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Os desafios da educação popular no atual contexto brasileiro

“A humanidade só levanta problemas que é capaz de resolver.” Karl Marx

 

“Nenhuma realidade é assim mesmo. Toda realidade está submetida à possibilidade de nossa intervenção nela.” Paulo Freire

 

Cumprimento freireanamente a todos, a todas, que nos acompanham nesta sessão inicial da XVII Jornada Paulo Freire, organizada conjuntamente pela Cátedra Paulo Freire na Amazônia, no estado do Pará, organizada pela Profa. Dra. Ivanilde Apoluceno de Oliveira e Núcleo de Pesquisa em Educação Popular, coordenado pelo Prof. Dr. Sérgio Roberto Moraes Correa. Valho-me desta ocasião, também, para me congratular com o povo Paraense por haver-se irmanado desde as eleições de 2018, ao povo nordestino, no protagonismo-cidadão, em socorro do gemido da terra e do clamor dos pobres. Sintam-se todos e todas abraçados e abraçadas.

 

O tema que nos foi proposto para esta Jornada é “OS DESAFIOS DA EDUCAÇÃO POPULAR NO ATUAL CONTEXTO BRASILEIRO”. Em busca de uma exposição didática sobre o tema, cuido de propor o itinerário:

 

Uma introdução contextualizando sobre o tema

 

Nº1: Nosso horizonte de Esperança/Esperançar

  • Qual modo de produção?

  • Qual modo de consumo?

  • Qual modo de gestão societal?

Nº2: Exercitando a memória história do oprimidos

  • As lutas coletivas de nossas gentes

  • Biografias que nos inspiram

 

O lugar da Mística revolucionária

Nº3: Práxis revolucionária em nosso cotidiano

  • No plano organizativo

  • No plano da formação contínua

  • No plano da luta permanente

 

Considerações sinópticas

 

TRAÇOS DA ATUAL CONJUNTURA BRASILEIRA À LUZ DA EDUCAÇÃO POPULAR

 

A despeito de avanços pontuais, aqui e ali, seguimos mergulhados em profunda e prolongada crise multifacetada, seja no Brasil, seja em escala mundial, substancialmente produzida pelo caráter que o Capitalismo hoje assume pela financeirização da economia, organicamente conectada com os demais setores do Capital e seu Estado.

 

Desde o golpe de 2016 preparado cerca de 3 anos antes, o Brasil vem enfrentando tempos tenebrosos, sucessivas crises de enorme alcance devastador. Crise multifacetadas. A pandemia da COVID-19, cuja gestão desastrada custou um número excessivo de vítimas fatais e sequeladas, acena fortemente para o caráter do golpe de 2016, cujo o alcance extremado o Brasil experimentou como desgoverno atual. Igualmente, no âmbito socioambiental, os estragos foram e continuam sendo profundos, cuja a recuperação impõe a resistência prolongada de gerações. No plano econômico a consequência mais amarga se pode medir pelos auto índices de desemprego estrutural, fruto das contra-reformas trabalhista e previdenciária, culminando com escandaloso índice de mais de 30 milhões de pessoas passando fome. No plano político,tivemos que enfrentar uma sucessão escandalosa de crimes de gestão. No terreno da cultura, reinou o negacionismo alimentado pelo fundamentalismo religioso a impulsionar atitudes de estupidez coletiva refletida em inúmeros exemplos cotidianos de racismo estrutural, de misoginia, de LGBTQIA+fobia, xenofobia, aporofobia, atitudes também de ecocidas…

 

NOSSO HORIZONTE DE ESPERANÇA/ESPERANÇAR

Passando para os três tópicos, cada um deles também compreendendo três subtópicos eu cuido de externar a sequência.

 

Primeiro a partir do horizonte de esperança que buscamos manter sempre aceso. Horizonte de esperança em relação ao processo de construção de uma nova sociedade. Este tópico primeiro compõe-se de três momentos. Um primeiro momento diz respeito a que antes de qualquer coisa, diante da complexa conjuntura que a gente tratou de esboçar no início, a gente trate primeiramente de ver qual é o tipo de sociedade que a gente deseja construir. Este é o horizonte de esperança que somos chamados historicamente a manter sempre aceso, como condição sem a qual a gente não consegue viabilizar os outros passos que aqui nos referilharmos mais abaixo. Então se trata, de entendermos que tipo de sociedade desejamos construir, qual é o tipo de modo de produção, modo de consumo, tipo de gestão societal que desejamos ir construir nesta direção de manter sempre acesso o horizonte de esperança. É assim que vamos buscar desenvolver este primeiro ítem, baseado no horizonte de esperança do qual nós partimos.

 

Modo de produção – que modo de produção?

 

Nós sempre partimos desta constatação: quais são nossas motivações, de mulheres, de homens, de cidadãos, de cristãos para quem são, e do dia-a-dia, militantes do dia-a-dia saber qual é o tipo de sociedade que desejamos construir? Sem fazer isso, a gente não consegue os objetivos que a gente busca aqui colocar nos ítens seguintes. Neste sentido costumo lembrar de uma frase extraída de um filme que fez a geração de militantes da minha época, dos anos 70. Trata-se de um filme chamado “Queimadas”. O filme conta a história de libertação de uma ilha do Caribe, quem sabe se não pode ser o próprio Haiti, que buscou enfrentar o desafio da colonização primeiramente portuguesa, e depois inglesa. E um desses atores, uma dessas personagens, chamada “José Dolores”, costumava dizer esta frase que eu sempre retive em todos os momentos em que eu discuti este filme conjuntamente, a frase era “ é melhor saber para onde ir sem saber como, do que saber como e não saber pra onde ir”. José Dolores, a personagem protagonista desta frase e dos processos de libertação daquela ilha do Caribe, frente primeiramente a Portugal, depois a Inglaterra. Este filme marca esta geração, no sentido de estarmos sempre alerta para saber para onde nós queremos rumar, sem a gente ter essa perspectiva deste horizonte, a gente incorre em fracassos tremendos. Por isso que é importante neste primeiro momento a gente refrescar a cabeça e o compromisso em que tipo de sociedade nós queremos construir. Qual é o tipo de modo de produção? É este modo de produção que nos satisfaz? Claro que não. O modo de produção capitalista visa ao lucro. Ao lucro a custo da miséria de milhões e bilhões da humanidade, nos dias presentes. Haja vista, no caso do Brasil, o tanto de alimentos de que o Brasil é produtor em âmbito internacional, vivendo ao mesmo tempo sua população desnutrida e passando fome. Não são 2 ou 3 pessoas, mas 33 milhões de pessoas passando fome. Como se pode entender que este modelo de produção sirva para os interesse dos conjuntos de brasileiros e brasileiras. Ou seja, como o tipo de produção é importante… produzir o que? Para o agronegócio, por exemplo? Produzir alimentos da agricultura familiar, da qual nós retiramos 70% dos alimentos que vão à mesa ddo povo brasileiro? Ou a gente continuar do jeito que está? É saber portanto que quando falamos de modo de produção, que a gente busca superar para introduzir e ir construindo um modo de produção alternativo se trata da gente buscar examinar as múltiplas possibilidades que a gente tem aí, de saber o que a gente produz, é alimento de commodities, por exemplo? é alimento apenas para servir a engordar os porcos em outros países ou a gente prioriza a alimentação dos nossos? Ou a gente trata de priorizar a produção de alimentos orgânicos, de alimentos que não envenenem os nossos rios, o nosso subsolo, os solos, os nossos vegetais, os nossos animais e, também, os nossos humanos? Trata-se, portanto, de definir o modo de produção que a gente busca ir construindo, de maneira a ir superando o grande desafio que nos impõe o sistema capitalista em sua atual fase, que é a fase de financeirização da economia. A este respeito são muitas as contribuições, por exemplo – de tanta gente, aqui eu vou citar apenas uma pessoa que é o Ladislaw Dowber. Ele tem um site impressionante, em harmonia, em contato com outros países. É um grande pesquisador da PUC – SP e que disponibiliza seus textos, seus áudios para milhares de pessoas. É importante ver na contribuição de Ladislau Dowber, um grande economista, que se ocupa de saber quais são as alternativas que a gente tem para vencer a financeirização da economia. Esse é o primeiro desafio que a gente encontra, o de buscar superar o modo de produção capitalista, procurando definir de maneira conjunta, coletiva, pela base o que é que nós devemos produzir, para quem, como devemos produzir, quem ganha, quem perde com essa produção, definir portanto um novo modo de produção anticapitalista. Ao mesmo tempo outra pergunta nos interessa aqui. É saber se basta a gente se comprometer com um novo modo de produção sem tocarmos também na importância que tem o consumo também. Trata-se de aliarmos também a este novo modo de produção anticapitalista o nosso compromisso em produzir um novo modo de consumo. Todo mundo sabe que seria impossível para a Mãe Terra suportar um consumo elevadíssimo como acontece, por exemplo, nos Estados Unidos, se a gente entendesse que nós iríamos conduzir nessa direção, de um consumo exorbitante, a Mãe Terra deveria ter, sei lá, dez vezes mais o tamanho e a natureza que tem. De modo que a gente é chamado a construir um novo modo de consumo também, tanto do ponto de vista das políticas públicas quanto do ponto de vista individual, de darmos exemplo neste sentido. Nesta direção, por exemplo, o famoso paradigma Buen Vivir nos ajuda muito a avançar, a nos converter para uma convivência fraterna e harmoniosa com a Mãe Natureza e com seus viventes. De modo que, resumindo, não basta nos preocuparmos apenas com um novo modo de produção. Isso, por si, é muito importante, mas não basta. Temos que associar a esse novo de produção um novo modo de consumo, definindo que tipo de consumo nós vamos fazer para a sociedade e como a gente pode se controlar contra o consumismo, que é uma doença perversa do capitalismo que afeta e adoece a humanidade e adoece também o planeta. Um novo modo de consumo vem juntar-se à luta por um novo modo de produção, de maneira que os povos indígenas,os povos ribeirinhos, das florestas e das matas, os camponeses trabalhadores e trabalhadoras do campo e da cidade tenham consciência que é preciso entender a sabedoria da mãe natureza, como ela faz para assegurar o bem da Terra. Nós somos chamados também a compartilhar desta missão de responsabilidade em relação aos destinos da Mãe Natureza e da Terra. Um novo modo de consumo nos ajuda certamente nessa direção. Então aqui fizemos em três ítens de componentes deste primeiro tópico. O primeiro tópico, como sabem, é a questão do novo modo de produção, do novo modo de consumo e de um novo modo de organização de gestão societal. Então, a gente vai observar que no terceiro ponto há necessidade de irmos encontrando um novo jeito de definir a gestão societal diferentemente dos marcos do capitalismo. Isto significa dizer para nós que a gente é chamado a repartir a gestão. Não deixar na mão dos grandes empresários, principalmente, dos grandes conglomerados estrangeiros tão bem estudados, entre outros, por Dowber. Eu gostaria que as pessoas conhecessem mais as propostas de Dowber sobre este ponto. Isto significa dizer que nós somos chamados a perseguir e a implantar um novo modo de gestão societal, não podemos nem devemos entregar todas as fichas sob responsabilidade do Estado. O Estado é uma entidade, como nós sabemos, desde a Idade Antiga – eu me refiro à Roma Antiga, me refiro as lutas sociais da Roma Antiga, da Idade Média, da Idade Moderna, da Idade contemporânea – o Estado sempre foi e continua sendo um pilar decisivo junto com o Mercado capitalista de definição de não somente de modo de produção, de modo de consumo como também da gestão societal. É muito importante a gente se abrir para esse novo modo de gestão societal, procurando não entregar as fichas da gente na responsabilidade do Estado, mas sim procurar exercer uma autonomia frente ao Estado e frente ao Mercado capitalista, haja vista os rumores indevidos do tal “Mercado” frente ao reto pronunciamento de Lula na COP27. Neste sentido, com tristeza que constato que nos anos 80 nós tínhamos essa consciência mais clara, de desconfiança do Estado. A medida que a gente foi optando pela linha eleitoral, a gente foi perdendo de vista os riscos enormes que o Estado nos proporciona ainda hoje, e o resultado disso é o abandono das bases; dos conselhos; dos centros; das organizações coletivas que tínhamos, que do ponto de vista estatístico foi um sucesso, isso é verdade, a gente passou a ter cada dia mais candidatos eleitos, no âmbito municipal, estadual, regional, nacional. Quanto a isso não podemos nos queixar. Mas qual é o saldo que a gente recolhe deste avanço estritamente eleitoral? Não é um saldo positivo, se a gente percebe bem o quanto deixou de contribuir com as bases, de contribuir enraizadamente nas comunidades rurais, nas comunidades urbanas, nas favelas, nas periferias urbanas. Quanto isso deixou de aprofundar essa relação orgânica dos militantes com essas bases sociais? Isso implicou numa sangria muito grande, do qual a gente hoje tem um balanço muito desfavorável. Não fosse isso, por exemplo, como a gente explica isso nos dias de hoje que seja a direita e não a esquerda que tenha a capacidade de mobilizar gente? Mesmo que a direita o faça com base no derrame de dinheiro que as grandes empresas utilizam, é verdade, mas se a gente, do ponto de vista dos trabalhadores e trabalhadoras, a gente tivesse minimamente organizado, quem tomaria a iniciativa seria a gente e não a direita.

 

Então, eu volto a dizer que aqui nós contemplamos três dimensões neste tópico:

 

1 – Novo modo de produção, consumo e gestão societal.

 

A primeira dimensão é o nosso compromisso com a construção de um novo modo de produção, dinamicamente articulado com um novo modo de consumo, e também articulado, por sua vez, a um novo modo de gestão societal, que significa decidir pelas bases, decidir tendo aqueles que compõe os conselhos, as células, os ciclos culturais, os núcleos ou que outros nomes tenham, contribuir com eles as decisões tomadas pelas base, que sejam levadas também a outras instâncias, em âmbito estadual, regional, nacional ou internacional.

 

Quando a gente perdeu esse ritmo, a gente certamente passou a acumular uma série de erros históricos lamentáveis. Este item acende qual horizonte apostamos, qual o horizonte que devemos apegar, que apostamos e que vai nos ajudar a transpor as amarras desta barbárie capitalista.

 

Isto me faz lembrar, entre outras coisas, de um filme dos anos 70, que caracterizou muito as gerações de militantes do meu tempo, que era chamado “Queimada!”, “Burn!” em inglês, onde conta a história do levante de um povo de uma ilha (fictícia, mas inspirada no Haiti), contra a invasão portuguesa e depois contra a invasão inglesa. Há uma tentativa de populares, que animados por essa figura chamada José Dolores, de enfrentar essa realidade. Tem uma frase que ele sempre repetia que era “É melhor saber para onde ir sem saber como do que saber como e não saber para onde ir”. Este filme eu tive a ocasião de trabalhar, de refletir com os estudantes, em muitas salas de aula na FAFICA e em Arcoverde. Ele teve um grande alcance didático na compreensão do processo de colonização, de dominação. Então gostaria de dizer esta parte: é preciso saber para onde estamos indo, isto significa dizer manter sempre vivo o horizonte de nossa luta, o horizonte de nosso plano, perspectivas, esperanças.

 

O segundo tópico eu gostaria de desenvolver com vocês tem a ver com o exercício da memória histórica dos oprimidos. Este é o segundo tópico.

 

2- O exercício da memória histórica do oprimidos

Então, este tópico se compõe de três subitens, aos quais me referirei adiante. Quando se trata de exercitar a memória histórica significa dizer que para os “debaixo”, – os Trabalhadores, Trabalhadoras -oprimidos e oprimidas- , ao exercitar essa memória coletiva de suas lutas, internacionais, latinoamericanas, nacionais, regionais. Isto tem uma força relevante de animação para continuar forte na própria luta também. A memória histórica dos oprimidos, faz com que, uma vez exercitada adequadamente, essa memória história ajude a renovação dos compromissos de mudanças sociais, no sentido de fazer com que como é que nossas gentes europeias, africanas, asiáticas, da oceania, como é que essas bases conseguiram enfrentar essa barbárie do colonialismo e de outras manifestações impostas pelos setores dominantes do capitalismo. Então, nesse sentido, trata-se de ir refrescando a memória perigosa, essa memória subversiva. Não se trata, portanto, de nos limitarmos a um exercício de saudosismo, mas ao contrário, de trazermos de volta à conjuntura presente de volta os nossos compromissos com as mudanças efetivas com que nós somos chamadas a realizar. Esta memória histórica funciona como um animo, uma motivação a mais, uma força que ajuda a gente primeiro a compreender os desafios da realidade de hoje, segundo a enfrentar criticamente e de maneira corajosa esses desafios no presente também. É importante que a gente destaque esse lado de que o exercício da memória histórica ajude a gente nessa direção. Ao mesmo tempo, é importante frisar que a memória histórica não se dá estritamente no plano coletivo, de massas, por exemplo as grandes revoluções, grandes lutas, a Comuna de Paris, por exemplo. Mas também no âmbito pessoal, no âmbito da elaboração da cabeça, do coração, de revolucionários de vida exemplar. Então, estudar, por exemplo, suas biografias. Estudar suas biografias representa um passo importante para os jovens de hoje e de amanhã, a saberem como essas figuras, mulheres e homens, se comportaram diante dos desafios de seu tempo, e como foram capazes de enfrentá-los de algum modo. Nós então recolhemos deles, e delas, lições para os dias de hoje. Não no sentido de pretender reedita-los, porque elas são importantes para o contexto em que eles e elas viveram. Mas evidentemente que hoje estamos diante de velhos e novos desafios, e hoje nosso compromisso é de entender o caráter desses novos desafios e saber como proceder diante deles, colhendo indicações importantes dessas lutas do passado, mas sempre evitando reeditados mecanicamente, pois trata-se de entender hoje esses desafios. É importante cultivar a memória histórica dos oprimidos, associando sempre a questão da mística revolucionária. Os militantes e as militantes, ao recordarem esses grandes lances de enfrentamento da realidade passada, também se sentem tocados em renovarem seus compromisso no presente. Há aí atravessando suas lutas, seus compromissos, há uma mística revolucionária, que os anima, que nos dá força rumo nesta direção. Então é muito importante relacionar a mística revolucionária ao exercício da memória histórica dos oprimidos nesta perspectiva internacional, latinoamericana, e também brasileira. É muito importante a gente centrar força em relação a mística revolucionária com o exercício da memória histórica dos oprimidos. Outro tópico que eu gostaria de me ater, trata-se da práxis revolucionária no cotidiano.

 

3- Práxis revolucionária no/do cotidiano.

 

Quando a gente fala em práxis revolucionária a gente está apontando a tarefa dos novos militantes, homens e mulheres, de hoje, no sentido de entenderem bem sua realidade, de maneira crítica e autocrítica compreenderem o passado, as lutas do presente, como condição para enfrentarem de maneira eficaz os desafios de hoje. Então, neste caso, exercitar a práxis revolucionária no cotidiano significa, entre outras coisas, unir o passado, recordar essas lutas históricas do passado, essas lutas populares em âmbito internacional, latinoamericano, brasileiro… associar essa luta com os desafios de hoje, não no sentido de recolher eventuais missões que sirvam para serem reproduzidas. Mas se trata de recolher elementos de encorajamento e de novo fôlego para o assumir sua tarefa no contexto presente. Não pretendendo, como dito, reeditar as lições do passado, até porque os desafios do presente são de outra ordem. Mas, para receber os influxos encorajadores que caracterizaram esses militantes e essas militantes lá atrás que hoje ressoam forte na nossa luta do cotidiano. Trata, sim, de recolher elementos dessas lutas históricas, de libertação como elementos que nos ajudem hoje a reforçar o nosso ânimo, a reforçar o nosso compromisso revolucionário frente aos desafios de hoje. Então é muito importante incentivar a memória histórica nessa direção.

  • Como fazer para a gente atualizar esse compromisso revolucionário?

Eu traria à tona a importância da gente fazer a leitura concreta da realidade objetiva de hoje. Disso, a gente não pode se afastar jamais. Exercitar junto às bases, aos movimentos sociais, às associações, às cooperativas, ao próprio mundo sindical, em seus núcleos, em suas células, em seus conselhos populares e outros círculos de cultura. Incentivar aí, que a gente procure alimentar sempre esse compromisso de fazer a ponte entre os acontecimentos de ontem e os acontecimentos de amanhã. Nós aqui tratamos de rememorar os acontecimentos sociais, as lutas passadas, as lutas políticas, as vitórias e derrotas das quais aprendemos a retirar lições. Então, o compromisso revolucionário hoje significa isso: fazer a ponte entre esse passado e o futuro que nós almejamos construir; significa que a gente trate de recolher dessas lições nos comprometer a ir transformando na perspectiva do horizonte que nós traçamos, do horizonte de realidade, societal, de um novo modo de consumo, de um novo modo de gestão societal. Trata-se, portanto, de fazer a ponte entre o passado e o futuro.

  • Em que medida os compromissos revolucionários do presente nos ajudam nessa direção?

Primeiro nos ajuda a partir do momento em que a gente não abre mão de fazer de maneira contínua a análise crítica da realidade objetiva, de fazer a leitura de mundo, como diz Paulo Freire e buscar compreender a complexidade que caracteriza essa realidade social, mas ao mesmo tempo sabendo que quem quiser chegar mais perto dessa objetividade complexa tem também de tomar a direção de ver o ritmo que ela impõe, que seria de acompanhá-la em seu movimento. A realidade complexa está sempre em movimento, está sempre se transformando.  Aqueles e aquelas que buscam acompanhar esse ritmo chegam mais perto do entendimento dessa realidade. Esse é um desafio para nós. Buscar acompanhar em movimento também  essa realidade social de maneira autocrítica e crítica como nos é devido. Então, a gente trata de fazer primeiro essa análise de conjuntura que, uma vez, realizada nos núcleos, nos conselhos populares, nos círculos de cultura, e outros, a gente vai captando diferentes ângulos dessa realidade complexa. Entendendo-a melhor a gente passa a se organizar melhor para enfrentá-la. A leitura da realidade é o primeiro passo que a gente aconselha nesta direção. É buscar exercitar a leitura crítica e autocrítica da realidade social de modo a saber como ela se comporta, e sabendo como ela se comporta, organizar nossa intervenção.

  • Quais são nossas tarefas diante disso?

 

Uma primeira tarefa diz respeito ao processo organizativo, ou seja, da gente instalar e manter um novo modo de organização pela base e com a base. Esse novo modo por exemplo implica em retomarmos, em novo estilo, nossas lutas nas periferias urbanas, no meio rural, em toda parte, nos vários ciclos de cultura, nos núcleos, nas outras ocasiões retomarmos essa prática e a gente fazer essa leitura conjunta dessa realidade. Essa leitura conjunta implica, por exemplo, a gente ter clareza de como deve ser esse processo organizativo. Depois o processo formativo, depois o processo de luta, embora estejam sempre associados dinamicamente.

 

Processo organizativo

 

Em relação ao processo organizativo, o novo que a gente é chamado para pôr em prática, é o retorno a essas bases rurais e urbanas, das quais a gente esteve bem mais próximo nos anos 80, por exemplo, mas não só, retomar essa aproximação com essas bases, tanto formar ciclos de cultura, de conselhos populares, ou de núcleos, células, etc. Retomar esse modo de organização significa, fazer com que as pessoas entendam que não basta fundar, criar uma célula, um núcleo, um conselho popular, é preciso manter, manter permanentemente. Para isso precisamos de reuniões periódicas, quinzenais ou mensais que ajudem as pessoas a irem crescendo no entendimento nesse processo organizativo.

E como se faz essa organização? Essa organização se faz pela base. E de que modo? vencendo a tentação, ainda hoje muito presente, fazer com que meia dúzia de sabedores, de intelectuais se aproximem dessas comunidades, desses conselhos, para dizerem como elas devem fazer, como elas devem agir.  Então esse é um procedimento que a gente deve combater radicalmente porque não é assim que a gente organiza desde a base. A organização desde a base primeiro respeita o protagonismo de todos, primeiro parte de ouvir, da escuta das pessoas ali reunidas, cada qual dizendo sua história de vida, dizendo o modo como entende o mundo, fazendo o diálogo acontecer. Então, não se trata portanto de cumprir uma palavra de ordem do coordenador ou mesmo dos coordenadores, trata-se sim que os próprios militantes dos núcleos, dos conselhos, dos círculos de cultura vão trazendo sua própria contribuição. À medida que vão lendo a realidade, vão criticando a realidade, vão exercendo também a sua autocrítica, elas e eles vão compreendendo melhor o que se passa naquela realidade local, mas sempre fazendo a ligação do que se passa em âmbito internacional, em âmbito nacional. É preciso fazer esse nexo que é a análise de conjuntura é a leitura de realidade que as ajuda muito nessa direção.  Então, o processo organizativo tem que ser pelas bases, tem que ser protagonizado pelas bases.

Na parte da coordenação, nunca deve ser uma coordenação monopolizada por alguém, nunca deve ser uma pessoa que se reúna com os grupos para ditar como deve o grupo se comportar, mas deve ser uma coordenação colegiada, com pessoas locais, com pessoas das bases também fazendo esse exercício de leitura da realidade. É muito importante fazer com que a coordenação do núcleo, do conselho e outras atividades sejam protagonizadas por todos da base. A tarefa de escuta é uma obrigação, sem a qual  a gente não vai além. Então esse é um jeito novo de organizar a base, a partir de uma coordenação colegiada. Nesse sentido, é importante a gente entender que uma vez cumprido o prazo de atuação dessa coordenação colegiada, quem sabe 2 anos, 3 anos, os coordenadores, as coordenadoras voltam para suas bases e quem é da base vem ajudar no processo de coordenação colegiada. Isso é muito importante exigir, sem o que a gente corre o risco da manipulação feita por coordenadores que têm oportunidade de formação política e depois passa seu ideário direto para a base no sentido mais interativo do que de consulta e de ouvir. É claro que isso não tem que se fazer de maneira repentina, pode até acontecer que para dar oportunidade a que o pessoal de base vai entendendo melhor o manejo  daquela atuação, alguns de base venham a ter um tempo por volta de um ano pro exemplo para aprenderem a gerir o negócio em relação à base.   Mas, evidentemente sendo garantido que os coordenadores voltem para a base e os que estão na base possa exercitar a coordenação colegiada.

Outro fundamento que eu friso muito nas minhas falas, nas minhas discussões, nos meus escritos, é o que eu entendo pelo caráter revolucionário de alternância de cargo ou função. Em que consiste esse mecanismo de alternância de cargo ou função? Consiste na prática de que a ninguém seja permitido ocupar cargo ou função de maneira longa, de maneira prolongada, mas findo o seu prazo seja outro que venha ocupar. É um mecanismo revolucionário porque faz com que se combata a tendência de viciamento por parte dos coordenadores que se eternizam nas coordenações, e dão lugar a que novos coordenadores provenientes da base assumam esse novo protagonismo. Portanto, eu considero fundamental a prática desse mecanismo de alternância de cargos e funções. Isso quanto ao lado dos deveres e das tarefas organizativas.

 

Processo formativo

 

Primeiro, de que formação se trata? Trata-se de uma formação permanente. Isso significa quer dizer que não pode e não deve confundir-se com uma formação escolar, desde a creche até a pós-graduação. É preciso ser uma formação continuada. Como sabem, nós passamos relativamente pouco tempo na escola, 10 anos, 12 anos… Mas, a escola termina seu período, então é preciso que essa formação continue para além da escola. Não se trata de a gente desprestigiar a formação escolar, pelo contrário, eu não tenho o que me queixar de ter nela vivido em torno de 25 anos.  No entanto, é importante ter em mente que não se trata da formação escolar. Isso porque, a formação escolar, tanto a formação das escolas públicas, quanto das escolas particulares, a organização da educação, ela é controlada diretamente pelo Estado, e a gente sabe quem é o Estado. E um braço forte, o esteio, uma pilastra mestra do sistema capitalista, ao lado do Mercado burguês. De modo que, sendo o Estado que organiza toda a educação escolar, evidentemente os movimentos sociais que fiquem atrelados a essa forma de organização vão ter problemas mais cedo ou mais tarde como já tiveram. Foi com tristeza, por exemplo, que eu recebi o distanciamento de algumas lideranças dos movimentos sociais populares de suas respectivas bases e ascenderem aos espaços governamentais. Acho que isso não ajuda ao processo de autonomia, do exercício de autonomia dos movimentos sociais. Não se trata de ser alguém isolado. Não: conversa com todo mundo.  Uma coisa é conversar com todo mundo, outra é aceitar cargos do aparato estatal. Aí é uma diferença grande e perigosa. Primeiro ponto que gostaria de destacar é esse: a educação popular tem que ter esse alcance formativo permanente, invés de ficar contente apenas com a formação ministrada pelo Estado, pela escola, a gente trata de estar todo dia em processo de formação até o final da vida. Essa é a educação popular que os movimentos populares são chamados a exercitarem e a transmitirem também. E a educação popular na perspectiva freiriana, de não se conterem com a formação escolar. Nessa direção é interessante saber que essa educação protagonizada pelos movimentos sociais populares, do campo e da cidade têm uma necessidade de uma continuidade permanente, de não ser oferecido algum elemento aqui e depois descontinuado acolá. Tem que ser uma programação permanente de formação dessa educação popular e também desse processo organizativo. É preciso que a educação popular tenha esse compromisso de fazer acontecer as reivindicações tomadas pela base, pelos núcleos, pelos conselhos populares, pelos círculos de cultura, e assim por diante, no sentido de fazer com que o que seja aí estudado de maneira permanente a partir de elementos que vão sendo oferecidos por forças sociais importantes, por exemplo, com a entrega de revistas, como teoria e debate, jornais como Companheiro, Em tempo, e outros. A gente deve ter isso presente continuamente para ser o mecanismo de formação permanente desses grupos. A formação política se dá pelo acompanhamento do que anda se passando em âmbito Latino Americano, em âmbito mundial, em âmbito brasileiro e em âmbito também de nossa região Norte, Nordeste e assim por diante. Então é preciso levar a sério esse desafio que é buscar formar a consciência crítica daqueles participantes no sentido deles terem presentes quais são os desafios reais diante dos quais estamos e como se organizar para enfrentá-los de maneira exitosa.

 

Processo de mobilização

 

A mobilização não pode ser algo que aconteça de maneira periódica, quase inexistente, tem que estar presente também. A mobilização constitui um ponto dessa formação dessa educação popular que faz com que aqueles e aquelas que participam tanto do processo organizativo, quanto do processo formativo assumam o compromisso de lutarem, de se viabilizarem, de mostrarem atentos e militantes nas ruas. Essa história de achar que a direita tem o monopólio das ruas, chega a ser um escândalo para nós. A direita nunca foi um setor que motivasse as movimentações de rua, ainda que haja derrame de dinheiro venha a ser feito. No entanto, isso é tarefa só das lutas populares. Daí a importância da gente ligar tanto o processo organizativo, quanto o processo formativo ao processo de luta, de luta permanente no dia-a-dia enfrentando os desafios que estão ao nosso alcance.

 

* Texto-base, gravado em áudio, que inspirou a exposição compartilhada – junto com a Professora Georgina Cordeiro, a Professora Ivanilde Apoluceno de Oliveira, da Cátedra Paulo Freire da Amazônia, do Estado do Pará, e o Professor Reinaldo Fleuri, da UFSC, mediado pelo Professor Sulivan de Souza, quando da Sessão de abertura da XVII Jornada Paulo Freire, promovida pela Universidade Estadual do Pará (UEPA). O presente texto reflete seus traços de oralidade, comportando, inclusive, repetições, pelas quais me escuso perante os leitores e leitoras. O autor agradece a Luciana Calado Deplagne, a Heloíse Calado, a Gabriel Calado e a Eliana Calado pela cuidadosa transcrição.

 

João Pessoa, 16 de novembro de 2022.

Um percuciente panorama do legado marxiano

UM PERCUCIENTE PANORAMA DO LEGADO MARXIANO: considerações esparsas sobre o livro de José Paulo Netto “Karl Marx, uma biografia”. São Paulo: Boitempo, 2020” *

José Paulo Netto compõe um seleto grupo de pesquisadores de excelência, no complexo e vasto universo do Marxismo. Já há algumas décadas, ele vem contribuindo, com sucessivas pesquisas, neste campo ao qual tem aportado reconhecida contribuição científica. Mais recentemente, ele nos brinda com uma densa biografia sobre Karl Marx, sempre empenhado em rigorosa investigação biobibliográfica do filósofo da Práxis.

Duzentos e quatro anos após seu nascimento e cento e trinta e nove anos após seu encantamento, Karl Marx (1818 – 1883) continua amado e seguido pelos “de baixo”, ao mesmo tempo em que execrado pelos “de cima”…

Por incontáveis razões, chama a atenção o atribulado percurso existencial de Marx. Uma delas tem a ver com a crescente fúria que despertou – e ainda desperta! – nos setores dominantes e dirigentes de ontem quanto de hoje. Tratam-no como um profeta proscrito, ainda que pouco lido, até hoje. Com efeito, a despeito do trabalho hercúleo de seus escritos, o certo é que, quase um século passado desde a concepção e início do grande movimento pela publicação completa de seus escritos (e de Engels) – cadernos, manuscritos, livros, notas, artigos e vasta correspondência – iniciativa que se conhece pela sigla MEGA (Marx-Engels-Gesamtausgabe): Edições completas de Marx e Engels. O Projeto comporta 114 volumes, dos quais até aqui publicados 65, menos de 2/3… Ainda há, por certo, muito a se conhecer do legado de Marx.

A propósito ainda de MEGA, cumpre lembrar que este grande projeto se vem cumprindo em duas fases: o MEGA I, que se cumpriu entre 1924 e 1938, do qual foram publicados 39 volumes, e o MEGA II iniciado em 1954, estendendo-se ao presente. Importa igualmente assinalar que, no período entre o MEGA I  e o MEGA II, foi realizado o MEW (Marx-Engels Werke) por meio de uma parceria entre organismos marxistas, russo e alemão, projeto do qual resultaram publicadas algumas dezenas de volumes, em alemão.

Há que se reconhecer, por outro lado, que mesmo sem se haver lido esta parte, do que de Marx já se deveria conhecer, da outra parte que dele se sabe, ainda resta amplamente ignorado, seja por seus inimigos, seja por parte expressiva dos militantes da Classe Trabalhadora.

Também neste sentido, revela-se de grande importância e atualidade, a iniciativa do Prof. José Paulo Netto. Com efeito, desde a biografia preciosa por Franz Mehring, sobre Marx, em 1918, (cuja tradução no Brasil se fez somente em 2013), seguida por vários outros biógrafos e biógrafos, podemos constatar tratar-se de um trabalho investigativo de excelência, inclusive por oferecer relevantes esclarecimentos acerca dos últimos anos vividos por Karl Marx.

Aspectos da biografia que reputo mais tocantes

Começamos por ressaltar a qualidade investigativa e estética do trabalho. As fontes de que se valeu, destacam-se pela sua eminente qualidade, bem como respeitável quantidade dos títulos consultados, trazendo ainda uma notável diversidade temática e de posições políticas. Agrega-se a tais marcas a qualidade estética de sua exposição.

Ao largo de mais de oitocentas páginas, bem distribuídas em densos oito capítulos, José Paulo Netto, nos traz à tona uma extensa e complexa gama de elementos significativos do curso existencial de Marx, de modo a enfatizar – como se costuma esperar de um autor de excelência – o percurso intelectual do biografado.

Marx nasceu em Trier (Alemanha), em 5 de maio de 1818, de uma família judia, cujo pai, para exercer a profissão de advogado, precisou converter-se – com a família – ao cristianismo de confissão luterana. Desde cedo, o jovem Karl se mostrou um estudante aplicado, ainda antes de ingressar na Universidade, onde cursou os primeiros anos de Direito, logo migrando para o curso de filosofia, aí também se associando ao grupo de jovens hegelianos de esquerda. Hegel, a quem Marx não conheceu em vida (Hegel falece em 1831, quando Marx tinha apenas 13 anos), constituía  a referência maior no campo das ideias, na Alemanha, razão por que exerceu poderosa influência também sobre os jovens universitários daquela época.

Foi igualmente em Filosofia que Marx obteve seu Doutorado, em 1841, tendo elaborado sua tese acerca da diferença entre os sistemas filosóficos de Demócrito e Epicuro. Pouco tempo depois, enamora-se e casa com a jovem Jenny Von Westphalen, de ascendência aristocrática. União da qual resultaram suas filhas e seus filhos: Jenny Caroline, Jenny Laura, Edgar, Henry Edward Guy (“Guido”), Jenny Eveline Frances (“Franziska”), Jenny Julia Eleanor, enquanto o sétimo faleceu em 1857, tendo vivido condições precárias, em razão da opção política de Marx, de entregar-se avidamente à tarefa de desvendar os labirintos do Capital. Também, atribui-se a Marx a paternidade de Frederick, fruto de uma relação com Helena Demuth.

Ainda sob a influência Hegeliana, mas dela já tomando certa distância, Marx empenha-se, por volta de 1843, em esboçar uma primeira crítica à Filosofia do Direito de Hegel, partindo de sua perspectiva religiosa de mundo. Desenvolve sua famosa “Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”, na qual cuida de argumentar que é o ser humano, e não a Religião, que deve assumir a centralidade do processo de emancipação humana. Isto implica a defesa de que é o ser humano que cria a religião, e não o contrário, como propugna Hegel. Para Marx, a religião expressa, para os oprimidos, “o coração de um mundo sem coração”, o protesto contra este mundo, à medida que os oprimidos recorrem a religião como um alívio, como um suspiro, como um ópio, diante das cruéis desventuras de um mundo sem coração.

Mais adiante, ainda de meados de 1840, datam seus famosos manuscritos dos quais ganham especial relevo os “manuscritos econômico-filosóficos”, de 1844, nos quais Marx esboça, com precose acuidade (era um jovem de 26 anos), uma percuciente análise da condição humana, tal como vivenciada sob o sistema burguês. Entre tantos pontos a merecerem destaque, limitamo-nos a sublinhar seu sentimento de indignação diante da crueldade capitalista, que impede os trabalhadores, de desenvolverem suas potencialidades, de se desenvolverem como seres humanos em sua plenitude, sendo tantas vezes impedidos de fruirem a contemplação estética de um quadro ou de desenvolverem seus talentos artísticos.

A partir de 1844, firma-se uma sólida parceria com seu amigo Engels – “parceiro de vida” – com quem passa a produzir relevantes textos, a exemplo de “A ideologia alemã”, “a sagrada família” e o próprio “Manifesto comunista”, de 1847/1848, entre outros.

Trata-se, como se percebe, de um jovem profundamente inquieto e comprometido com o trabalho ininterrupto de investigação. No livro “A ideologia Alemã” Marx e Engels empenham-se em analisar criticamente a filosofia alemã, a partir de um exame judicioso dos elementos ideológicos contidos na filosofia Hegeliana. Importa, por outro lado, observar o constante aprimoramento que Marx vai desenvolver, em seus escritos posteriores, acerca de Ideologia, inclusive em “O Capital”. Este “detalhe” é, inclusive, percebido e levado em conta por Marxistas contemporâneos, a exemplo de Ludovico Silva, filósofo Venezuelano que, ao examinar a obra de Marx, em especial seu conceito de “mais-valia”, descobre nela existente uma nova dimensão: a “mais-valia ideológica”; e de István Mészáros, especialmente em sua obra “O Poder da Ideologia” (São Paulo, Boitempo, 2004, ainda que o livro tenha aparecido em 1995) em que Mészáros, com base em Marx, assume o conceito de Ideologia, para além de sua componente de falsa consciência, como uma manifestação específica de consciência social, completamente a serviço dos valores do Capital.

Importa, igualmente, observar que foi também neste mesmo período da publicação de elaboração de “A Ideologia Alemã” que Marx dirige a Feuerbach as famosas Onze Teses, das quais nos permitimos destacar três:. a Tese 2 defende que a verdade não se demonstra por discurso, mas pela prática; a tese 3 sustenta que os seres humanos não são meros produtos das circunstâncias, mas também eles são capazes de mudar as circunstâncias, para o que os educadores também devem ser (re)educados; e quanto a Tese 11, sublinha um traço fundamental da filosofia da Práxis: não basta entender o mundo, de formas diferentes: urge transformá-lo.

A tese 11, também implícita na metáfora da Coruja de Minerva, exposta por Hegel como símbolo da sabedoria, que alça voo a tarde, emblema do poder de interpretação da realidade por um lado, e por outro Marx exalta o galo gaulês por anunciar, o seu canto na madrugada, despertando os viventes para a construção de um novo amanhecer para a humanidade.

Exercitando uma de suas marcas de analista de excelência, José Paulo Netto nos brinda com largos trechos de análises rigorosas do contexto histórico, característica da produção de Marx. Ele o faz, com talento e rigor, sempre que apresenta uma nova obra de Marx, tendo sempre o cuidado de apontar os fatores determinantes que influenciaram a análise de Marx através de sua vasta obra. Não apenas no que diz respeito ao chamado “jovem Marx” – cujas obras principais foram acima mencionadas -, mas igualmente no tocante às suas obras posteriores, as do Marx maduro,  distinção, aliás, que ele reconhece, contrapondo-se, porém, a qualquer tentativa de separação entre o jovem Marx e o Marx maduro.

Após meados de 1840, a produção de Marx vai alcançando notáveis traços de amadurecimento crítico. Já na elaboração, em parceria com Engels, do “Manifesto Comunista” de 1847/48, podemos observar uma densa leitura de natureza histórica de modo, a obter uma síntese genial do espectro amplo e profundo, sublinhando sua compreensão fundamental de como a História se apresenta, em sua essência, como uma sucessão de antagonismos de classes sociais.

É também nas páginas deste Manifesto, no qual Marx e Engels, em nome do principais representantes dos relevantes coletivos de Trabalhadores, em âmbito internacional, propunham seu Programa de lutas, do qual se destacam 10 pontos, dos quais a abolição da propriedade privada dos meios de produção.

Não obstante o respeito que Marx tinha pela figura de Proudhon, principal representante do Socialismo Utópico, que gozava de grande prestígio de vários Segmentos de Trabalhadores. Marx fazia questão de externar suas críticas contundentes as teses de Proudhon. Isto se deu, por exemplo, em resposta ao livro “Filosofia da Miséria”, ao qual Marx retrucar com o livro “Miséria da filosofia”.

Foi, contudo, nos anos de 1850, que a produção marxiana começa a apresentar um grau mais apurado em suas pesquisas, demonstrando novo estado de apuração e amadurecimento crítico. Tal apuração se dá, em grau maior, à medida que ele retoma em novo estilo, o conceito de “Economia Política” que herdara de Engels, havia mais de uma Década, quando do seu encontro com Engels, em Paris, ocasião em que passam a firmar uma “parceira” de vida.

Enquanto isso, na França, agravavam-se cada vez mais os fatores de explosão social, em razão das condições e crescentes desigualdades impostas pela classe dominante ao conjunto dos trabalhadores, de modo a eclodir o crescente confronto de classes – situação que Marx analisa cuidadosamente, em vários textos posteriormente publicados do livro “As Lutas de Classes na França de 1848 a 1850”.

Já não mais contando com a “A Gazeta Renana”, onde publicara relevantes textos analíticos e críticos, tal como também o fizera nos “Anais Franco-Alemães”, Marx doravante cuida de rastrear mais sistematicamente, os fundamentos da Economia Política, recorrendo aos economistas clássicos ingleses, em especial a Adam Smith e David Ricardo, onde vai encontrar uma preciosa fonte para sua compreensão objetiva do metabolismo do Capital, a partir do profundo desmascaramento que vai realizar dos mecanismos mais sórdidos de exploração da Classe Trabalhadora, hipocritamente escondidos pelos teóricos burgueses.

Cumpre, ainda neste período, ressaltar a qualidade científica da produção marxiana, atestada, por exemplo, na elaboração, em 1852, do seu famoso “O 18 de Brumário de Luís Bonaparte”, do qual, entre outros elementos, vale sublinhar a passagem em que sustenta que “Os homens fazem sua própria história mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos”.

Dando sequência ao seu frenético ritmo de pesquisa, enfrentando as mais duras adversidades de sobrevivência, sua e de sua família, Marx segue apurando a qualidade de suas análises, dedicando-se especialmente a questão do método, sobretudo a partir de meados de 1850, como se verifica, por exemplo, em seu célebre prefácio de 1859, prefácio ao seu livro “contribuição à crítica da Economia Política”.

De todo este intenso labor grávido de “inventividade revolucionária” (expressão cara a Adolfo Sanchez-Vasquez, em seu “Filosofia da Práxis”), culminando em sua obra-prima “O Capital”, em quatro livros, dos quais o 4º não veio a público, tendo sido o Livro 1 publicado em 1867. O “Grundrisse” (esboços) constituem um volumoso conjunto de escritos, registros, análises, estudos, resumos, observações, não obstante sua publicação, se tenha verificado décadas após a morte de Marx, compõem um conjunto de cadernos elaborados em 3 períodos: os primeiros registros correspondem ao período de 1857 a 1859; o segundo período corresponde aos escritos elaborados entre 1861 a 1863; enquanto o último conjunto de escritos relativos aos Grundrisse se refere ao período de 1865 a 1867.

Os “Grundrisse” representam para Marx um verdadeiro laboratório, abrigando, em detalhes, extratos de livros, jornais e documentos, anotações críticas e até breves textos analíticos feitos por Marx, ainda que sem caráter conclusivo. Ou seja: dos Grundrisse Marx fez seu laboratório investigativo, espécie de longos rascunhos não destinados à publicação, uma vez que representam apenas seu método de investigação, algo bem distinto do seu método de exposição, este sim, destinado a publicação, uma vez que seus textos publicados assumiam uma forma mais elaborada, inclusive esteticamente exposta, mais sistematizada e devidamente aprimorado, como se observa no Livro I de “O Capital”.

Outro aspecto que Marx contrapunha às teses hegelianas de sua filosofia do direito, tinha a ver com a defesa idealista que Hegel faz do Estado, por ele considerá-lo uma espécie de tutor da sociedade civil, apto a dirimir os conflitos e antagonismos presentes na sociedade civil e apto a iluminar os caminhos de justiça e prosperidade. Ao contrário dessa posição Hegeliana, Marx sustentava que ao espelhar as contradições e antagonismos da sociedade, fazia prevalecer os interesses dos setores dominantes. Neste texto, Marx, com seus 26 anos, ainda não falava nas classes sociais antagônicas aí predominantes, limitando-se a tratá-las como “estamentos”. Ainda quanto aos manuscritos econômicos filosóficos, devemos salientar a presença já então de um texto de economia política, embora ainda vazado predominantemente de uma abordagem filosófica.

Nos “Grundrisse”, por conseguinte, se acha ainda que menos desenvolvido, conceitos chaves que vão aparecer de modo mais preciso e mais completo em O Capital. Assim se dá em relação a conceitos, tais como “mercadoria”, “dinheiro”, “valor”, “Mais-Valia”, “fetiche”, entre outros. Um outro traço digno de nota no percurso existencial de Marx, tem a ver com sua postura de revolucionário,  ao mesmo tempo em que se sentia profundamente empenhado do relevante labor investigativo, se sentia constantemente a acompanhar todo aquele cenário de ebulição crescente das lutas sociais, tendo inclusive que intervir em debates e encontros com vários segmentos de dirigentes e operários, tal como despendeu enorme tempo e energia para acompanhar de perto os fatos e acontecimentos protagonizados pela inspiradora e rica experiência revolucionária da Comuna de Paris em seus feitos épicos de 1871, sobre a qual dedicou uma percuciente análise – “A Guerra Civil na França”.

Mais adiante, já após a publicação do Livro I de “O Capital”, que teve uma progressiva divulgação, para além da Alemanha, é curioso notar-se que até em uma Itália grandemente influenciada pelas ideias de Bakunin, Marx também passaria a suscitar grande interesse, haja vista a iniciativa proposta por Carlo Cafiero, e aceita por Marx, de elaborar um resumo do Capital, intitulando-o “O Compêndio de ‘O Capital”.

A Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT) fundada em 1864, por um conjunto de diferentes correntes políticas, dentre os quais militantes marxistas, militantes anarquistas, constitui uma fecunda experiência de cooperação entre revolucionários marxistas e revolucionários anarquistas, cujo ápice se deu por ocasião da primeira revolução proletária, a Comuna de Paris. Em seu livro “Afinidades revolucionárias: nossas estrelas vermelhas e negras. Por uma solidariedade entre marxistas e libertários”, Michel Lovy apresenta uma série de episódios marcantes, de modo a salientar de forma convincente diversos exemplos concretos da cooperação efetiva entre revolucionários anarquistas e marxistas. Tanto neste livro, quanto em sua conferência proferida, no Rio de Janeiro, a propósito das comemorações dos 150 anos da fundação da AIT (cf. https://www.youtube.com/watch?v=ILzsOctQt9s&t=2559s), ele faz questão de mencionar vários episódios, inclusive na primeira metade do século passado, a exemplo da Guerra Espanhola e da resistência ao Nazismo na França.  Ainda a propósito deste fecundo período de parceria entre Marx e Engels, se tem a gerar um impacto positivo sobre Marx, além da leitura do texto intitulado “Esboço da crítica da economia política” Engels tinha então seus 24 anos. O texto que Engels repassara a Marx “A situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra”. Importa com efeito salientar o extraordinário aprendizado de Marx, a partir desta leitura, o que nos permite reconhecer, que ele, não tendo nascido marxista nem comunista, aprendeu a tornar-se assim com Engels. Nessa toada de tantos episódios de dissensos e entrechoques, mas também de convergências e cooperação entre marxistas e anarquistas, nunca é demais lembrar da Associação Internacional dos Trabalhadores, da qual também faziam parte revolucionários marxistas e anarquistas.

Em 1864, Marx foi convidado a redigir as teses básicas defendidas pela AIT, relevante documento em que se pode ler: “a emancipação da classe trabalhadora deve ser obra dos próprios trabalhadores”.

Por outro lado, como já prenunciado no Manifesto do Partido Comunista (1847-1848) o sucesso do movimento operário só seria assegurado contando com o protagonismo de um Partido operário capaz de encarnar e assumir processo organizativo e formativo, e de lutas da classe trabalhadora, tanto no âmbito nacional, quanto em escala internacional. Daí a decisão de se fundar o Partido Operário Alemão, que teve como principal liderança a figura polêmica de Ferdinand Lassalle, que defendia a bizarra tese de um “Volkstaat” (Estado Popular).

Dada a conhecida rivalidade entre revolucionários marxistas e anarquistas, aquele episódio de fazer constar em um programa de um Partido Comunista a defesa do Estado (Estado Popular) foi bastante explorado por Bakunin atribuindo a Marx a suposta paternidade daquela expressão. Diante disto, tanto Marx quanto Engels se mostraram  profundamente queixosos contra Lassalle por receberem tal acusação de Bakunin, até porque é conhecida a posição crítica de Marx frente ao Estado. Em consequência dessa polêmica, o Partido Operário Alemão foi obrigado a corrigir seu equívoco programado.

Em consequência deste mal entendido de que foram vítimas Marx e Engels importa lembrar a sua posição autêntica constante da retificação redigida por Marx na famosa “Crítica ao Programa de Gotha”, que dentre outros pontos sustenta a necessidade história do fenecimento do Estado, como condição da perspectiva comunista de abolição das classes sociais.

Parte significativa da elaboração bio-bliográfica de Marx feita por José Paulo Netto, se acha voltada para os últimos anos de Marx, mais precisamente de 1880 a 1883. Em seu trabalho, José Paulo Netto, com base em diversos autores, destaca diferentes atividades intelectuais protagonizadas por Marx, ainda que já experimentando precárias condições de saúde. A este respeito, a par de uma intensa correspondência travada com tantas figuras espalhadas pelo mundo, Marx desenvolve uma admirável curiosidade epistemológica de amplo espectro: da antropologia (aqui se destacando seu profundo interesse pelos escritos de Morgan), pela Matemática, pela Química (em função da Agricultura), pela biologia… foi também, na segunda metade dos anos 1880 (1884), igualmente influenciado pelos estudos antropológicos, que Engels escreve  “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, depois que publicou, em 1877 o polêmico “Anti-Dühring”, do qual consta o texto “Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico”.

Descontado compreensivelmente o arrefecimento do seu ritmo de trabalho durante seus últimos anos de vida. Marx seguiu trabalhando até a véspera de seu passamento (março de 1883). Além de sua valiosa incursão por novos campos de conhecimentos dedicou um tempo considerável a atender e a conversar com numerosas pessoas que o visitavam, visitas das mais diversas partes do mundo.

Digno ainda de notar durante esse período é seu especial interesse em empreender e interpretar as condições econômico-políticas vigentes na Rússia. Para o que não hesitou em estudar o Russo. Igualmente prova deste interesse é a correspondência mantida, em Francês, com uma figura de referência russa – Vera Zasulitch, sem deixar de lembrar ainda seu empenho em compreender como se dava a formação social de países como a Índia. Isto também representa seu compromisso internacionalista, para além do Ocidente.

 

Considerações Sinópticas

Uma das motivações fortes que experimentei ao rabiscar estas linhas foi a de estimular os leitores e leitoras a lerem o livro do Professor José Paulo Netto (a quem também sou grato por haver traduzido o livro de Enrique Dussel A produção teórica de Marx: um comentário aos Grundrisse, da Editora Expressão Popular, do qual tive a honra de receber um exemplar autografado quando da sua vinda à UFPB, em João Pessoa, em 2013. Em consequência, a fortiori, também me move o objetivo de incentivar os leitores e leitoras a beberem na fonte.

Enfatizamos a título de arremate a qualidade crítica e estética da bibliografia produzida pelo Prof. José Paulo Netto. lega-nos uma densa contribuição historiográfica de grande alcance para os nossos dias.

Quanto a Karl Marx, mais de duzentos anos após seu nascimento, seu legado segue se mostrando de enorme atualidade para o exitoso tratamento da barbárie capitalista; e, ao mesmo tempo, segue a interpelar a mulheres e homens de hoje, em especial, os jovens, a fazermos nossa parte, nesta gigantesca e processual empreitada de irmos construindo na perspectiva de Ernst Blöch (entre o “já” e o “ainda não”) um novo modo de produção, de consumo e de gestão societal, em harmonia com a Mãe-Terra e os Viventes.

 

João Pessoa, 05 de novembro de 2022.


*Texto resultante de gravação em áudio, degravado por Heloíse Calado Bandeira, Gabriel Luar Calado Bandeira, e Eliana Alda de Freitas Calado, a qual revisou o texto. Elizabeth de Pontes Santos leu em voz alta, para o autor destas linhas, o livro integral de José Paulo Netto. A todas, meu agradecimento.

Acerca do livro de Michael Löwy e Olivier Besancenot “O Caderno Azul de Jenny: a visita de Marx à Comuna de Paris”

Um romance histórico de notável alcance formativo: Apontamentos acerca do livro de autoria de Michael Löwy e de Olivier Besancenot. “O Caderno Azul de Jenny: a visita de Marx à Comuna de Paris. São Paulo, Boitempo, 2021”

Sigo tendo os jovens (de todas as idades) como os destinatários principais em minhas reflexões compartilhadas. Sem um cotidiano investimento em nosso processo formativo, não temos como enfrentar adequadamente os atuais desafios. Não me refiro aqui à mera escolarização, mas especialmente ao processo formativo protagonizado por nossas organizações de base, em especial os movimentos sociais que lidam com a construção de um projeto societal, alternativo ao atual modo de produção, de consumo e de gestão societal.

Neste sentido importa chamar a atenção para a série de iniciativas da editora Boitempo que, além de uma série de livros de excelente qualidade também oferece uma multiplicidade de vídeos de grande alcance formativo, razão pela qual não me canso de incentivar nossos jovens a se manterem atentos e assíduos a este tesouro formativo. Um exemplo ilustrativo da qualidade dos materiais trabalhados pela Boitempo é a publicação deste livro, cujo lançamento foi registrado, com a participação efusiva da Escola Florestan Fernandes, do MST, em parceria com a Fundação Rosa Luxemburgo e da própria Boitempo (https://blogdaboitempo.com.br/2021/06/17/jenny-e-karl-marx-na-comuna-de-paris/).

Assumindo uma postura de Educadores Populares, os autores do livro, Michael Löwy e Olivier Besancenot, houveram por bem provocar seus leitores e leitoras ao exercício da memória histórica, um dos componentes fundamentais do processo formativo revolucionário (ao lado do horizonte revolucionário e da Práxis).

A riqueza pedagógica do Ato do lançamento do livro foi marcada por distintos momentos. De início, por meio de uma espécie de Jogral, tratou-se de rememorar os traços mais fortes da experiência revolucionária da Comuna de Paris. Em seguida, após breves falas de apresentação dos parceiros daquela iniciativa (Escola Nacional Florestan Fernandes, Fundação Rosa Luxemburgo e Boitempo), coube ao professor Michael Lowy realçar os pontos da Comuna de Paris que entendeu mais relevantes:

 

  • Começou por destacar ter-se tratado de um movimento revolucionário feito de baixo para cima, no qual as decisões foram tomadas radicalmente pelas bases de trabalhadores e trabalhadoras;

  • Enfatizou o caráter internacionalista da Comuna de 1871: com efeito, entre os principais protagonistas da Comuna de Paris, encontravam-se revolucionários e revolucionárias procedentes de vários países (Inglaterra, Alemanha, Rússia, Hungria, Polônia, Espanha…);

  • Tratou-se de um movimento revolucionário plural, cujos protagonistas estavam ligados a diferentes tendências do Movimento Operário, inclusive Marxistas e Anarquistas;

  • Contou com uma efetiva participação de mulheres revolucionárias, entre as quais Elisabeth Dmitrief, Louise Michel (figura sobre a qual já tivemos oportunidade de comentar: cf. https://textosdealdercalado.blogspot.com/2020/10/louise-michel-uma-feminista-libertaria.html ).

 

Ao prosseguir sua exposição didática, no lançamento do livro, Michael Lowy sublinhou aspectos da atualidade da Comuna de Paris, como lição a ser extraída pelos nossos movimentos sociais diante dos graves desafios que enfrentamos. Cada um dos pontos destacados pelo autor merece ser tomado em consideração por nossos movimentos sociais da atualidade;

 

  • Seja no que diz respeito a devastação da Mãe-Terra, provocada pela sanha do Capitalismo, em sua fase mais destrutiva;

  •  Seja no tocante ao papel revolucionário das mulheres (tendo feito questão de ressaltar a bravura das Mulheres Indígenas em suas lutas em defesa da Mãe Natureza);

  • Seja ainda quanto a participação de jovens nos processos de lutas e manifestações contra a barbárie capitalista mundo afora;

  • Ainda enfatizou – e aqui já em diálogo com os/as participantes – a lição para nós no que diz respeito a necessária unidade das forças progressistas de atuarem contra as graves ameaças neofascistas no Brasil e no mundo.

 

Vale notar que o livro assume o gênero de ficção, traço genial que os autores adotam, para serem mais acessíveis aos leitores e leitoras e em especial aos jovens em quem demonstram ter grande esperança. A despeito do anunciado recurso fictício do livro, o relato sobre a Comuna de Paris e seus protagonistas mantém sua base factual. O tom fictício se faz presente no que tange à visita de Marx e de sua filha Jenny à Comuna de Paris, durante duas semanas, desde 18 de abril de 1871. Neste caso, os autores do livro recorrem a uma forte imaginária, identificada como “O Caderno Azul de Jenny”, uma espécie de diário no qual se encontram os registros desta visita.

Ao cabo destas notas, importa ressaltar alguns elementos que delas podemos recolher:

  • O exercício da Memória histórica constitui uma das marcas mais relevantes da própria mística revolucionária;

  • Em orgânica interconexão com os processos organizativos e de luta, o processo formativo dos militantes revolucionários cuida de haurir do exercício da memória histórica dos oprimidos sua preciosa força mobilizadora;

  • Importa felicitar os autores do livro pela eficácia de sua ação educativa de grande atualidade: ao destacarem fatos e posturas memoráveis.

João Pessoa, 20 de agosto de 2022.

A inventividade revolucionária de Ludovico Silva

Em seu denso “Filosofia da Práxis” (Expressão Popular, 2007), Adolfo Sánchez-Vásquez, ao tratar de criatividades na perspectiva marxista, faz questão de assinalar que nem toda criatividade se reveste de relevância social, mas somente a que comporta uma intencionalidade revolucionária. Não raramente, deparamos com a mídia comercial a anunciar, com estardalhaço uma iniciativas pretensamente “original”, e quando analisarmos criticamente, nós a percebemos desprovida de predicado capaz de nos trazer uma inovação relevante, sob o ponto de vista da mudança social. Também ao interno das forças de esquerda, atribui-se valor extraordinário a certos feitos cuja contribuição resta, por vezes, duvidosa. Este não é, com certeza, o caso da figura do filósofo venezuelano Ludovico Silva (1937-1988), sobre quem nas linhas que seguem, me ocorre tecer umas brevíssimas notas.

Seu percurso inicial, a despeito das condições intelectuais familiares serem favoráveis (parentes próximos seus também se destacavam, especialmente no campo das Letras), seus primeiros anos de universitário se caracterizam por seu empenho e desempenho privilegiados, no campo das Letras, a partir da filosofia, que concluiu obtendo aprovação “Summa Cum Laude” pela Universidade Central da Venezuela. Alternou temporadas de estudos em Madrid (filosofia), e, Paris e na Alemanha (Filologia Românica).;

Já antes de seu giro pela europa, ele cultivava um gosto especial por línguas (além de espanhol. também o francês, o Alemão, entre outras), bem como pela literatura, pela poesia, pela comunicação (radiofônica)., ao tempo em que lograva promover interlocução com poetas latinoamericanos de renome, inclusive Ernesto Cardenal (Nicarágua). Também começou a despertar interesse pela leitura de Marx, inclusive sob O Capital, mantendo-se igualmente atento às outras obras marxistas.

No entanto, foi a partir do seu regresso da Europa, que Ludovico Silva dedicou atenção especial, a um mergulho profundo e crítico acerca do legado de Marx. Já tinha em torno de trinta anos de idade quando iniciou um período de leitura mais detida da obra de Marx, sem que isto em nada tenha afetado a qualidade e a excelência do seu trabalho. Muito ao contrário. Com efeito, em 1970, nos vai brindar com um dos textos mais fecundos – “A Mais Valia Ideológica”, seguido de “Teoria e Prática da Ideologia”.

Conquanto fosse também um marxólogo importa assinalar que Ludovico Silva militando em distintas trincheiras anticapitalistas, especialmente no campo da Filosofia e da Literatura (mais particularmente da Poética: os jovens, os chamavam “Ludo, o Poeta”) – campo de militância no qual faz lembrar a militância de Antonio Candido – ofereceu ao campo revolucionário latinoamericano valiosas contribuições, por meio de obras tais como “O Estilo literário de Marx”, “Anti-manual para uso de Marxianos, Marxistas e Marxólogos”, entre outros.

Pela forma como trata e analisa minuciosamente a obra de Marx, Ludovico ganha autoridade e respeito, perante os militantes e pesquisadores do legado marxiano, de modo a elaborar um trabalho hermenêutico persistente das obras de Marx, insurgindo-se  de modo contundente, contra toda postura dogmática – principalmente contra o Marxismo soviético, postura a qual se deve, inclusive, a ocultação durante décadas, de parte expressiva da obra de Marx, atitude agravada pelo comportamento ultra-seletivo de partes ou trechos dos escritos Marxianos. Notemos, por exemplo, que a publicação dos “Manuscritos Econômico-Filosóficos” só veio a lume em 1932.

O primeiro grande impacto de sua obra foi causado por seu livro “A Mais-Valia Ideológica”, publicado em 1970. Nele, o autor se revela sobremaneira criativo, ao formular, em linha sequencial ao conceito de “Mais-Valia” da lavra de Marx, a categoria “Mais-Valia ideológica”. Partindo da formulação marxiana do mais-valia, Ludovico se dá conta da carga semântica igualmente presente nas relações capitalistas, da dimensão imaterial do mecanismo de exploração e geração do lucro, observável na extração material de mais-valia, desta feita arrancada, na exploração física/material do trabalhador alienado, mas do seu espírito e da sua psiquê, a medida que tal exploração se estende, do chão da fábrica, para o lar do trabalhador, de modo que os aparelhos ideológicos – especialmente os meios de comunicação de massa, da indústria cultural – mantém prisioneiro o trabalhador: ele se torna refém de suas ideias, toda grade de valores, de crenças, de ideias que o mesmo sistema dominante faz circular, dia e noite, pelo rádio, pela televisão, na família, na escola, na igreja, etc. Outro aspecto não menos importante contido na “Mais-Valia Ideológica”, tem a ver com a descoberta pelo explorado de que, dando-se conta dos mecanismos de exploração por ele sofridos, passa a enfrentá-los, neles identificando seu inimigo de classe: o patronato, o sistema capitalista.

A partir desta brevíssima notícia acerca de Ludovico Silva e de aspectos de seu legado – cujo intento é apenas o de instigar especialmente os jovens das classes populares – importa agora ressaltar alguns ensinamentos recolhidos de sua contribuição teórica.

Um primeiro ponto a destacar de seu legado: o entendimento de que também Marx e em qualquer outro clássico não devemos tomar como acabada sua produção, como se fosse algo cristalizado ou congelado no tempo, a ser mecanicamente aplicado em toda e qualquer conjuntura. Ao contrário, até em respeito a essas mesmas figuras que não se cansam de insistir sobre o caráter histórico e, portanto, mutável da realidade, não se trata de assumi-los como uma obra acabada, fechada, válida integralmente para qualquer situação.

O bom entendimento das teses marxianas feito por Ludovico Silva se mostra, com efeito, bastante fecundo, especialmente, no caso do conceito de “mais-valia”, à medida que, vai além de uma interpretação meramente econômica, ou seja, partindo do seu alcance especialmente econômico. Ludovico Silva o estende criativamente à esfera ideológica, isto é, mostra como a extração da mais-valia não se dá apenas no chão da fábrica. O mesmo trabalhador, que é sugado no ambiente fabril, também vai ser sugado no próprio ambiente do lar. Aqui a exploração se faz no plano ideológico, por meio do componente ideológico, fazendo-o refém da grade de ideias, valores, crenças incutidas pelo sistema patronal, através dos meios de comunicação, da propaganda, dos programas radiofônicos e televisivos, todos controlados pelo patronato que financia a mídia hegemônica.

A este respeito, cumpre observar o alcance deletério da “Mais-Valia Ideológica”, sob um duplo efeito: do ponto de vista estritamente econômico, extrai do trabalhador a vantagem ou o lucro do seu sobretrabalho, ao mesmo tempo em que, com a mais-valia ideológica, ao incutir em sua cabeça falsas explicações sobre a verdadeira causa de seu empobrecimento, anula sua capacidade de exercício crítico, impedindo ou dificultando extremamente sua capacidade de resistência, o que resulta em uma vantagem significativa para a manutenção e fortalecimento do mesmo sistema de exploração. Por outro lado, em se tratando de uma experiência dialética, ao sofrer a exploração, o trabalhador também acaba apreendendo sua capacidade de lutar contra a exploração, seja no âmbito pessoal, seja no âmbito coletivo. Ao observarmos nossa atual conjuntura, nos damos conta da impactante atualidade deste relevante legado de Ludovico Silva. Inspirados em seu frutuoso trabalho, somos historicamente instados a nos servir do seu achado (mais-valia ideológica) como um valioso instrumento político-pedagógico de fortalecimento de nossa tarefa organizativa, formativa e de luta, nos diferentes campos de atuação e militância de nossas organizações de base.

À medida que nossas organizações de base, articulando adequadamente sua tríplice tarefa (organizativa, formativa e de luta), forem capazes de assegurar condições favoráveis aos trabalhadores e trabalhadoras de exercitarem uma leitura crítica do mundo, acabarão fazendo impactantes descobertas, à semelhança das que fez o “Operário em Construção” do célebre poema de Vinícius de Moraes, a merecer especial atenção nos trabalhos de base.

João Pessoa,  25 de Julho de 2022

Foto: Karl Marx

Superar a barbárie nos requer cavoucar a memória, refazendo a práxis

Nada estático, la historia es movimiento.

A cambiarla, entonces, ¡pongámonos!

 

Jovens são alvo destas mensagens

Neles nutro a esperança de outro mundo

 

Militante que se preza, não descura

O exercício contínuo da formação

 

A História é fonte de autocrítica

Desprezá-la nos faz repetir erros

 

Cidadão responsável não repete

Erro crasso cometido em eleição

 

Se no Império, vacinas estão sobrando

10% de africanos vacinados…

 

Ocidente deturpa feitos da China

Conferir outras fontes nos importa

https://www.youtube.com/watch?v=B4CSJiNFdRg

 

Ter presentes as lutas do passado

Índios, Negros, Camponeses, Operários

https://www.youtube.com/watch?v=KBN2SGSBDVA

 

Retomar os bons clássicos mundiais:

Marx, Rosa, Lênin, Gramsci, Mariátegui

https://www.youtube.com/watch?v=HVo8tuqim-I

 

Meteoro Brasil, Jones Manoel, Revista Piauí

Tese Onze

 

Movimento com mais de meio século

MCP segue dando o seu recado

 

Reforçar Movimentos Sociais

Sem os quais não faremos as mudanças

 

Sempre importa citar as boas fontes,

Que nos tragam análises consistentes

 

Ai de quem se limita à grande mídia

Ela foca nos interesses da burguesia

 

Vale a pena seguir fontes mais críticas:

Opera Mundi, Brasil 247, TVT, a Boitempo, Zé Reinaldo…

 

Um tributo ao autor Zé Paulo Netto

Pela densa pesquisa sobre Marx

 

Cumprimento o empenho de Breno Altman

Por profícuo trabalho em Opera Mundi!

 

Um biógrafo de Lula não petista

Se destaca nas forças de Esquerda

https://www.youtube.com/watch?v=bhCy2VAmrA0

 

Todo dia, é preciso desmontar

Estratégias farsescas da Imprensa

 

Duas canções nos remetem às origens

Do PT, no Sertão de Arcoverde

 

Dom Fragoso e Zé Comblin são emblemáticos

No exercício profético entre nós

 

Ao amigo Eduardo, historiador

Por trabalho tão densos que nos lega

 

Para além dos bons clássicos, ler também

Bons autores, autoras contemporâneos

 

Florestan, Paulo Freire Octávio Ianni

Caio Prado, Carlos Nelson, e Saffioti

 

G. Lukács, Meszaros, M. Löwy

Hobsbawm, S. Amim, João Bernardo

 

Mais Francisco Martins, Jacob Gorender,

Mário Alves, Gregório, Marighella

 

Militantes não menos nos instigam

A pautar nossa vida no que cremos

 

Começando por quem também costura

Os diversos filetes do real

 

Classe, Gênero, Etnia, Geração

Várias artes, Espaço, Ecologia

 

Contemplar belos quadros, sábios ícones

Cavoucar fontes várias, lidar com fatos

 

Formação Popular nos adverte:

Se educa pro bem, também pro mal…

https://www.youtube.com/watch?v=wVRM0DqcF3M

 

Breno Altman, um quadro competente

No combate sem trégua ao Capital

https://operamundi.uol.com.br/autores/88/breno-altman

 

A Ivandro Costa Sales, um tributo

Pela herança de Gramsci compartilhada

http://www.liber.ufpe.br/teses/arquivo/20041104153802.pdf

 

Com Gramsci, aprendemos mais e mais

A ser fortes e sábios militantes

 

Contemplar belos quadros, sábios ícones

Tantas artes, belas fotos, filmes bons

 

O Império detesta autonomia mas,

Nem todos se ajoelham a seus caprichos

 

O seu mito democrático tem pés de barro

É preciso não ir nessa conversa

 

O Império persegue Venezuela

Bloqueando 40 bilhões de dólares (https://www.youtube.com/watch?v=lVodpm9TCtc)

 

TCI bem integra as correntezas

Sempre em busca de um mundo alternativo

 

Adalberto Barreto, na TCI

Interagem com Comblin, Freire e Fragoso

 

Geopolítica é um campo efervescente

É de disputa de poder entre as potências

 

Insensato mater-nos nesta briga

Sem critérios robustos neste caso

 

Haja vista o caso Cazaquistão

Sem critério de Classe não se avança

 

Seja assim com a Ucrânia, Cazaquistão

O Irã ou Taiwan, também Líbia

 

O que a Líbia experimentou do Ocidente

Nos aponta a maldade do Império (https://www.youtube.com/watch?v=drev0RuozOk)

 

Prevenir “post factum” é arremedo

É pôr trava na porta, após assalto (https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2022/01/10/zema-contraria-geologos-nao-dava-prever-desabamento-capitolio.htm)

 

(The) British Empire nowadays accuses China

For exploiting by debts african people

 

O Império britânico acusa a China

De explorar por dívidas os africanos

(https://www.youtube.com/watch?v=GRIEpuX-CFM)

 

João Pessoa, 11 de janeiro de 2022.

Sobre o cotidiano

Muitos ainda discutem se vivenciamos uma sociedade moderna, pós-moderna, hipermoderna etc. Independentemente da nomenclatura utilizada, é nítido que o enredamento social se tornou muito mais complexo do que em outros tempos. Nos séculos passados, a estratificação social e os papéis desempenhados pelos atores sociais eram bem definidos; isso podia ser constatado pelas roupas, modo de falar, acesso à informação… No entanto, hoje em dia, a trajetória dos indivíduos, seus repertórios e a forma de lidar com as peripércias da vida vem se multifacetando, causando uma verdadeira dissolução de ideias e conceitos engessados.
Quando comecei a ter contato com os autores que tentam descortinar um conceito de cotidianidade, sempre tentei ter como prima a tentativa de elucidação dessa sociedade complexa, líquida e indomada. De fato, os autores lidos até agora (Heller, Kosic, Lefebvre, Certeau, entre outros) de alguma maneira, cada um de seu jeito e forma de expor, viram que o ideário marxista não consegue mais dar conta de explicar o modus operandi social.
Tais autores (e tantos outros que eles dialogam) enveredaram por caminhos diversos com intuito de resgatar um Marx romântico, que de uma maneira breve e inicial, chegou a pincelar a importância do indivíduo e de sua individualidade na transformação social. Após tal período, as idéias marxistas se concentram nas macroestruturas e direcionaram seus vorazes canhões para o ataque à exploração do proletariado, ao prejuízo da alienação, à conscientização da mais-valia e assim por diante.
Contudo, o interessante é observar, sob a luz desses autores, que há outra direção de entendimento. Nem tudo é macro. As relações do cotidiano, as micropolíticas, as mentalidades e subjetividades, de certo modo, também operam no campo da transformação social. Sobra uma luz nesse túnel, que aponta para uma revolução silenciosa; nem tanto o céu, nem tanto a terra.  A metáfora de Kosic da parte e do todo é bem interessante para essa questão: juntar as partes formará algo que é muito mais que o todo. Talvez o proletário, ou ainda, o homem ordinário, para sermos mais “modernos”, unidos não sejam tão alienados assim; e suas interações sejam tão revolucionárias quanto às armas de Lênin.
E são essas interações diárias, a fabricação criativa dessa “massa”, que já não é mais passiva, como Frankfurt reiterava sem parar, que podemos perceber uma proposta de método para o entendimento social. Isso não quer dizer uma total refutação às valiosas ideias do velho barbudo, mas um complemento. Uma tentativa suplementar de dar cabo às complexidades de uma sociedade acelerada, tecnológica e constantemente conflituosa entre seus atores.

Para mim, é bonito perceber, com Freud, Foucault e até mesmo Heller (por que não?) da importância do indivíduo nesses processos. A emergência do self  imprime um lirismo que de modo algum fragiliza a revolução social, como se estivéssemos em um debate com recorte de gênero. Até por que, até isso o atomismo social, ao decorrer dos anos, está dando cabo. Devagar, é bem verdade, mas caminha.
Tem um trecho de Heller, que em um insólito cross content  pós-moderno, por assim dizer, compartilhei em minha timeline do Facebook que expressa bem essa ideia. É uma bela passagem que ficou registrada em minha memória e levarei comigo sempre quando de alguma maneira refletir sobre o cotidiano:
“A condução da vida supõe, para cada um, uma vida própria, embora mantendo-se a estrutura da cotidianidade; cada qual deverá apropriar-se a seu modo da realidade e impor a ela a marca de sua personalidade.”
Aqui, Heller invoca o poder transformador que reside em cada um, por mais que as circunstâncias imponham realidades engessadas e aparentemente impossíveis. É daí que surgem as radicalidades. Como Certeau fala em sua “Invenção do Cotidiano”, e que gosto muito, são as astúcias que o indivíduo se vale no cotidiano para ultrapassar imobilidades e inércias. Como José de Souza Martins, em “O senso comum e a vida cotidiana”, fala:
“(…) é na prática que se instalam as condições de transformação do impossível em possível. Heller disse que só quem tem necessidades radicais pode querer e fazer a transformação da vida”.            
É isso que penso do cotidiano.

PRIVATIZAÇÕES: O XÍS DA QUESTÃO

Os reformistas (e também alguns cidadãos que se enxergam como sendo de esquerda, mas cujo discernimento político deixa a desejar…) fizeram enorme alarde a respeito de um dossiê de denúncias eleitoreiras transformado em livro.

Agora, os direitistas contra-atacam questionando a privatização de aeroportos.

Então, vamos combinar: um seguidor de Marx ou Proudhon só pode considerar defensáveis as empresas estatais QUE SEJAM GERIDAS POR CONSELHOS DE TRABALHADORES E ESTEJAM PRIORIZANDO AS NECESSIDADES  E INTERESSES DO POVO.

As que existem, tanto dá que estejam nas mãos do estado burguês ou de capitalistas. Ao povo é que não pertencem. E o povo não tem motivo nenhum para defender um bem que não é nem jamais foi seu.

[As voltas que o mundo dá: bem no comecinho da campanha presidencial de 1989, entrevistei o Lula e lhe fiz a mesmíssima objeção acima. Ele respondeu que não pretendia deixar as estatais como estavam, mas sim colocá-las sob a direção de conselhos de funcionários. Parece que em 2002 ele já mudara de idéia. Eu não mudei.]

 Vamos parar de perder tempo com essas tolices e voltar ao que realmente importa: o imperativo de substituirmos o capitalismo por um regime cujos pilares sejam a justiça social e a liberdade.

 Repito pela enésima vez: O CAPITALISMO, NO ATUAL ESTADO DE PERVERSIDADE E PUTREFAÇÃO, NÃO PODE SER REDIMIDO NEM TER SUA MALIGNIDADE ATENUADA.

 Ou nos livramos dele, ou ele nos destruirá a todos, dando fim à espécie humana.

 Precisa de coveiros que o enterrem de uma vez por todas, não de enfermeiros que lhe apliquem esparadrapos.

 É simples assim.

O reino da liberdade e as fazendas-modelo

“A praça é do povo!
Como o céu é do condor.
É o antro onde a liberdade
cria águias em seu calor”.
(Castro Alves)

 

Está no noticiário:

Forças de segurança da Síria atacaram ativistas pró-democracia ontem, deixando mais de 30 mortos.

 

Os protestos pela saída do ditador Bashar Assad já duram sete meses. O governo tem reagido com truculência. A ONU estima que os conflitos deixaram 3.000 vítimas até agora.

 

Ativistas afirmam que as forças de segurança perseguiram os manifestantes ontem (6ª, 28), atirando com metralhadoras. As linhas telefônicas e a internet foram suspensas.

 

Os pontos de maior conflito foram Homs e Hama, na região central do país. São áreas de forte oposição ao regime.

 

A Síria restringe a entrada de jornalistas no país, o que impede a averiguação independente das informações.

Ao contrário de Muammar Gaddafi, o  açougueiro de Damasco não é defendido nem mesmo pelo mais tacanho dos esquerdistas autoritários.

 

O que, entretanto, não tem implicado um posicionamento firme e manifestações de repúdio a este tirano indiscutivelmente cruel e repulsivo.

 

É chocante e lamentavel: a esquerda parece ter perdido a capacidade de indignar-se contra a bestialidade dos déspotas.

 

Quando há justificada revolta contra eles, fica com um pé na frente e outro atrás, temendo que seja instigada pelo imperialismo, para colher qualquer vantagem econômica ou política.

 

Exatamente como fez quando da revolução húngara de 1956 e da  Primavera de Praga em 1968.

 

Das duas grandes bandeiras da humanidade através dos tempos — a justiça social e a liberdade –, estamos, obtusamente, abdicando da segunda.

 

Com isto, deixaremos de encarnar as esperanças numa sociedade que possibilite a realização plena do ser humano, em termos materiais e espirituais.

 

O maravilhoso objetivo final de Karl Marx — a instauração do “reino da liberdade, para além da necessidade” — é trocado, na prática, por outro bem mais prosaico, a instalação de fazendas-modelo, nas quais os animais sejam bem tratados enquanto se mantiverem submissos à vontade dos amos.

 

Então, quando as manifestações anticapitalistas deixam de ser necessariamente manifestações comunistas ou anarquistas, como está acontecendo na Europa, não temos do que nos queixar. Somos nós mesmo que estamos atraindo descrédito para nossas causas, pois as amesquinhamos em nome de um pretenso realismo político.

 

É hora de, escutando a voz das ruas, voltarmos a trilhar os caminhos de Marx e Proudhon.

 

Ou desempenharemos papel secundário neste momento em que as vítimas do capitalismo começam a despertar de sua letargia, depois de quatro décadas de conformismo.

A propriedade privada e os sentidos, por Karl Marx

“A propriedade privada tornou-nos tão néscios e parciais que um objeto só é nosso quando o temos, quando existe para nós como capital ou quando é diretamente comido, bebido, vestido, habitado, etc., em síntese, utilizado de alguma forma. (…)

Assim, todos os sentidos físicos e intelectuais foram substituídos pela simples alienação de todos eles, pelo sentido de ter.”

Karl Marx, Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844, III Manuscrito: Dinheiro.