amado pelo Pai – Deus, mistério de infinito amor que nos envolve – e que é amado e reconhecido pelos oprimidos e injustiçados.

Jesus não está mais na fase da priorização das ações de solidariedade. Ele, na convivência com os empobrecidos e lendo os sinais dos tempos e dos lugares, adquire a clareza de que o sofrimento que se abate sobre o povo é causado principalmente pelo imperialismo romano, pelos saduceus (grandes latifundiários da época que praticavam uma religião da Teologia da Prosperidade), pelos que comandavam o poder religioso, tipo padroado, que fazia sacerdotes privatizarem na prática o sistema de saúde ao cobrarem para atestar curas e, assim, excluíam os pobres, os doentes, as mulheres e os estrangeiros com a famigerada lei da pureza e da impureza, que dizia: Quem é rico e sadio é abençoado por Deus. Quem é pobre e doente é porque é pecador e Deus está castigando. Assim, privatizando Deus, faziam terrorismo religioso. Jesus, pelo seu ensinamento e práxis, vai questionando tudo isso e, consequentemente, atraindo sobre si a ira de todos os que se beneficiavam com o sistema opressor muito bem entrosado nos poderes político, econômico e religioso.

2.2 – Tarefas emancipatórias que a Dimensão Social da Fé Cristã exige de nós.

A Campanha da Fraternidade de 2015 – Fraternidade e sociedade – quer fortalecer a Dimensão Social da Fé Cristã, que, com os movimentos espiritualistas, volatilizadores e desencarnadores da fé cristã, anda meio atrofiada em muitos ambientes religiosos. Vamos elencar na reflexão, abaixo, uma série de tarefas que julgamos decorrer da Dimensão Social da Fé Cristã.

2.2.1 – Promover libertação integral.

Uma das tarefas das pessoas cristãs é lutar pela libertação integral das pessoas e de tudo e não apenas por libertação espiritual. No programa de Jesus, em Lc 4,16-21, consta uma libertação política (“libertar os presos”), social e econômica (“anunciar uma boa notícia aos pobres”), libertação ideológica (“restituir a visão”, e espiritual (“proclamar o Ano de Graça do Senhor”). Assim, Jesus resgata o Jubileu Bíblico (Lev 25,8-12). No ano do Jubileu, toca-se o “berrante” (em hebraico “sofar”), que acontece no primeiro ano após sete vezes sete anos. Neste Jubileu, todas as dívidas devem ser perdoadas; todas as terras devem voltar ao primeiro dono (aos ancestrais); todos os escravos devem ser libertados. Enfim, é tempo de se fazer uma reorganização geral na sociedade; tempo para recriar as relações humanas com fraternidade, justiça, solidariedade libertadora, reconciliação e novos sonhos.

2.2.2 – Acreditar na ortopráxis.

Outra tarefa é defender uma ortopráxis (= testemunho libertador), não uma ortodoxia (= opinião certa). O que de fato faz diferença não é tanto o que a gente pensa ou em que acreditamos, mas o que fazemos (ou deixamos de fazer). É hora de compromisso com o modelo de Igreja querido pelo papa Francisco: Igreja popular, justa e misericordiosa. Urge compromisso com outro projeto de sociedade, que seja justo, ecumênico e sustentável ecologicamente.

2.2.3 – Rever conceitos.

Verdade não é adequação de um conceito a um objeto. Isso é verdade formal. “Verdade é o que liberta todos e tudo”, diz o quarto evangelho da Bíblia. A verdade deve ser buscada conjuntamente. Ninguém é dono da verdade. Verdade como o que liberta deve ser buscada a partir dos pobres (últimos, pequenos, discriminados): pobre, excluído, sem terra, indígenas, negros, pessoas com deficiências, idosos, desempregados, homossexuais, mãe terra, irmã água, favelados, vítimas da violência etc.

É hora de perceber que a coisa mais sagrada é também profana. Profanar é retirar do uso exclusivo para dar acesso a todos. Pro-fanar vem do verbo grego faneo, que quer dizer “brilhar”. Ou seja, que o brilho do sagrado seja estendido a todos sem distinção e sem nenhuma discriminação. É hora de gritar “Não a todo e qualquer dualismo!” Não há separação entre espiritual e material, entre sagrado e profano, entre divino e humano, entre santo e pecador, entre puro e impuro etc. Tudo está intimamente relacionado.

Jesus não morreu na cruz porque Deus quis, mas foi condenado à pena de morte pelos podres poderes político-econômico e religioso.

Jesus doou sua vida por todos e tudo. Jesus testemunha um caminho de salvação, porque nos amou demais e não porque sofreu demais.

Jesus tornou-se Cristo, pois conseguiu desenvolver o infinito potencial de humanidade que cada pessoa traz consigo ao chegar a este mundo. “Jesus foi tão humano, tão humano, que só podia ser Deus”, disse o papa Paulo VI.

Milagre não é algo fruto de um poder extraordinário que está acima do humano. Milagre é uma maravilha de Deus, conforme diz o Primeiro Testamento da Bíblia. Milagre é um gesto solidário e libertador de Deus agindo nas entranhas da história.

Deus não é juiz, pois Deus é amor. O único poder que Deus tem é o poder do amor, que é de fato o que constrói.

Deus não é transcendente, mas transdescendente. Na Bíblia, de ponta a ponta, vemos a imagem de um Deus apaixonado pelo humano.

Deus não é neutro diante dos conflitos. Deus faz opção preferencial pelos pobres (cf. Ex 3,7-10).

Não existe inferno, nem purgatório e nem limbo como locais destinados aos pecadores, como descrito de forma tradicionalista por muitos nas igrejas. Satanás (satã, em hebraico) ou diabo (diabolos, em grego) não são entes abstratos, um deus negativo que faz oposição ao Deus da vida. Satanás (diabo) é tudo o que divide, separa, desune, oprime, exclui, discrimina e depreda. Pode ser uma dimensão interior nossa, mas em uma sociedade capitalista neoliberal como a nossa, trata-se prioritariamente de estruturas e instituições que oprimem, excluem e depreda a natureza. Podemos dizer que o agronegócio é satânico, pois concentra riqueza em poucas mãos, expulsa os pequenos do campo e devasta a biodiversidade. Uma democracia burguesa formal que não respeita a Constituição Brasileira e pisa na dignidade das pessoas é uma falsa democracia, algo também satânico.

Ser cristão implica ser anticapitalista. Não dá para compactuar com os pretensos valores do capitalismo: concorrência, competição, acumulação, lucrar e lucrar. Ser cristão é ser outro Cristo, alguém que consola os aflitos, mas que também incomoda os acomodados. Tarefa da pessoa cristã é buscar vida e liberdade para todos e tudo – e não apenas para alguns – mas a partir dos últimos.

2.2.4 – Sentir-se igreja, membro vivo de uma comunidade de fé libertadora.

“Igreja é Povo de Deus”, nos ensina o Vaticano II. É hora de percebermos que o sacerdócio comum está acima do sacerdócio ordenado. Os jovens não podem aceitar uma relação que os coloquem como infantis e em uma postura de quem só deve obedecer. Nada disso. Os jovens têm o direito e o dever de dialogar, discutir e reivindicar o direito de decidir conjuntamente todos os assuntos que envolvem a vida da comunidade cristã e da sociedade.

2.2.5 – Comprometer-se com a Opção pelos pobres e pelos jovens.

O apóstolo Paulo, ao escrever sobre o Concílio de Jerusalém, acontecido por volta dos anos 49/50 do 1º século diz que a circuncisão, a maior de todas as barreiras, tinha sido abolida e que a única coisa que os apóstolos fizeram questão de alertar foi: “Não esqueçam os pobres.” (Gal 2,10) Esse alerta deve ser acolhido por todas as pessoas cristãs. Mas faz bem ter um bom entendimento sobre quem é pobre. Primeiro, o carente economicamente. Depois, a mulher, o indígena, o negro, o homossexual, a divorciada, a mãe terra, a irmã água, o meio ambiente.

O pobre não é apenas como um poço de carência, mas principalmente um portador de força ética e espiritual. Deus age a partir dos pequenos. “O mundo será melhor quando o menor que padece acreditar no menor”, dizia Dom Hélder Câmara, o santo rebelde.

2.2.6 – Partir da periferia, do oprimido. O Evangelho de Lucas interpreta a vida, as ações e os ensinamentos de Jesus ao longo de uma grande caminhada da Galileia até Jerusalém, ou seja, da periferia geográfica e social ao centro econômico, político, cultural e religioso da Palestina. A Palavra, no Evangelho de Lucas, é a palavra de um leigo, de um camponês galileu, “alguém de Nazaré”, pessoa simples, pequena, alguém que vem da grande tribulação. Não é palavra de sumo sacerdote, nem do poder.

2.2.7 – Priorizar a formação. Na grande viagem de subida para Jerusalém, Jesus prioriza a formação dos discípulos e discípulas. Ele percebe que não tem mais aquela adesão incondicional da primeira hora. Jesus descobriu que para consolar os aflitos era necessário também incomodar os acomodados e denunciar pessoas e estruturas injustas e corruptas. Assim, o homem de Nazaré começou a perder apoio popular. Era necessário caprichar na formação de um grupo menor que pudesse garantir os enfrentamentos que se avolumavam. Jesus sabia muito bem que em Jerusalém estava o centro dos poderes religioso, econômico, político e judiciário. Lá travaria o maior embate.

2.2.8 – Não fugir do combate. O Evangelho de Lucas diz: Jesus, cheio do Espírito, em uma proposta periférica alternativa, vai, em uma caminhada, de Nazaré a Jerusalém; ou seja, vai da periferia para o centro, caminhando no Espírito. Em Jerusalém acontece um confronto entre o projeto de Jesus e o projeto oficial. Este tenta matar o projeto de Jesus (e de seu movimento) condenando-o à morte na cruz. Mas o Espírito é mais forte que a morte. Jesus ressuscita. No final do Evangelho de Lucas, Jesus diz aos discípulos: “Permaneçam em Jerusalém até a vinda do Espírito Santo” (Lc 24,49).

2.2.9 – Estar sempre em movimento. Seguir Jesus exige uma dinâmica de permanente movimento. A sociedade capitalista leva-nos a buscar segurança, o que é uma farsa. É hora de aprendermos a seguir Jesus de forma humilde e vulnerável, porém mais autêntica e real. Isso não quer dizer distrair com costumes e obrigações que provêm do passado, mas não ajudam a construir uma sociedade justa, solidária e sustentável ecologicamente.

2.2.10 – Andar na contramão. Seguir Jesus implica andar na contramão, remar contra a correnteza de tantos fundamentalismos e da idolatria do consumismo. Exige também rebeldia, coragem, audácia diante de costumes que entortam o queixo e de modas que aniquilam o infinito potencial humano existente em nós. Ser, na prática, luz no mundo, sal na comida, fermento na massa, algo que sempre incomoda.

2.2.11 – Saber a hora de conviver e a hora de lutar. O Evangelho de Lucas apresenta dois envios de discípulos para a missão. No primeiro envio (Lc 10,1-11), Jesus indicou aos discípulos que fossem para o campo de missão despojados e desarmados. Assim deve ser todo início de missão: conhecer, conviver, estabelecer amizades, cativar, assumir a cultura do outro, tornar-se um irmão entre os irmãos para que seja reconhecido como “um dos nossos”. No segundo envio (Lc 22,35-38), em hora de luta e combate, Jesus sugere que os discípulos devem ir preparados para a resistência. Por isso “pegar bolsa e sacola, uma espada – duas no máximo.” (Lc 22,36-38). Durante a evolução da missão, chega a hora em que não basta esbanjar ternura, graciosidade e solidariedade. É preciso partir para a luta, pois as injustiças precisam ser denunciadas. Ao tomar partido e “dar nomes aos bois” irrompem-se as divisões e desigualdades existentes na realidade. Os incomodados tendem naturalmente a querer calar quem os está incomodando. É a hora das perseguições que exigem resistência. Confira a trajetória de vida dos/as mártires da caminhada: Padre Josimo, Padre Ezequial Ramin, Chico Mendes, Margarida Alves, Sem Terra de Eldorado dos Carajás, Irmã Dorothy, Santo Dias, Chicão Xucuru, Padre Gabriel etc.

2.2.12 – Resistir, o que não é violência, mas legítima defesa. Diante de qualquer tirania e de um Estado violentador, vassalo do sistema capitalista que sempre tritura vidas e pratica injustiças, é dever das pessoas cristãs resistirem contras as opressões perpetradas contra os empobrecidos, os preferidos de Jesus. Lucas, em Lc 22,35-38, sugere desobediência civil – econômica, política e religiosa. Em uma sociedade desigual, esse é “outro caminho” a ser seguido (cf. Mt 2,12) por nós, discípulos e discípulas de Jesus, o rebelde de Nazaré.

2.2.13 – Quarto sinal do Evangelho de João e paralelos em Mt, Mc e Lc: A partilha dos pães, uma pedagogia que liberta e emancipa. (Jo 6,1-15)

A fome era um problema tão sério na vida dos primeiros cristãos e cristãs que os quatro evangelhos da Bíblia relatam Jesus partilhando pães e saciando a fome do povo.[2] É óbvio que não devemos historicizar as narrativas de partilha de pães como se tivessem acontecido tal como descrito. Os evangelhos foram escritos de quarenta a setenta anos depois. O quarto evangelho, por volta dos anos 90. Logo, são interpretações teológicas que querem ajudar as primeiras comunidades a resgatar o ensinamento e a práxis original de Jesus Cristo. Não podemos também restringir o sentido espiritual da partilha dos pães a uma interpretação eucarística, como se a fome de pão se saciasse pelo pão partilhado na eucaristia. Isso seria espiritualização dos textos. Eucaristia, celebrada em profunda sintonia com as agruras da vida, é uma das fontes que sacia a fome de Deus, mas as narrativas das partilhas de pães têm como finalidade inspirar solução radical para um problema real e concreto: a fome de pão.

A beleza espiritual das narrativas de partilha de pães – o correto é partilha de pães e não multiplicação de pães[3] – está no processo seguido: uma série de passos articulados e entrelaçados que constituem um processo libertador. O milagre – no caso de Mt, Mc e Lc – ou o sinal – no caso de Jo – não está aqui ou ali, mas no processo todo. Aqui o nosso foco de análise é o Evangelho de João, mas considerando que narrativas semelhantes estão também em Mt, Mc e Lc, melhor analisar a Partilha dos pães a partir dos quatro evangelhos e não apenas a partir do quarto evangelho.

Eis, abaixo, uma série de dez características presentes nas narrativas de partilha de pães que nos revelam uma Pedagogia que liberta e emancipa:

1) Cidade, lugar de violência? O evangelho de Mateus mostra que o povo faminto “vem das cidades (Mt,13).” As cidades, ao invés de serem locais de exercício da cidadania, se tornaram espaços de exclusão e de violência sobre os corpos humanos. Faz bem recordar que Deus criou – e continua criando -, nas ondas da evolução, tudo “em seis dias e no sétimo dia descansou (Gen 2,2 ).” Conta-se que alguém teria perguntado a Deus porque ele resolveu descansar após o sexto dia. Deus teria dito que já tinha criado tudo com muito amor e para o bem da humanidade e de toda a biodiversidade. Quando viu que faltava criar a cidade, o Deus criador concluiu que era melhor descansar.

2) Ir para o meio dos excluídos e injustiçados. “Jesus atravessa para a outra margem do mar da Galileia” (Jo 6,1), entra no mundo dos gentios, dos pagãos, dos impuros, enfim, dos excluídos e injustiçados. Jesus não fica no mundo dos incluídos, o mundo do status quo e da legalidade, mas estabelece comunicação efetiva e afetiva entre os dois mundos, o dos incluídos e o dos excluídos. Assim, tabus e preconceitos desmoronam-se.

3) “Jesus subiu a montanha e sentou-se aí com seus discípulos (Jo 6,3).” Jesus transitava da planície para a montanha e vice-versa. Na montanha fazia a experiência da contemplação, encontrava com Deus Pai, o mistério de amor que nos envolve, encontrava com seu eu mais profundo e com todas as criaturas da biodiversidade. Assim, a experiência da montanha, o animava a se lançar na planície para encontrar o povo nos porões da humanidade, oprimido e injustiçado. “Sentou-se.” Mais do que a postura de sentar, devemos ver aqui Jesus assumindo a postura de mestre, aquele que ensina um ensinamento libertador com autoridade. “Com seus discípulos.” Podemos intuir : “e com suas discípulas também.” Jesus não era um franco atirador, um agente solitário. Jesus nasceu, cresceu e se formou no meio de um movimento popular religioso. Aprendeu muito com Maria, sua mãe, com José, seu pai, com João Batista, com determinado tipo de fariseus, com o povão, com a natureza. Quando deixa de ser discípulo e passa a ser mestre, Jesus age e ensina quase sempre acompanhado pelo seu movimento de discípulos e discípulas. Isso para nos ensinar que problemas sociais, que são problemas de muita gente e não de apenas algumas pessoas, devem ser encarados em ações comunitárias e coletivas. “A nossa força está no grande número de pessoas que aderem à luta”, ensina-nos o Movimento dos Sem Terra e o Movimento dos Sem Casa.

4) Nunca perder a capacidade de se comover e de se indignar. Profundamente comovido, porque “os pobres estão como ovelhas sem pastor” (Mc 6,34), Jesus percebe que os governantes e líderes da sociedade não estavam sendo libertadores, mas estavam colocando fardos pesados nas costas do povo. Com olhar altivo e penetrante, “Jesus vê uma grande multidão de famintos que vem ao seu encontro (Jo 6,5).” Isso nos remete à lembrança de que no Brasil há milhões de pessoas que têm os corpos implodidos pela bomba silenciosa da fome ou da má alimentação.

5) Postura crítica. Jesus não sentiu medo dos pobres, encarou-os e procurou superar a fome que os golpeava e humilhava. Apareceram dois projetos para resgatar a cidadania do povo faminto. O primeiro foi apresentado pelo discípulo Filipe: “Onde vamos comprar pão para alimentar tanta gente?” (Jo 6,5). No mesmo tom, outros discípulos tentavam lavar as mãos: “Despede as multidões para que possam ir aos povoados comprar alimento.” (Mt 14,15). Desculpas esfarrapadas não faltam. A de Filipe era: Nem 182,5 salários mínimos seriam suficientes para saciar os famintos. Hoje se repete à exaustão: “Não temos orçamento suficiente. São muitas as necessidades. O poder público não dá conta de responder positivamente a tudo. Os cortes nas áreas sociais serão para impedir a inflação de subir mais etc.” Filipe representa os que estão dentro do mercado e pensam a partir do mercado, o capital. Filipe está pensando que o mercado é um deus capaz de salvar as pessoas. Cheio de boas intenções, Filipe não percebe que está enjaulado na idolatria do mercado e do capital. A história brasileira está cheia de exemplos de governantes dizendo: “Esperem o bolo crescer para depois repartirmos. Esperem na fila da moradia que vocês terão a casa própria. .” Mas a história demonstra que sem lutas coletivas o bolo nunca é partilhado e se torna cada vez mais concentrado. O povo organizado tem aprendido como somente na luta conquistam-se direitos como terra e teto.

6) Postura criativa. O segundo projeto é posto à baila por André, outro discípulo de Jesus, que, mesmo se sentindo fraco, acaba revelando: “Eis um menino com cinco pães e dois peixes” (Jo 6,9). Jesus acorda nos discípulos e discípulas a responsabilidade social, ao dizer: “Vocês mesmos devem alimentar os famintos” (Mt 14,16). Jesus quer mãos à obra. Nada de desculpas esfarrapadas e racionalizações que tranquilizam as consciências. Jesus pulou de alegria e, abraçando o projeto que vem de André (em grego, andros = humano), anima o povo a “sentar na grama” (Jo 6,10). Aqui aparecem duas características fundamentais do processo protagonizado por Jesus para levar o povo da exclusão à cidadania, da injustiça à justiça. Jesus convida o povo para se sentar. Por quê? Na sociedade escravocrata do império romano somente as pessoas livres e cidadãs podiam comer sentadas. Os escravos deviam comer de pé, pois não podiam perder tempo de trabalho. Deviam engolir rápido e retomar o serviço árduo. Um terço da população era escrava e outro terço, semiescrava. Logo, quando Jesus inspira o povo para se sentar, ele está, em outros termos, defendendo que os escravos são seres humanos e, portanto, têm direitos e devem ser tratados como cidadãos.

“Um menino … (Jo 6,9).” O discípulo André não apontou que a solução para o problema da fome poderia vir de um sumo sacerdote, nem de um rei, nem de um saduceu, nem de um fariseu, mas apontou que poderia vir de um menino, uma criança. Isso para nos ensinar que é a partir do pequeno, do simples e dos humildes que surgem as verdadeiras soluções. Atuando de forma coletiva e comunitária, os pobres são protagonistas e sujeitos de sua libertação. É como dom Moacyr Grechi ensinou no 12º Intereclesial das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), em Porto Velho, em Rondônia: “Pessoas simples fazendo coisas simples, multiplicando aos milhares, conseguem grandes transformações.”

“Cinco pães e dois peixes …(Jo 6,9).” Não é a partir do muito e nem do forte que se supera os problemas mais graves que afligem o povo, mas é a partir do pouco de cada um/a.

7) Organização é o segredo da pedagogia de Jesus. Jesus estimula a organização dos famintos. “Sentem-se, em grupos de cem, de cinquenta, …” (Jo 6,10; Mc 6,40). Assim, Jesus e os primeiros cristãos e cristãs nos inspiram que o problema da fome e todos os outros problemas sociais só serão resolvidos, de forma justa, quando o povo marginalizado e injustiçado se organizar e partir para lutas coletivas.

8) Gratidão. “Jesus agradeceu a Deus (Jo 6,11).” A dimensão da mística foi valorizada. A luz e a força divinas permeiam e perpassam os processos de luta. Faz bem reconhecer isso. Vamos continuar cantando com Manoelão – cantor e compositor das Comunidades Eclesiais de Base que já partilha vida em plenitude – cantos revolucionários, tal como: É madrugada, levanta povo! / A luz do dia vai nascer de novo! / Rompe as cadeias, abre o coração,/ Vamos dar as mãos, já é o reino do povo! / O povo agora é Senhor da história, / Somos rebentos desta nova era. / A liberdade, a fraternidade. / São as bandeiras desta nova terra!

9) Não ser paternalista. Quem reparte o pão não é Jesus, mas os discípulos. Jesus provoca a solidariedade conclamando para a organização dos injustiçados como meio para se chegar à cidadania de e para todos. Dar pão a quem tem fome sem se perguntar por que tantos passam fome é ser cúmplice do capital que rouba o pão da boca da maioria.

10) Reaproveitar. “Recolham os pedaços que sobraram, para não se desperdiçar nada (Jo 6,12)”, nos ensina Jesus no final da narrativa da partilha de pães no quarto evangelho. Economia que evita o desperdício. Atualmente quase 1/3 da alimentação produzida é jogada no lixo, enquanto tantos passam fome. É hora de reduzir o consumo. Reaproveitar, reciclar. Nada deve se perder, mas ser tudo transformado. Em uma casa ecológica tudo é reaproveitado, inclusive as fezes são consideradas recursos, pois viram adubo fértil e orgânico. Envolvidos pela crise ecológica, com aquecimento e escurecimento global é hora de reduzir, reutilizar, reciclar, reaproveitar, recusar, recuperar e repensar.

2.14 – Participar da vida pública transformando a sociedade (Lc 10,38-42).

Seguindo para Jerusalém, Jesus entra na casa de duas mulheres, Marta e Maria. Tradicionalmente, a narrativa de Lc 10,38-42 tem sido interpretada como uma oposição entre vida Ativa e vida contemplativa. Ao longo dos séculos e ainda hoje, muitos usam e abusam de Lc 10,38-42 para justificar a vida contemplativa, mas essa interpretação não tem consistência exegética. Não há nenhuma referência no texto que diga que Jesus estivesse rezando ou orando com Maria. Para entender bem Lc 10,38-42 é preciso considerar algumas coisas.

Primeiro, nas duas perícopes anteriores, Lucas revelou uma oposição, um contraste: humildes X entendidos (Lc 10,21-24) e samaritano X sacerdote e levita (Lc 10,29-37). Em Lc 10,38-42 também há uma oposição, um contraste: Maria X Marta. A postura de Maria é elogiada por Jesus e a postura de Marta é censurada: “Marta, Marta! … uma só coisa é necessária…” (Lc 10,41-42).

Segundo, precisamos considerar a situação das mulheres na época de Jesus e de Lucas. As mulheres eram – não todas, é óbvio – propriedades do pai e, depois de casadas, dos maridos; não participavam da vida pública, deviam ficar restritas ao lar; não aprendiam a ler e a escrever; não recebiam os ensinamentos da Torá. Encontra-se escrito no Talmud dos Judeus (Escritura não-sagrada): “Que as palavras da Torá sejam queimadas, mas não transmitidas às mulheres”. A oração que muitos judeus piedosos rezavam dizia: “Louvado sejas Deus por não ter-me feito mulher!”

Ao sentar-se aos pés de Jesus, para ouvir-lhe os ensinamentos, Maria reivindica para si o direito de ser discípula. Ela reclama para si o direito de ser cidadã no sentido pleno. “Sentar-se aos pés” era a atitude dos discípulos dos rabis.

Em Lc 10,38-42, Maria faz desobediência civil e religiosa, pois fica aos pés de Jesus ouvindo-o. Só os homens judeus podiam ficar aos pés de um mestre e se tornarem discípulos. Ouve Jesus e, provavelmente, dialoga com Jesus e o interroga, e se torna discípula.

Um judeu entrar em uma casa onde só havia mulheres também era algo censurável pela sociedade. Jesus desobedece a essa regra moral e entra na casa de duas mulheres. Assim, Jesus vai formando seus discípulos e discípulas enquanto caminha para Jerusalém.

2.15 – Ser simples como as pombas e esperto como as serpentes.

Após uma longa marcha da Galileia a Jerusalém, da periferia à capital (Lc 9,51-19,27), Jesus e seu movimento estão às portas de Jerusalém. De forma clandestina, não confessando os verdadeiros motivos, Jesus e o seu grupo entram em Jerusalém, narra o Evangelho de Lucas (Lc 19,29-40). De alguma forma deve ter acontecido essa entrada de Jesus em Jerusalém, provavelmente não tal como narrado pelo evangelho, que tem também um tom midráxico, ou seja, quer tornar presente e viva uma profecia do passado.

Dois discípulos recebem a tarefa de viabilizar a entrada na capital, de forma humilde, mas firme e corajosa. Deviam arrumar um jumentinho – meio de transporte dos pobres -, mas deviam fazer isso disfarçadamente, de forma “clandestina”. O texto repete o seguinte: “Se alguém lhes perguntar: “Por que vocês estão desamarrando o jumentinho?”, digam somente: ‘Porque o Senhor precisa dele’”. A repetição indica a necessidade de se fazer a preparação da entrada na capital de forma clandestina, sutil, sem alarde. Se dissessem toda a estratégia a entrada em Jerusalém seria proibida pelas forças de repressão.

Com os “próprios mantos” prepararam o jumentinho para Jesus montar. Foi com o pouco de cada um/a que a entrada em Jerusalém foi realizada. A alegria era grande no coração dos discípulos e discípulas. “Bendito o que vem como rei…” Viam em Jesus outro modelo de exercer o poder, não mais como dominação, mas como gerenciamento do bem comum.

Ao ouvir o anúncio dos discípulos – um novo jeito de exercício do poder – certo tipo de fariseu se incomoda e tenta sufocar aquele evangelho. Hipocritamente chamam Jesus de mestre, mas querem domesticá-lo, domá-lo. “Manda que teus discípulos se calem.”, impunham os que se julgavam salvos e os mais religiosos. “Manda…!” Dentro do paradigma “mandar-obedecer”, eles são os que mandam. Não sabem dialogar, mas só impor. “Que se calem!”, gritam. Quem anuncia a paz como fruto da justiça testemunha fraternidade e luta por justiça, o que incomoda o status quo opressor. Mas Jesus, em alto e bom som, com a autoridade de quem vive o que ensina, profetisa: “Se meus discípulos (profetas) se calarem, as pedras gritarão.” (Lc 19,40). Esse alerta do galileu virou refrão de música das Comunidades Eclesiais de Base: “Se calarem a voz dos profetas, as pedras falarão. Se fecharem uns poucos caminhos, mil trilhas nascerão… O poder tem raízes na areia, o tempo faz cair. União é a rocha que o povo usou pra construir…!”

2.16 – Ser intransigente diante da opressão econômica e política.

Os quatro evangelhos da Bíblia[4] relatam que Jesus, próximo à maior festa judaico-cristã, a Páscoa, impulsionado por uma ira santa, invadiu o templo de Jerusalém, lugar mais sagrado do que os templos da idolatria do capital que muitas vezes tem a cruz de Cristo pendurada em um ponto de destaque. Furioso como todo profeta, ao descobrir que a instituição tinha transformado o templo em uma espécie de Banco Central do país + sistema bancário + bolsa de valores, Jesus “fez um chicote de cordas e expulsou todos do templo, bem como as ovelhas e bois, destinados aos sacrifícios. Derramou pelo chão as moedas dos cambistas e virou suas mesas. Aos que vendiam pombas (eram os que diretamente negociavam com os mais pobres porque os pobres só conseguiam comprar pombos e não bois), Jesus ordenou: ‘Tirem estas coisas daqui e não façam da casa do meu Pai uma casa de negócio.” Essa ação de Jesus foi o estopim para sua condenação à pena de morte, mas Jesus ressuscitou e vive também em milhões de pessoas que não aceitam nenhuma opressão.

2.17 – Algumas conclusões.

Durante a leitura, meditação e estudo do Texto-Base da Campanha da Fraternidade de 2015, inúmeras vezes me veio à mente e ao coração a pessoa do papa Francisco, sua práxis e seu ensinamento como guia da Igreja Católica no mundo. Vejo muita sintonia entre o que nos pede Jo 5 a 8 e o que nos anima o papa Francisco. Por isso registro aqui algumas afirmações do papa Francisco na Exortação Apostólica A Alegria do Evangelho, principalmente fazendo referência ao cap. IV, que trata justamente da Dimensão Social da Evangelização:

“Se a dimensão social da evangelização não for devidamente explicitada, corre-se o risco de desfigurar o sentido autêntico e integral da missão evangelizadora.” (n. 176).

“Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com ser o centro, e que acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos.” (n. 49).

Além de ser pobre e para os pobres, a Igreja desejada por Francisco é corajosa em denunciar o atual sistema econômico, “injusto na sua raiz” (A alegria do Evangelho, n. 59). Como disse João Paulo II, a Igreja “não pode nem deve ficar à margem na luta pela justiça” (n. 183).

“Saiam!” é a essência da mensagem que o papa Francisco envia a bispos, padres, membros da comunidade. Saiam para fora das suas cômodas estruturas eclesiais burguesas e do caloroso círculo dos convencidos – anunciem o Evangelho às periferias das cidades, aos marginalizados pela sociedade, aos pobres, aos injustiçados.

Às questões sociais, o papa Francisco dedica dois dos cinco capítulos da Exortação Apostólica A Alegria do Evangelho, o segundo e o quarto. Critica o “fetichismo do dinheiro” e “a ditadura de uma economia sem rosto e sem um objetivo verdadeiramente humano”, versão nova e implacável da “adoração do antigo bezerro de ouro”.

Francisco critica o atual sistema econômico: “esta economia que mata” porque prevalece a “lei do mais forte”. Ele volta à cultura do “descartável” que criou “algo novo” e dramático: “Os excluídos não são ‘explorados’, mas resíduos, ‘sobras'” (n. 53). Enquanto não se resolverem radicalmente os problemas dos pobres, renunciando “à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social – insiste –, não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problema algum”. E indica na “desigualdade social” as raízes dos males sociais.

A Igreja não pode ficar indiferente a tais injustiças. “A economia não pode mais recorrer a remédios que são um novo veneno, como quando se pretende aumentar a rentabilidade reduzindo o mercado de trabalho e criando assim novos excluídos”. Ele dedica páginas à denúncia da “nova tirania invisível, às vezes virtual” em que vivemos, um “mercado divinizado”, onde reinam a “especulação financeira”, “corrupção ramificada”, “evasão fiscal egoísta” (n. 56).

Enfim, seguir Jesus implica andar na contramão, remar contra a correnteza de tantos fundamentalismos e da idolatria do consumismo. Exige também rebeldia, coragem, audácia diante de costumes que entortam o queixo e de modas que aniquilam o infinito potencial humano existente em nós.

Para concluir não concluindo, contamos com todas as pessoas cristãs para vivenciar a Opção preferencial pelos Pobres e pelos Jovens, buscar alternativas para a superação da atual crise socio-política-econômica-cultural e religiosa. Apoiar firmemente a Economia Popular Solidária, as lutas pela Reforma Agrária, por agricultura familiar, por preservação ambiental, pela mudança do atual modelo econômico neoliberal. Queremos um modelo econômico que seja popular, democrático, soberano, inclusivo e sustentável ecologicamente. Queremos construir outro modelo de igreja, onde, de fato, a igreja seja povo de Deus, em comunidades que se relacionam em sistema de rede.

2.18 – Referências de práxis libertadora.

Preferimos nesse artigo não citar nenhuma obra da literatura bíblica ou teológica, mas dizer que o que nos inspirou o tempo todo na construção do texto foi a experiência de luta dos Sem Terra do MST, dos Sem Casa, do povo das Comunidades Eclesiais de Base, das Pastorais Sociais e dos Movimentos Sociais Populares: povo que de forma coletiva, com fé no Deus da vida, fé nos companheiros/as, fé nos pequenos e injustiçados, de mãos dadas, seguem marchando e lutando para conquistar direitos fundamentais como um pedacinho de terra, moradia digna e respeito. Enfrentam um tsunami de conflitos e de perseguições, mas não desistem. A todo esse povo dedico esse texto.

2.19 – Apêndice.

Sugestão de textos e eventos bíblicos libertadores que podem inspirar a vivência da dimensão social da fé cristã, Fraternidade e Sociedade:

1) Gn 1: Toda a Criação é muito boa, imagem e semelhança de Deus.

2) Ex 1,15-22: O Movimento das parteiras faz Desobediência civil e religiosa. Cf. Gandhi, Martin Luther King, as camponesas da Via Campesina.

3) Ex 3,7-10: Deus ouve o clamor dos oprimidos e faz opção pelos injustiçados.

4) Davi vence Golias.

5) Is 65,17-25: Eis um novo céu e uma nova Terra.

6) Dn 2,31-37: Uma pedrinha destrói um gigante de pés de barro – a força da profecia.

7) Jo 6,1-15: Solução radical para a fome de pão – partilha de pães.

8) Mt 21,12-13: Jesus expulsa os capitalistas do Templo.

10) Ap 12,1-17: Uma mulher grávida, em dores de parto, vence um Dragão.

11) At 21,1-7: Deus deixa o céu e arma sua tenda no meio dos pobres.

Grandes projetos, um tormento na vida dos pobres

Vivemos um tempo perigoso. O capitalismo, máquina de moer vidas, está funcionando a todo vapor triturando vidas de bilhões de pessoas e de outros seres da biodiversidade. Estamos em tempos de fundamentalismos, de céus povoados de anjos e entidades, de demônios por todos os lados, de gritaria de deuses, de promessas, de busca insaciável de bênçãos, de procissões, de peregrinações, de necessidade de expiação, de moralismos, de religiões sem Deus, de salvações sem escatologia, de cristianismos light, de libertações que não vão muito além da autoestima. Enfim, tempos de autoajuda, de dar um jeitinho para ir empurrando a vida.
Clamores ensurdecedores brotam dos porões da humanidade. A mãe Terra clama para ser salva, pois está sendo crucificada impiedosamente pelos grandes projetos capitalistas. Medo, insegurança e instabilidade atingem a todos. Atualmente insiste em imperar uma mística anti-evangélica do descompromisso com os pobres.
Estes, além de empobrecidos, são marginalizados, injustiçados e acusados de serem os responsáveis primeiros pela sua situação de miséria. Inverte-se a realidade: os verdugos tentam parecer bons samaritanos. As vítimas são consideradas vagabundas, irresponsáveis e bagunceiras.
A estrutura de violência e de exclusão fragmenta multidões, deixando as pessoas em cacos. É hora de recompor os cacos em um grande e articulado mosaico. É hora de reintegrar as nossas forças e energias vitais.
Em 2014 no Brasil, e na maioria dos países do mundo, o povo vive sob as agruras e o tormento dos grandes projetos. Por aqui estes são executados em nome do PAC – Programa de Aceleração do Crescimento -, no Nordeste, apelidado de Programa de Ameaça às Comunidades.
Dentre os grandes projetos do PAC, os de maior impacto são: as grandes barragens e usinas hidrelétricas, como as de Jirau e Santo Antônio, no Rio Madeira, em Rondônia; a barragem e hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, em Altamira, no Pará; a Transposição das águas do rio São Francisco; construção de vários portos e aeroportos e ampliação e modernização de outros; fusão de grandes empresas que concentram cada vez mais o capital e vão matando as pequenas empresas.
Exemplos não faltam nas áreas de telecomunicações, de aviação, das construtoras, dos grandes supermercados, dentre muitos outros. Muitos pensam que esses projetos beneficiam todo o povo, mas, na realidade, tratam-se de infraestrutura para viabilizar o crescimento do capital, hoje primordialmente nas garras de empresas transnacionais. Quase sempre esses grandes projetos são realizados por grandes empresas, mas por meio de financiamento público, via BNDES[3].
A chegada de um grande projeto é sempre envolvida por campanha publicitária espetacular que anuncia estar chegando à região uma alavanca de desenvolvimento social, geradora de emprego e que não irá causar grandes males à já tão sofrida natureza, a biodiversidade e às pessoas. Chefes da política, da economia e até da religião são cooptados e muita gente seduzida. Assim, a massa acolhe esses projetos como se fossem benfeitores que trarão emprego e melhorias sociais, mas, logo, descobre que se gera poucos empregos e, muitas vezes, em condições análogas à de escravidão.
Acontece o que ensina a fábula do Escorpião e o Sapo, que diz: um escorpião pede a um sapo que o leve através de um rio. O sapo tem medo de ser picado durante a viagem, mas o escorpião argumenta que não há motivo para o sapo temer tal traição, pois se picar o sapo, esse afundaria e o escorpião da mesma forma iria junto afogar.
O sapo concorda e começa a carregar o escorpião, mas no meio do caminho, o escorpião, de fato, aferroa o sapo, condenando ambos. Quando perguntado por que, o escorpião responde que esta é a sua natureza. Isso mesmo: a natureza do capitalismo é aferroar vidas o tempo todo e cada vez com mais veneno. O funcionamento do capitalismo exige expansão, crescimento sem limites.
Isso é impossível pois a natureza precisa de tempo para se recuperar das agressões. A mercadoria, base da acumulação do capital, destrói o ambiente e explora os trabalhadores. Portanto, não dá mais para acreditar que na nossa caminhada na vida o capitalismo seja a melhor companhia.
Por tudo isso, é um imenso desafio enfrentar o poder opressivo do capital diante desses mega projetos. Voltando o nosso olhar atentamente para as narrativas bíblicas, percebemos que o povo da Bíblia também experimentou na própria pele as agruras de grandes projetos. Resgatar um pouco do que foram esses grandes projetos e como o povo bíblico resistiu diante deles, talvez possa inspirar em nós táticas e estratégias para o enfrentamento aos grandes projetos de hoje. Isso é o que veremos nas próximas partes do Artigo “Grandes projetos na Bíblia e a Resistência do Povo”.
Belo Horizonte, 23 de junho de 2014.
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[1] Eis aqui a 1ª parte do Artigo publicado na Revista Estudos Bíblicos, Vol. 30, n. 120, out/dez 2013, pp. 339-358.
[2] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; doutorando em Educação pela FAE/UFMG; assessor da CPT, CEBI, SAB e Via Campesina; conselheiro do Conselho Estadual dos Direitos Humanos de Minas Gerais – CONEDH. E-mail: gilvanderlm@gmail.comhttp://www.gilvander.org.brhttp://www.freigilvander.blogspot.com.brhttp://www.twitter.com/gilvanderluis – facebook: Gilvander Moreira
[3] Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. Mas o “social” está esquecido, desenvolve-se o econômico às custas do social.

Quem de fato impede o direito de ir e vir

Ficou muito claro para todos os que tiveram acesso, no dia 04 de fevereiro de 2014, ao perfil no Facebook de uma pessoa que tem um alto cargo de confiança na Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), MG, e que ainda por cima ocupa um cargo público de magistério, o que pensa a Administração Municipal de Belo Horizonte, e quem a apóia, sobre o direito das pessoas pobres na nossa cidade.
Foi postado o seguinte comentário: “Sem entrar no mérito dessa ou daquela manifestação, mas fechar a avenida mais importante da cidade pra mim é repugnante. E os direitos das outras pessoas, estejam em ônibus ou carros? Ambulâncias que não andam, mães que precisam buscar seus filhos e não conseguem chegar, bombeiros parados. O nome disso não é democracia. Antes, é sua antítese.”
Ela se referia ao fato de pessoas representantes das 8.000 famílias das Ocupações Rosa Leão, Esperança e Vitória, da Região do Isidoro, em Belo Horizonte, estarem acampadas na porta da Prefeitura de Belo Horizonte, na Av. Afonso Pena. De fato, a manifestação dificulta ainda mais o trânsito da cidade que já é horrível em boa parte do dia na região. Aquelas famílias estavam ali reivindicando abertura de diálogo com o prefeito de Belo Horizonte, Sr. Márcio Lacerda, e com a PBH para evitar os despejos de 8 mil famílias das três ocupações, acima mencionadas, pois o Comando da Polícia Militar já tem em mãos ordens para forçar o cumprimento da ordem judicial que quer expulsar aquelas pessoas do lugar onde lutam para morar, demolindo as cerca de mil casas de alvenaria e milhares de barracos de lona preta ou de madeirite.
Caso não fossem a intransigência do prefeito de BH e o descaso das autoridades públicas para o reconhecimento do direito fundamental à moradia não haveria acampamento diante da PBH e nem bloqueio de trânsito. É indiscutível que todas as pessoas devem ter no mínimo o direito de morar, o direito de descansar o corpo para poder trabalhar no dia seguinte. Como bem explícito no comentário da “autoridade” municipal o que ela não quer é entrar no mérito da questão. Ou seja, a administração está pouco se importando com a situação de penúria e de violência que cotidianamente fustiga a população empobrecida e injustiçada. Acomodados em seus confortáveis lugares sociais
querem que nada perturbe os seus dias, em vários empregos para acumular mais riqueza.
Contrariamente ao comentário injusto, o que temos de exigir é que os detentores de cargos públicos entrem sim no mérito da questão. É o mínimo que devem fazer para honrar os seus cargos e os altos salários que recebem, pois são pagos com dinheiro público. Todos temos responsabilidades diante dos graves problemas sociais que infernizam a vida de todos na cidade, todavia de forma muito mais violenta as das famílias pobres, abandonadas na periferia de tudo. Pior do que comprometer o trânsito será desabrigar e jogar nas ruas 8 mil famílias só em Belo Horizonte.
Passeando pelo perfil da funcionária de confiança da PBH no Facebook, podem-se ver fotos de inúmeras viagens internacionais, em ambientes luxuosos. Não é mesmo de se estranhar a falta de sensibilidade. Se perguntarmos a ela e a todos/as os/as amigas dela que teceram comentários concordando com a postagem no seu perfil, compreenderemos melhor a razão de tudo isso: 1) Quem foi que suou muito para construir as casas e os apartamentos confortáveis onde vocês moram? 2) Quem trabalhou muito ganhando salário injusto para fabricar os automóveis luxuosos que vocês andam? 3) Quem faz a comida que vocês comem todos os dias? 4) Quem são as domésticas que limpam as casas e cozinham para vocês? 5) Quem são e onde moram as babás que cuidam (ou cuidaram) dos seus filhos? 6) Quem paga a maior parte dos impostos nunca revertidos com justiça para as políticas sociais necessárias na cidade? Quem paga os altos salários de vocês servidores públicos? O povo, inclusive e principalmente os que menos recebem benefícios.
Entendemos não ser preciso fazer outras perguntas, tais como: a) Se você com os seus filhos estivessem sob o sufoco do aluguel, será que também não achariam justo lutar por uma casa própria? Se vocês fossem tratados da forma como o prefeito Márcio Lacerda e vocês estão tratando os pobres que ousam lutar pelos seus direitos, será que estariam mostrando toda essa pompa no Facebook, ou contrariamente estaria mostrando indignação?
Ponham o dedo na consciência e percebam que vocês estão tão distantes da realidade dos pobres que, assim, só gostam da força de trabalho deles. Você, ainda por cima professora de faculdade pública, desrespeita a dignidade humana, as belezas, os dons, as criatividades e os talentos que existem em todas as pessoas que tentam com luta justa mudar essa absurda injustiça na cidade.
Tristes de nós se não fossem os outros na nossa vida! Deveriam aprender com o filme O Náufrago para ver como o outro nos dignifica. Saibam que grande parte da classe trabalhadora que constrói a cidade e a faz funcionar todos os dias são pessoas pobres que vivem sufocadas pelo preço do aluguel, ou sob a humilhação de sobreviver de favor. Quanta humilhação e discriminação sofrem!
Vocês conseguiriam sobreviver uma semana debaixo da lona preta em um barraco de qualquer uma dessas ocupações? Que democracia é essa que joga parte do povo à margem da sociedade? Olhem mais profundamente e reconheçam que quem, em última instância, atrapalha o trânsito e cria caos na cidade/sociedade é o prefeito Márcio Lacerda (Poder Executivo), porque não ouve, não dialoga e não negocia com os pobres e nem com os movimentos sociais; é a juíza Luzia Divina (TJMG) e os juízes quando desrespeitam os princípios constitucionais, tais como, respeito à dignidade humana, função social da propriedade, que não exige reassentamento prévio antes de mandar despejar; é a classe dominante e todos os que se beneficiam do sistema do capital, porque geram e consomem o luxo, enquanto empurram para o lixo a maioria da classe trabalhadora.
Enfim, detentora de cargo de confiança e apoiadores do status quo injusto, pensando e agindo assim – com intransigência e intolerância – vocês estão violentando os que trabalham duro para sustentar o luxo de vocês. Bem dizia o grande Marx: “O lugar social determina o lugar epistemológico.” Ou como disse uma pessoa em situação de rua: “Nossos olhos estão nos nossos pés.”
Vemos o mundo a partir de onde pisamos. Ouçam um bom conselho: Parem de pisar só nos tapetes vermelhos. Venham pisar na poeira das ocupações. Venham fazer sauna debaixo dos barracos de lona preta das ocupações. Venham para o meio dos pobres ouvi-los. Venham ver e contemplar os rostos sofridos. Venham conhecer a luta árdua de mães que fazem o milagre de sobreviver com salário mínimo para dar mais braços para construir as suas casas, fabricar os carros e produzir a boa comida que vocês comem. Assim, talvez, vocês se converterão de fato em defensores da democracia.
Belo Horizonte, MG, 17 de fevereiro de 2014.