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As raízes do Brasil machista

Foto: revistadehistoria.com.br

Acho que vale mais um comentário, em meio ao clima fascista “Bolsonaro” do momento, sobre a importância da obra de Sérgio Buarque de Holanda para conhecermos nossos desafios e nossas lutas.
O autor de Raízes do Brasil alerta amplamente sobre uma característica importante da nossa formação histórica: a economia predatória portuguesa no Brasil Colônia dependia, quase que plenamente, dos engenhos. Lá, tudo se realizava (era inclusive independente, e até os móveis ali eram feitos).
Duas características marcam o engenho: sua vertente rural e, talvez principalmente, a forma patriarcal e patrimonialista com que era liderada. A economia girava em torno do senhor do engenho, um homem que estava acima da lei. Tudo podia, e pouco se fazia para frear seu poder. Foi somente com o fim do regime escravocrata que, pouco a pouco, desde 1850, o seu poder decaiu. Sem, claro, nunca ter acabado por completo.
Um dos principais traços que os portugueses de outros tempos aqui deixaram foi justamente esse: a “família” vinha em primeiro lugar. Pouco animador: essa família tinha chefe, leis próprias e uma rigidez ímpar. Há mesmo casos na História do Brasil como o do fazendeiro que assassinara a nora por desconfiar de adultério. O homicídio contou com a mais ampla impunidade, apesar de o país já contar com legislação penal.
Essa seria a origem de expressões como “briga de marido e mulher não se mete a colher”, ou o ideário machista de que uma mulher que namora não deve sair sozinha. O patriarcado foi e continua sendo instrumento de poder. Esse limite entre o público e o privado criou aqui raízes profundas, conforme explica Buarque de Holanda.
A dificuldade de aplicar leis progressistas no âmbito familiar e de romper com o patriarcado não é tarefa menor, como pensam inclusive alguns “progressistas” (em geral homens, evidentemente). Não é menor que a economia, que a política. É economia, é política e é essa situação fruto de uma forma de pensar atrelada aos séculos XVIII e XIX. E tem consequências perversas: o feminicídio. E o âmbito do problema é fundamentalmente privado, como se vê pelas estatísticas do século XXI.
O fato de que a centralidade da questão feminista, mesmo após séculos de patriarcado agindo abertamente, precisa ainda ser “provada” ou argumentada é um dos indícios de que ainda podemos retroceder muito nesse tema, caso não fiquemos atentos.
Não é à toa, por acidente ou involuntariamente que o mais feroz machismo venha da extrema-direita. O patriarcado sempre foi de direita. No século XIX, foram os socialistas que se levantariam, em grande parte, contra o problema. Mesmo a direita mais progressista, que nesse momento eram os liberais das cidades, fechariam parcialmente olhos para a questão, a colocando como secundária.
Um pouco de contextualização histórica não faz mal a ninguém. Não para nos conformarmos, mas para serenamente sabermos que estamos numa luta que não começou ontem, ou há algumas décadas. Trata-se de uma batalha secular contra um dos males mais enraizados que o nosso país possui.

O homem cordial ataca de novo

O machismo brasileiro está sofrendo, me dizem, com uma espécie de “macartismo misândrico”, cujo contexto é o “discurso do ódio” crescente.
O brasileiro não está mesmo acostumado a esse tipo de comportamento, escreveu Sergio Buarque de Holanda em 1936. Aqui, as relações de simpatia estão acima das regras impessoais do Estado weberiano, fortalecendo o que ele descreveu como o “homem cordial” – que nunca pressupôs “bondade”, e sim o predomínio de comportamentos de aparência afetiva. As manifestações do homem cordial, explicou, não são necessariamente sinceras ou profundas, se opondo aos ritualismos da polidez.
A chamada “mentalidade cordial” gera uma sociabilidade apenas aparente, ajudando a minar nosso senso de coletividade. A consequência é, evidentemente, o individualismo que não admite ser contrariado.
Há quem ache que o bom comportamento em relação a este Estado supostamente impessoal – o que garantiria a lei para todos, sem distinção de raça, credo, gênero etc – é um traço de civilidade. Em outras culturas talvez (talvez), mas não no Brasil. A cordialidade descrita pelo autor não significa “boas maneiras” ou respeito pelas instituições – são sobretudo expressões de fundo emotivo. Diz Buarque de Holanda: “Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo – ela pode exprimir-se em mandamentos e em sentenças. Entre os japoneses, onde, como se sabe, a polidez envolve os aspectos mais ordinários do convívio social, chega a ponto de confundir-se, por vezes, com a reverência religiosa”.
E nenhum povo está mais distante disso, completa ele, do que o brasileiro. “Armado com a máscara da polidez, o indivíduo consegue manter sua supremacia ante o social”, conclui Buarque de Holanda. Todas as normas da sociedade são formalmente respeitadas, mas nenhuma dessas normas é seguida. Por isso vivemos num país machista sem machistas, ou racista sem que viva aqui um único racista. Somos todos cordiais.
O sexo é, nesse contexto, um assunto privado – exceto em duas situações: quando o privado se torna público contra a minha “vontade” (nesse caso, passa a ser estatal, por meio de um processo jurídico) ou quando o privado é de interesse público (nesse caso, o Estado estaria sendo arbitrário ao limitar minha liberdade de expressão, caso eu queira falar sobre o tema e seja impedido por mecanismos jurídicos).
O moralismo que não obedecer essa regra geraria, nesse caso, processos na esfera estatal por “danos morais”, “difamação”, um “crime contra a honra”. No país do “homem cordial” e do patriarcado, o recente caso do professor “amansador de cornos” é mais um capítulo que opõe a falsa polidez do machismo institucional (sem machistas) ao efetivo desejo de falarmos abertamente sobre o tema. A resposta patriarcal, ao que parece, foi o famoso “nos vemos na Justiça”, enquanto que a grande questão parece ter sido a de sempre: “você sabe com quem está falando?”

O tal professor machista

O machismo, uma cultura enraizada em nosso país por motivos já conhecidos dos historiadores (por exemplo), merece toda a atenção.
Em relação ao caso do professor machista, não deveríamos, mesmo, fulanizar o tema. Não é Fulano ou Sicrano o “culpado” por uma cultura – apesar de, evidentemente, poder eventualmente personificá-lo magnificamente. Mas veja como ele é virtual – no sentido de potência do real, prestes a se concretizar: a intensidade do debate está aí pra mostrar. Ele faz florescer um debate escondido.
Por que se potencializou ainda mais? Pelo lugar da fala. Esperamos posições machistas de pessoas machistas, não de feministas.
Duas posições surgem – como tem surgido, com variações, há pelo menos 40 ou 50 anos de debates sobre feminismo, nas minhas contas:
A. Bobeira discutir isso. Mais importante é a luta de classes, as “mazelas sociais”, a economia. É tudo luta de classes, o resto vem depois.
B. Vamos discutir o machismo e sua perenidade mesmo em setores que supostamente adotam bandeiras feministas, ou seja, pela igualdade de direitos e dignidade humana, sem distinção de gênero.
O(A) machista adota a posição A. Ele não quer saber de outra coisa, tudo é classe, não há identidade possível a não ser a do opressor/oprimido genérico. A(O) feminista a posição B: as opressões se entrecruzam, se relacionam, colocando pesos distintos a partir de entradas distintas do sujeito contemporâneo.
E quem não abre mão da posição B? Quem sofre na pele o problema, como por exemplo um monte, um monte mesmo, de amigas feministas que atuam em movimentos sociais e organizações mais à esquerda. A opressão é aberta, limitadora, vivida diariamente. Todos os dias. Basta fazer o exercício da escuta.
Seu “esquecimento” é o que fundamenta, por exemplo, a perpetuação da cultura do machismo, a mesma que na outra ponta do processo faz com que uma mulher seja estuprada no Rio a cada duas horas. E muitos daqueles (não todos, claro!) que deveriam atentar para a especificidade da questão acham que é bobeira, assunto menor.
Textos sobre o tema por Niara de Oliveira e do Escreva Lola Escreva.

A ‘paquera’ do G1

Comentário de Cecília Olliveira:

Só hove vi que o que o G1 chamou de ‘paquera’ na notícia – ‘Polícia ouve testemunhas para apurar morte de jovem após paquera‘ – foi o cara metendo a mão na menina. Ela não gostou da abordagem e levou um tiro. G1 é bom em prestar desserviço, hein? Só faltou escrever lá “ela estava de saia curta e mereceu”…

É mole?

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QUANDO A JUSTIÇA TARDA, E FALHA. Na próxima terça-feira (28/2) vence o prazo do recurso que Lúcio Flávio Pinto, jornalista independente do Pará, poderia apresentar ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) no processo por danos morais movido por um grande empresário acusado de grilagem de terras. Sem recursos o jornalista decidiu não recorrer mais.

Em seu Jornal Pessoal, o jornalista disse não ter mais recursos para para sustentar uma representação desse porte, bem como para arcar com a indenização que foi imputada a ele. ‘Eu teria ainda de me submeter outra vez a um tribunal no qual não tenho mais fé alguma’.

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ISRAEL, CONTRA A PAZ MAIS UMA VEZ. Israel dá mais uma demonstração de que não quer o diálogo, tampouco a paz.

Mais uma vez, na contramão de tudo o que tem sido negociado a nível internacional, contra qualquer recomendação internacional que não seja a sua e a dos EUA, o país dá prosseguimento aos assentamentos ilegais.

“O anúncio de hoje [22/2] feito por Israel para aprovar um grande número de novas unidades no assentamento de Shilo, no interior do território ocupado palestino, e retroativamente legitimar outras centenas em um posto próximo é deplorável e nos move para longe do objetivo de uma solução de dois Estados”, afirmou o Coordenador Especial para o Processo de Paz no Oriente Médio, Robert Serry, em um comunicado de imprensa.

O Secretário-Geral da ONU, Ban Ki-moon, visitou a região no início do mês e também criticou o avanço de Israel sobre a Palestina. “A questão dos assentamentos, que são ilegais e ferem a perspectiva de uma solução negociada, claramente possui uma dimensão econômica. Os assentamentos e sua infraestrutura restrigem severamente o acesso à terra e aos recursos naturais pelo povo palestino”, disse Ban.

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INDEFINIÇÃO EM GAZA. Hamas e Fatah mantiveram esta semana um impasse político que já dura cinco anos.

O presidente palestino, Mahmoud Abbas, e o líder do Hamas, Khaled Meshaal, adiaram nesta quinta-feira (23/2) as conversações sobre a formação de um governo unificado, afirmou uma autoridade do Fatah, em mais um atraso das negociações.

O oficial citado como fonte pela agência de notícias AFP disse que as negociações foram adiadas “porque o Hamas continua a impedir que a comissão eleitoral registre eleitores em Gaza”.

Ele acrescentou que o Hamas, que está dividido internamente sobre se concorda ou não com a unidade do governo com o Fatah, ainda “não informou [a Abbas] sobre sua aprovação formal para acabar com disputas internas sobre a formação do governo”.

Ainda não está claro quando o novo governo será anunciado e quando as eleições serão realizadas.

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ITÁLIA CONDENADA POR POLÍTICA ANTIREFUGIADOS. A Corte Europeia de Direitos Humanos decidiu nesta quinta-feira (23/02) que a Itália violou a Convenção Europeia de Direitos Humanos ao interceptar e retornar, em 2009, um grupo de cidadãos somalis e eritreus à Líbia sem examinar se isso implicaria risco a suas vidas.

Durante pronunciamento na corte, o Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR) sublinhou a obrigação dos Estados de não retornar forçosamente as pessoas a países onde enfrentam perseguição e sérios riscos. No direito internacional, essa prática é conhecida como “princípio de não devolução”.

A agência ainda defendeu que o julgamento do caso, conhecido como “Hirsi Jamaa e Outros X Itália”, representa um ponto de virada em relação às responsabilidades dos Estados e à administração dos fluxos migratórios.

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CAMPANHA CONTRA MINAS ANTIPESSOAIS. A Colômbia tem a segunda maior taxa de vítimas de mina antipessoal no mundo. São mais de 9 mil pessoas, sendo cerca de 3.400 civis e 870 crianças. A Colômbia deu um exemplo ao mundo enfrentando a questão.

Um documentário relata o drama das minas antipessoais e suas vítimas:

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SATCHITA, música do projeto ‘Playing for change’.

Machismo mata

(via Renato Kress)

Um Caso de Violência Doméstica Contra Mulher (Apelo de Ação Solidária)

Carlos A. Lungarzo

Anistia Internacional 2152711

Créditos:

O pôster acima (sem a tradução) foi utilizado por Amnesty International para ilustrar a campanha Stop Domestic Violence. A agência produtora foi Air Brussel, da Bélgica, os produtores de criação foram Marie-Laure Cliquennois e Grégory Ginterdaele, o diretor de arte, Didier Naert e o fotógrafo, Frank Uyttenhove. A produção é de março de 2009.

“A denúncia sempre ajuda ou, pelo menos, não faz dano. O silêncio e a cumplicidade matam.”

Lipman Bers, matemático sueco e ativista de Direitos Humanos.

A violência doméstica, especialmente do homem contra a companheira, é altamente frequente, e acontece até em sociedades tidas como “civilizadas” e em classes sociais não carentes e formalmente educadas. Este texto contém:

  1. O relato de um caso específico, onde manterei anônimo o nome da vítima.
  2. Aspetos jurídicos e sociais sobre a violência doméstica e propostas de auxílio.
  3. Um apelo aos leitores para que se manifestem.

Conceito de Violência Doméstica

Violência Doméstica é o nome dado a qualquer ação violenta de um membro de uma comunidade familiar contra outros membros da mesma, usualmente em condições de inferioridade física, social, psicológica, etc., o que impede uma adequada autodefesa.

A violência doméstica pode ser física ou psicológica, mas existem combinações de ambas. Consideramos a violência sexual como caso específico.

  1. 1. Física: Agressão corporal de qualquer natureza, ataques com armas domésticas ou convencionais, aplicação de torturas, alteração sensorial, privação da luz, cárcere privado, omissão de apoio econômico ou sanitário, etc.
  2. 2. Psicológica: Insultos, humilhações privadas ou públicas, ameaças contra a vítima ou contra seus afetos, extorsão, intimidação, difamação, calúnias, etc.
  3. 3. Violência Sexual: Estupro, coação, sedução forçada, assédio, contato corporal indesejado, etc.

A forma de violência doméstica (VD) mais frequente é a de homens contra suas companheiras, e contra seus filhos ou os de sua parceira, ou outras crianças. A frequência desta forma de VD é muito maior que outras. Por isso, “violência contra mulher” se utiliza às vezes como “violência doméstica”. Não devem esquecer-se, porém, outras formas de VD, entre elas:

  1. Mulher contra marido ou companheiro (pouco frequente).
  2. Mulher contra crianças (muito frequente).
  3. Casal contra crianças (muito frequente).
  4. Casal ou Mulher contra Idosos, Doentes ou Indefensos (relativamente frequente).

Todos os dias, ao interior de seus lares, milhares de mulheres são alvo de VD por parte de seus parceiros, que muitos operadores de direito (juízes, promotores e defensores) continuam encobrindo. Veja um site brasileiro com abundante documentação aqui.

Os setores populares, vitimados pela miséria, a superlotação, e outras mazelas são os mais castigados, prejudicando até o próprio agressor, que também é vítima da brutalidade policial, da exploração patronal, da ignorância e do alcoolismo. No entanto, existem casos também nas classes médias, e o que vamos relatar pertence a esse tipo.

A vítima é uma intelectual, jornalista, historiadora e escritora, muito respeitada em seu meio. O agressor, seu ex-marido, também pertence à classe média com condições normais de vida. Nosso propósito é chamar a atenção sobre a vítima, e sobre a situação geral de outras pessoas agredidas. Meu objetivo é que os leitores colaborem conosco em combater a VD e enviem apelos às autoridades que, em geral, são displicentes.

Chamarei a vítima deste caso com o nome de Cida e seu agressor, Fábio.

O Contexto dos Fatos

Cida mora em Brasília (DF) e possui dois filhos (que não são filhos do agressor) de 10 e 17 anos.  Ela esteve casada com Fábio durante três anos, e ambos ficaram judicialmente separados no começo de 2010.

Quase três meses após da separação, em 20/03, Cida foi à casa da mãe de Fábio para recuperar alguns pertences pessoais, tendo avisado sua visita por mensagem telefônica. Ele respondeu dizendo que não estaria na casa e que ela poderia pegar seus objetos. Quando chegou, comprovou que ele sim estava no local. Pediu ao sobrinho dele (de 17 anos), que chamasse o Fábio, mas o garoto disse que era melhor ela entrar.

Por precaução, Cida esperou durante uns 10 minutos até que decidiu entrar. Chegou ao quarto onde estariam seus pertences, bateu na porta e, não escutando resposta, entrou. Todos seus objetos estavam em cima da cama. Quando se abaixou para pegá-los, sentiu um murro que ia atingir seu rosto em cheio, mas conseguiu virar-se de modo que o impacto esbarrou em sua orelha. Esse foi o começo da pancadaria.

Cida ligou em seguida para um amigo na Delegacia da Mulher, que não se encontrava no local, mas o Fábio, com medo das conseqüências, quis proteger-se e digitou o número de urgência da polícia (190) para denunciar que seu domicílio estava sendo invadido. Enquanto a polícia chegava, ele continuou espancando-a por cerca de 15 minutos. Cida quis proteger-se fugindo do quarto, mas os familiares de Fábio bloquearam a saída, e o sobrinho de 17 anos (que a vítima estima pesando uns 100 Kg) a segurou e a agrediu também.

Quando entrou a polícia, Fábio já tinha combinado com a mãe e com o sobrinho uma falsa acusação: eles deveriam dizer que Cida tinha agredido a mãe, e que o sobrinho a tinha defendido. Feito esse acordo, entrou no quarto, levando os sapatos e o telefone da vítima.

Cida, que apresentava numerosas escoriações e sangrava pelo nariz, avisou ao Policial Militar, Sargento Costa Figueiredo, que o agressor estava dentro do quarto, para que fosse detido em flagrante. A Polícia reconheceu que tinha visto Fábio, porém, recusou-se a detê-lo em flagrante e, em lugar disso, levou a vítima para a delegacia, de onde foi encaminhada ao Instituto Médico Legal. O IML reconheceu todos os ferimentos e os registrou em laudo.

Cida pediu medidas de proteção, entre as quais uma distância mínima de aproximação. Não era a primeira vez que se registravam estes incidentes entre os dois. Quando estavam ainda casados, ele a tinha ameaçado, seguido, vigiado de longe enquanto ela participava de eventos que ele se recusava a ir, e chegou a agredir e ofender amigos dela em locais públicos.

Apesar da urgência do caso, ela só conseguiu ser ouvida no 25/03 (5 dias após), quando houve uma audiência com a juíza Silvana da Silva Chaves e com a promotora Andrea Cirineo Sacco Studnicka, da 2ª Vara do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Elas determinaram o distanciamento de 200 metros, e proibiram contato por qualquer meio de comunicação.

O sossego durou apenas alguns dias. Logo, Fábio começou a seguir Cida no trânsito. Enquanto isso, a namorada dele, Moniele Seron, publicava mensagens ofensivas contra Cida no Orkut e por e-mail, o que a obrigou a excluir seu perfil. A ajuda de Moniele, as mensagens humilhantes para Cida e o apoio que ela deu a Fábio (tornando-se cúmplice da barbárie) fez com que ele se fortalecesse para descumprir uma ordem judicial e mentir sobre a ex-esposa na frente da juíza. Todo agressor que encontra apoio em alguém, ou cuja nova companheira não acha errado o que ele fez (achando que não vai acontecer com elas), faz com que o homem se sinta mais forte e não se arrependa das agressões.

Cida fez denúncia de ambos na Delegacia da Mulher. Fábio ficou sabendo que Cida também denunciara sua namorada e lhe enviou seis SMS, pedindo para que ela atendesse o telefone. A vítima atendeu e gravou a conversa. Essa gravação deveria servir como segunda prova de que o agressor estava violando a decisão judicial de não fazer contato por nenhum meio, pois os SMS já eram suficientes. Então, a vítima levou os telefones na Delegacia e no Instituto de Criminalística, fez nova ocorrência e obteve nova audiência.

Dessa vez, foi atendida pela juíza substituta Virginia Fernandes de Moraes Machado Carneiro e pelo Promotor Daniel Rodrigues de Faria, na mesma Vara.

A audiência da vítima e do agressor foram realizadas em separado. Cida contou os detalhes das agressões. Mencionou também que Fábio tinha ameaçado de morte seus filhos, e dito explicitamente que “seria fácil o atropelar [seu filho mais velho] numa faixa de pedestres, pois ele é lerdão e nerd”.

Além disso, em tom sarcástico, ele falou para Cida que seus chefes, Francisco Lacerda e Solimar Neiva da VALEC, (emprego que Cida arrumou para Fábio Guardiola), a quem ela denunciou também a barbárie, haviam dito que ele deveria ter batido em locais onde não deixasse marcas. A vítima mostrou ainda, todas as ocorrências policiais que tinha sobre o agressor. Inclusive uma realizada contra sua própria irmã.

Por sua vez, Fábio proferiu várias acusações falsas, invertendo os papeis de vítima e agressor, e acusou Cida de ameaçar ele e sua namorada, de persegui-lo no trânsito, e de outras situações similares. Para surpresa da vítima, a juíza substituta e o promotor deram prioridade ao depoimento de Fábio, que negava as acusações e,  inversamente, a acusou de cometer agressões. Uma mentira infame!

A vítima pediu à juíza para comparar as fichas de ambos, e cobrou explicação sobre o fato dela não ter nenhuma ocorrência policial contra ninguém, mas não foi atendida. O Ministério Público, que havia pedido a prisão de Fábio por descumprimento da ordem do Estado e por Ameaça, reverteu o pedido de prisão quando o promotor Daniel Rodrigues de Faria decidiu “dar uma nova chance” ao agressor. Observe que:

ª  A vítima tinha apresentado gravações da conversa telefônica e mensagens de texto.

ª  Fez exame do corpo do delito que constatou as escoriações e a hemorragia.

ª  Tinha registrado quatro ocorrências anteriores contra ele. Qualquer advogado pode apreciar facilmente se as diversas denúncias mantêm coerência ou não.

Os magistrados não levaram em consideração o perigo representado pelo agressor: ele poderia preparar outra cilada contra a vítima, bater em outras mulheres, e até comissionar alguém para prejudicar os filhos dela. Neste caso, o que trivialmente faria o mais improvisado xerife do velho faroeste seria uma acareação. Mas neste caso, de tamanha agressão, nem seria preciso. Os fatos já falavam por si só.

Ainda, a Juíza chamou ambos de “partes”; ou seja, vítima e agressor foram tratados como se fossem partes simétricas numa demanda pela propriedade de um jogo de guardanapos. A magistrada propôs encaminhar ambos ao departamento psicossocial do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, que não serve, como apreciaria qualquer leigo, para a proteger do risco, embora seja útil em casos de conflito bilateral.

Ainda, Cida denunciou na Corregedoria da Polícia do Distrito Federal os policiais militares que foram testemunhas da agressão do 20/03. Resultado:

ª  A corregedoria começou a coletar dados, mas desistiu logo.

ª  Cida nunca foi chamada para depor contra os policiais.

ª  Fábio voltou a ameaçá-la por telefone, dizendo que os policiais envolvidos o tinham procurado para, entre todos, combinar uma história contra ela. Disse ainda, que nenhuma denúncia adiantava. “Nem Justiça, nem polícia, isso nunca dá em nada.”

Mas, não foi necessário, porque a Corregedoria já tinha “enterrado” o processo.

Anistia Internacional tem denunciado centenas de vezes, que autores de VD, de tortura e massacre policial, de assassinatos de detentos e interrogados, etc., se beneficiam da cumplicidade das hierarquias das corporações policiais e dos operadores de direito.

Cida tentou, sem sucesso, interessar o Correio Braziliense, que se recusou a publicar qualquer notícia sobre o caso, ou incluir uma matéria sobre VD.

Segue o relato da triste história que me aconteceu. O pedido que tenho a fazer é que o caso seja citado, os nomes das pessoas envolvidas sejam citadas, mas o meu, por proteção da fonte, ficaria em OFF.

No dia 20 de março de 2010, depois de quase tres meses separada do senhor Fábio Rogério Guardiola Ferreira, inclusive separada judicialmente, fui na casa da mãe dele buscar uns pertences. Mandei um SMS avisando que estava indo e ele disse em resposta que NAO estava em casa, e que eu poderia passar lá e pegar o que eu pedia.
Quando cheguei, ele estava em casa, então, toquei a campainha e pedi para chamá-lo. O sobrinho dele, Daniel (17) disse: entra aí…

Eu não entrei imediatamente. Aguardei uns 10 minutos no sol e depois entrei. Bati na porta do quarto dele e abri. Os meus pertences estavvam todos em cima da cama. Quando me abaixei para pegar senti um murro em minha direção. Ia pegar bem no meu rosto, mas me virei e pegou na minha orelha. Foi o início da sessão pancadaria. Liguei rapidamente para um amigo da Delagacia da Mulher, mas ele estava em férias e não me atendeu. O meu ex-marido quando viu que liguei pro policial, chamou o 190 dizendo que era uma “invasão de domicílio”.Análise do Caso

Se isto acontece com uma pessoa que possui recursos de autodefesa e amplo apoio social, qual é a situação de uma pessoa que provém das classes populares, alvo permanente da agressão das corporações armadas, de segurança e jurídicas?

Proteção Legal

A proteção da mulher está garantida pela Lei 11.340/2006, conhecida como Maria da Penha em homenagem a Maria da Penha Maia Fernandes, que ficou paraplégica por causa de torturas aplicadas por seu marido em 1983. Os envolvidos no processo (polícia, promotoria, magistratura) demoraram 19 anos (!!) para condenar o responsável a só dois anos de prisão.

A Comissão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos deram uma resposta no caso nº 12.051/OEA, e obrigaram o Brasil a aprovar a lei 11.340, com base no caso Maria da Penha.

Então, devem ser denunciados os casos individuais de violação de direitos das mulheres, mas também os representantes dos poderes públicos que protegem estes abusos.

Lembremos que mulheres já foram vítimas de graves aberrações jurídicas. Nefastos exemplos:

  1. A cassação da liminar que permitia o aborto no caso de fetos anencefálicos, derrubada no Supremo Tribunal por sete votos contra quatro.
  2. O caso de um mulher pobre, com transtornos mentais, condenada a vários anos de prisão pela desapropriação de um xampu num supermercado. O TJSP (veterano protetor de multi-homicidas fardados como o coronel Guimarães) recusou o habeas corpus da menina, que foi liberada após ter perdido um olho nas torturas.

Quando se encontram estes casos de violência, seja física ou psíquica, contra pessoas vulneráveis, devem se adotar algumas providências:

Denúncia Policial

Quando a primeira ação possível é fazer denúncia à polícia convencional, a vítima deve requerer a companhia de vizinhos ou amigos, mesmo que não tenham sido testemunhas da agressão. Se houver testemunhas ou provas, deverão ser apresentadas ou mencionadas.

É necessária cautela ao denunciar VD numa delegacia, pois em todo o Continente, muitos policiais são sexistas, sádicos e atacam até suas próprias esposas. Normalmente, eles não atendem as denúncias, como no caso de Cida, e podem levar na brincadeira as denunciantes. Já foram relatados casos de estupro pela própria polícia.

Nos países desenvolvidos, a situação é também grave em menor medida. Americanas casadas com policiais têm aberto um site muito interessante onde mostram a maior incidência de brutalidade contra as esposas de policiais que contra esposas de civis. (Veja aqui) Há abundância de informação na Internet. Outro site muito informativo é este.

Como todos sabem, o sadismo das profissões que lidam com violência é um grave problema que só está resolvido numa dúzia de países ou menos (os Escandinavos, Holanda, Suíça, os do Reino Unido, parcialmente na Costa Rica, e em alguns outros).

Portanto, a opção mais segura para uma vítima de VD é comunicar-se com uma Delegacia da Mulher, como indicaremos em seguida.

Denúncia ao Ministério Público

Se for possível, o primeiro passo da vítima deve ser  uma denúncia ao Ministério Público, ou as procuradorias e promotorias da cidadania. Algumas destas procuradorias atendem casos de cidadania em geral, como racismo, preconceito, homofobia, etc., e não apenas VD. Em algumas delas, temos encontrado promotores e/ou procuradores muito bem motivados e com excelente orientação humanitária, especialmente entre os mais jovens. É comum que os que se empenham para ser lotados nessa procuradorias ou promotorias já tenham uma tendência progressista.

Denúncias na Mídia

Como mostra o caso de Cida, não foi possível interessar o Correio Braziliense, mesmo que a vítima tenha sido uma jornalista premiada e de renome. Em geral, conseguir apoio da mídia para qualquer proposta humanitária (mesmo que não prejudique as elites) é quase impossível. Mesmo como membro de Anistia Internacional, a Folha de S. Paulo se recusou duas vezes a publicar simples cartas de apenas 15 linhas que enviei ao Painel do Leitor, denunciando graves violações dos Direitos Humanos. O problema da mídia não é apenas prático, mas também ideológico. Os donos da mídia pertencem a grupos ligados no passado a ditaduras, e no presente aos setores mais neofascistas do empresariado. A defesa dos DH é considerada ofensiva para seu público. (Isto pode ser visto na recente campanha insana contra o direito de asilo no Brasil.)

Entretanto, as vítimas devem dar a maior informação possível a todos os órgãos de mídia alternativa, como os blogs da Internet, sites de diverso estilo, e publicações independentes.

Denúncias em Outros Poderes

O poder legislativo possui algumas comissões que atendem queixas sobre violações dos DH e da condição feminina. Embora eles não sejam adequados para a situação de urgência, são relevantes para campanhas em períodos posteriores. Há várias comissões cuja área de atuação pode ser adequada para os problemas de VD

Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa  (CDH) do Senado.

61-3311-4251/2005 www.senado.gov.br/sf/atividade/comissoes/comissao.asp?origem=SF&com=834

Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara de Deputados

www.camara.gov.br/internet/jornalcamara/default.asp?selecao=materia&codMat=30093

Procuradoria da Mulher da Câmara de Deputados

(Este é um organismo especializado na defesa das mulheres contra a violência, e constitui uma das principais referência sobre o assunto.)

http://www2.camara.gov.br/a-camara/procuradoria-da-mulher

Atitude de Juízes e Promotores

Uma parte significativa dos juízes (inclusos alguns da alta magistratura) é sexista e preconceituosa. Há expoentes de incrível primitivismo. O juiz mineiro Edilson Rumbelsperger Rodrigues abomina da lei Maria da Penha, e disse que esta ameaça a família, os direitos do “varão” e volta ao caso de Adão e Eva, onde a mulher é a perdição do homem. Embora casos de tão explícita brutalidade são infrequentes, formas mais hipócritas de discriminação e ódio (especialmente contra mulheres pobres e/ou negras) são corriqueiras.

Organizações de Ajuda à Mulher

As vítimas de violência podem recorrer a delegacias convencionais, mas, como disse antes, isto as expõe ao maltrato dos policiais. Devem preferir-se:

  1. Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAM), ou Delegacias da Mulher (DDM).
  2. Serviços em hospitais e universidades e que oferecem atendimento médico, assistência psicossocial e orientação jurídica.
  3. Defensorias Públicas e Juizados Especiais,
  4. Conselhos Estaduais dos Direitos das Mulheres e
  5. 5. Organizações de mulheres. Uma longa lista pode ser encontrada no site:

Agência Patrícia Galvão è http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/index.php?option=com_capas&view=capas&tplay=sub&capaid=7&Itemid=32

  1. 6. Telefones

‘  Serviço de informação permanente (24 horas), anônimo e confidencial para  vítimas de VD: 800 202 148.

‘  Telefone para Denúncias: 180

Se a mulher entender que sua vida ou a de seus familiares está em risco, pode também procurar ajuda em serviços que mantêm casas-abrigo, (moradias em local secreto, onde a mulher e os filhos não podem ser encontrados pelo agressor).

Dependendo do tipo de crime do que foi vítima, a mulher pode precisar de um advogado. O Estado pode nomear um(a) advogad@ para defendê-la.

Muitas mulheres se arrependem da denúncia, às vezes por medo, mas outras por compaixão por seu agressor. Este arrependimento é bastante frequente, e não deve ser motivo de constrangimento. Devem, porém, ter cuidado, porque muitos policiais se sentem solidários com os agressores e aconselham às vítimas de VD desistir da ação. Há numerosas confissões deste teor em diversos sites da Internet.

Entretanto, deve ter-se em conta que o objetivo da prisão não é castigar nem executar vingança (pelo menos teoricamente), mas proteger as vítimas. Os autores de VD devem ser submetidos a tratamento clínico. Enquanto isso, devem ser custodiado como proteção para a vítima e para eventuais vítimas futuras.

Convite para uma Ação Solidária

Propomos aos leitores enviar denúncias a membros do poder público que possam difundi-las. Neste caso, é fundamental a autoridade moral e eficiência das pessoas envolvidas. Não sugerimos que as denúncias sejam apresentadas às Ouvidorias ou Corregedorias, porque justamente elas são as que “filtram” o andamento das denúncias, como já foi relatado.

O objetivo destas denúncias é tanto particular (relativo ao caso de Cida, aqui relatado) como geral. Uma típica lição da luta pelos DH é que a partir de casos particulares é possível, além de proteger uma vítima específica, criar uma situação de maior abrangência, para evitar novas vítimas. Para situar o problema, o denunciante pode mencionar este texto, cujo link é:

http://consciencia.net/?author=66

A seguinte é uma listas das pessoas por mim conhecidas de atuação mais ilibada em DH, que podem receber as denúncias.

Senador Eduardo Suplicy è eduardo.suplicy@senador.gov.br

Senador José Nery è josenery@senador.gov.br

Assessora (Câmara) Mariza Ferreira è mariza.ferreira@camara.gov.br

Assessor (Câmara) Flávio Jacopetti è fjacopetti@gmail.com

A denúncia deveria conter (porém, não precisa restringir-se a) referências de que:

  1. O denunciante leu o caso de nossa vítima, e sabe da grande amplidão destes problemas no país.
  2. Manifesta preocupação pela falta de compromisso do promotor do caso e da juíza substituta mencionados acima.
  3. Pede para este caso uma cobrança de explicações à Juíza Substituta, ao Promotor e ao Corregedor da Polícia Militar do DF, por incúria, negligência e falta de compromisso com a segurança da vítima e seus filhos.
  4. Pede, em geral, para todos os casos similares no país, investigações independentes, detalhadas e rápidas sobre casos de VD.

As Mulheres e Os Direitos Humanos

 

Carlos Alberto Lungarzo
Anistia Internacional (USA)

Reg. 2152711

Hoje, em pelo menos uma metade do planeta, a teoria dos DH básicos constitui um consenso. Mesmo que existam alguns elementos isolados e sombrios, que assomam suas horríveis cabeças em diversos meios (especialmente nos setores conservadores da política e nas forças de repressão), exigindo a volta da tortura e da pena de morte, e se opondo a igualdade racial, em geral, quase ninguém contesta abertamente sua validade. Entretanto, apesar dessa coincidência, sua aplicação mínima é inatingível em quase todo o continente americano e parte da Europa.

Pode imaginar-se, então, como era o desespero para a metade da Humanidade que os DH visam proteger, há menos de um século: as mulheres não tinham direitos formais nem reais. Ainda hoje, apesar de que a teoria dos DH tem sido estendida formalmente às mulheres, sua aplicação prática é ainda mais difícil que seu equivalente no caso masculino. Isso acontece porque, além da discriminação que existe nos empregos, na vida pública, na atividade intelectual, na política, a mulher é ainda explorada no lar e na vida sexual.

Como dizia o grande revolucionário vietnamita Nguyễn Sinh Cung, que nossa geração conheceu por seu nome de batalha Hồ CHÍ MINH (o que dá luz), nos duríssimos dias da luta daquele país por sua autonomia, a mulher sofre uma tripla opressão: “Ela é oprimida pelo sistema social, pelo clã e pelo marido”.

No obstante, a intuição dos Direitos de Mulher é muito antiga, e a primeira reivindicação dos Direitos Humanos em geral foram afirmados explicitamente, pela primeira vez, por uma mulher, Antígone.
 

O Desafio Feminino

Até o século 5º antes de Cristo, não havia sinais do protagonismo da mulher na vida pública, salvo por breves aparições em algumas comédias e tragédias. Tampouco ninguém tinha formulado o valor dos DH naturais, aqueles que, como dirá depois o jurista Ulpiano, “Deus dá a todos os animais e não apenas aos homens”.

Na Grécia Clássica, inclusive dentro de sua restrita democracia (que só atingia homens adultos, livres e não estrangeiros), a sociedade parecia pensar que os direitos formais gerados pelas guerras e pelo domínio de classe eram “naturais”. Afirmava-se que eram desse jeito porque não podiam ser de outro, e que ninguém poderia questioná-los, pois o direito de propriedade, de mandar sobre os outros, de punir os infratores da sociedade, eram direitos tão evidentes como os fenômenos naturais, tormentas e chuvas.

Entretanto, embora esta sacralidade do direito positivo era comum nos povos monoteístas, e se transformou em regra de ouro durante o  cristianismo, na Grécia pagã ainda existia um resquício para a liberdade, que o dramaturgo Sófocles (por volta de -450) personifica na heroína Antígona.

Polinices e Etéocles, órfãos de Édipo, rei de Tebas, brigam entre si pela herança do governo da cidade e ambos morrem na luta. Creonte, irmão de Édipo, assume o poder e permite enterrar o cadáver de Etéocles, mas não o de Polinices, que era considerado traidor, pois tinha sido ajudado por inimigos da cidade. Creonte aplicou o direito positivo da época que proibia o funeral de traidores. Antígona, irmã dos mortos, desafia a proibição do tio e tenta sepultar o corpo de Polinices. Creonte manda prende-la e lhe pergunta se ela tinha ousado desobedecer suas leis. Num parágrafo célebre, Antígona responde com um argumento que se tornou símbolo do direito à liberdade de consciência:

Sim, pois não foi Zeus que deu [essas leis]

Nem a Justiça, que habita com os Deuses subterrâneos,

Quem delineou estas leis para todos os filhos dos homens;

Nem eu acreditei que teus editais [fossem] fortes o suficiente,

Vindos de um homem mortal, para reduzir ao Nada

As leis imutáveis não escritas de Deus.

Elas não são de hoje nem de ontem,

Mas existem desde sempre, e não pode o homem afirmar

Quando apareceram

(Da versão de Harvard Classics,volume 8, parte 6, 493/501, traduzida por E. H. Plumptre.)

 Esta forma de pensamento de Antígone talvez teria conduzido a sociedade ateniense ao reconhecimento do valor da consciência acima da autoridade, do militarismo e do nacionalismo, já que o Deus a que ela se refere (Théus) é uma representação geral da gênese do Universo. Entretanto, alguns séculos depois, o cristianismo deu a Deus um caráter pessoal (interpretável pelos padres), tornando o direito natural numa forma arbitrária de direitos revelado. A Humanidade atrasou-se 20 séculos.

O filósofo inglês Stuart Mill (1806-1873), uma mente avançadíssima para sua época, denunciava que o sistema patriarcal era tão antigo como a humanidade, e escreveu um famoso livro sobre a opressão feminina:

http://www.constitution.org/jsm/women.htm

Mill percebeu que a condição feminina é uma forma de escravidão. Mas, outras formas de dominação semelhantes que ele não menciona (o militarismo e o classismo, por exemplo) foram geradas pelo mesmo método que a dominação da mulher: pessoas mais fortes, melhor armadas, mais rápidas, assumiram domínio sobre outras, e depois, sua opressão ficou justificada através de regulamentos e cumplicidades.

Em quase todas as culturas, a mulher ficou relegada à reprodução e ao lar, mas, apesar de sua falta de liberdade e de seu perfil discreto, a maior parte das religiões apresentou o feminino como nocivo e perigoso. Em poucas passagens da Bíblia se reconhece a importância de alguma mulher (como a juíza Deborah), mas em muitas outras, o feminino é tratado com desprezo. Por exemplo:

[Depois de uma batalha]. E se encontras entre os cativos uma linda mulher, e a desejas, deves apropriar-te dela e transformá-la em tua esposa – DT 21:11

Alguns sugerem que o Cristianismo teria favorecido à mulher, mas as passagens do Evangelho onde se demoniza o feminino são majoritárias. As singelas gentilezas de Lucas (8:13 e 23:27) e Mateus (27:55) ficaram esquecidas quando a Igreja assumiu o poder. A partir do século 12, o direito canônico enfatizou a “inferioridade” moral e intelectual da mulher. Anos depois, Santo Tomas adotou uma idéia de Aristóteles: o único gênero real é o masculino, pois a mulher é um “erro” da natureza (um erro esquisito que aparece um 50% das vezes). Não tendo raciocínio, deve manter silêncio e obediência ao homem, e ficar fora da vida pública. Aliás, deve ser castigada pelo marido por tê-lo afundado no pecado original. O direito canônico autorizava a bater nela e privar-la de comida, mas evitando matar-la!

As religiões reformadas reconheceram parcialmente o valor da mulher. No século 16, na Inglaterra, várias escritoras ficaram famosas, e a mesma Elizabeth 1ª promoveu a educação feminina. As religiões alternativas, espiritualistas e naturalistas, amenizaram as diferenças de gênero; o credo Bahá’i, fundado em Irão em 1844, defendeu a igualdade de direitos entre os sexos, além de combater o racismo, a homofobia e qualquer outro preconceito. Nos Estados Unidos a misoginia prevaleceu até o século 19. Os puritanos que governavam as colônias queriam repetir a experiência católica do terror inquisitorial. Um caso lembrado todos os anos junto ao túmulo das vítimas, é o massacre de 14 mulheres consideradas “bruxas”, na cidade de Salem (Massachusetts), entre 1692 e 1693.

Discriminação Antifeminina

A discriminação sofrida pelas mulheres está definida na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra Mulheres da ONU de 1979:

“Discriminação contra mulheres” designa qualquer distinção, exclusão ou restrição feita com base no sexo, que possua o efeito […] de diminuir ou anular o reconhecimento, desfrute ou exercício pelas mulheres […] (sobre a base de igualdade de homens e mulheres) de Direitos Humanos e liberdades individuais […] em qualquer campo.

A primeira reivindicação da militância feminista foi o voto. Em Ocidente, a conquista do direito de eleger e se candidatar estendeu-se lentamente, mesmo para a mulher branca: o primeiro país que autorizou o voto feminino (com restrições) foi a Suécia, em 1718, mas o último foi Portugal, apenas em 1976. Os direitos econômicos, como salário, emprego, etc., nunca foram totalmente atingidos. No caso do emprego, a ONU denunciou que em quase todos os países membros, as mulheres desfrutam de menos oportunidades que os homens. Nos Estados Unidos, fontes do governo afirmam que, apesar de que 50% dos mestrados são obtidos por mulheres, o 95% dos altos executivos nas maiores empresas são homens.

Em outros casos, a supremacia masculina se manifesta no controle familiar.  A família tradicional pode ter apenas um líder. Instituições repressoras, como o exército, algumas igrejas e os aparatos políticos apelam à importância da família para combater a diversidade. O pai de família tem a decisão final em todos os assuntos, mas a mulher deve inculcar os valores mais conservadores no dia-a-dia de seus filhos. A mulher também padece a falta de planejamento familiar. As religiões oficiais proíbem o planejamento, alegando que interfere nos desígnios divinos, enquanto nos estados totalitários ateus (como o chinês), o governo o impõe pela força.

Por uma razão ou pela oposta, a mulher é vítima. Mulheres sem parceiros assumem sozinhas a organização doméstica, mas, nos lares com ambos os conjugues, o compartilhamento de responsabilidade é geralmente ilusório. O marido costuma coagir à mulher para engravidar ou para abortar, a despeito de seu interesse e vontade.

A disposição do próprio corpo é a conquista mais difícil para a mulher de um lar patriarcal. Nos casos de “quebra feminina da monogamia”, o marido pode reagir com insultos, medidas legais e atos violentos. Nas culturas mais brutais (entre outras, Irã, Nigéria, Afeganistão), o estado pode executar à esposa “infiel”, mas inclusive em algumas regiões da América Latina, homens que assassinam suas mulheres por ciúmes podem ser absolvidos por juízes cavernícolas e ressentidos.

Dados de Anistia Internacional

Estes são dados do relatório 2004 de Anistia Internacional sobre violência contra mulher, baseados em fontes da ONU e da Organização Mundial para a Saúde:

Em algum momento de sua vida, 16,7% das mulheres sofrerão alguma ação violenta, e 10% serão vítimas de tentativa de estupro. Cerca de um 30% já foram espancadas, pressionadas sexualmente ou abusadas. Até 47% das mulheres denunciaram que sua primeira relação sexual foi forçada. Até 70% das vítimas de assassinato foram mortas por seus parceiros. Em Egito, 35% das mulheres denunciam ser espancadas por seus maridos em algum momento. Em Bolívia, 17% das mulheres com 20 ou mais anos tem sido vítima de violência no ano anterior. Vide a página de Anistia Internacional (em 4 línguas):

www.amnesty.org/en/library/asset/ACT77/034/2004/en/dom-ACT770342004en.html

A Origem do Feminismo

O feminismo é uma corrente formada por movimentos cujo ponto comum é a defesa de direitos justos para as mulheres. Ao dizer “direitos justos”, supomos que existe um critério de ética e justiça para determinar direitos. A afirmação usual de que devem defender-se “direitos iguais” é reacionária, pois alguns direitos dos homens são negativos, como servir no exército e trabalhar como carrasco.

Germes de feminismo aparecem na Modernidade. A igualdade de direitos (justos) foi aceita pelos Anabaptistas ingleses e pelos Quakers, que estimulavam às mulheres a manifestar-se sobre política e religião. Entre 1646 e 1649, um movimento popular chamado Leveller (Nivelador) organizou as primeiras grandes passeatas com cerca de 10 mil mulheres que exigiam liberdade de presos políticos, igualdade religiosa, fim da guerra, e direito ao voto universal.

Existem casos isolados de mulheres feministas desde o século 14º. Christine de Pizan (13631434?) foi criada na França, onde salientou como escritora, combateu a misoginia, e redigiu a primeira obra teatral onde todos os protagonistas são mulheres. Em 1622, a francesa Marie de Gournay (15651645) afirmou a igualdade intelectual entre homens e mulheres. A escritora sueca Hedvig Nordenflycht (17181763) reclamou  educação equivalente para ambos os gêneros e denunciou o casamento como forma de servidão. Mais influente foi OLYMPE DE GOUGES que assumiu a defesa teórica e prática da mulher.

MARIE GOUZE (17481793) dita Olympe de Gouges, militou na Revolução Francesa, da qual celebrou seu papel libertador, mas criticou seu caráter antifeminino. Em seus textos, que tiveram enorme popularidade, apresentava críticas políticas e sociais, e fazia propostas de incitação à luta. Sua DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DA MULHER E DA CIDADÃ (1791) foi idealizada como complemento da Declaração dos Direitos do Homem. Olympe teve uma visão muito completa dos Direitos Humanos também no combate ao escravismo, a cuja crítica dedicou a obra teatral A Escravidão dos Negros (1774), e se tornou militante da Sociedade Amigos dos Negros, fundada pelo matemático Jean A. de Condorcet (17431794). Esteve contra a execução de Luis 16, por achar cruel e desumana a pena de morte.

www.pinn.net/~sunshine/book-sum/gouges.html

A britânica Mary Wollstonecraft (17591797) escreveu romances, ensaios e livros para crianças. Ganhou celebridade com A Reivindicação dos Direitos da Mulher (1792), onde rejeita a inferioridade “natural” feminina. Foi a primeira que pôs em evidência um grande tabu: O RECONHECIMENTO DOS DESEJOS SEXUAIS DAS MULHERES.

Wollstonecraft influiu diretamente no surgimento da Primeira Onda feminista (1850-1920), identificada no Reino Unido e nos Estados Unidos pelo sufragismo. Em ambos os países, a Primeira Onda também exigiu direito a atendimento médico, educação e emprego, e estava formada basicamente por mulheres de classe média, brancas, com objetivos limitados.

Segunda e Terceira Ondas

A Segunda Onda (19601970) começa, em sua maioria, nos Estados Unidos. No início dos 60, suas ativistas batalharam contra a tradição de colégios separados para homens e mulheres, e conseguiram institutos mistos. No emprego, lutaram contra a demissão de mulheres que envelheciam ou casavam. No plano ideológico, denunciaram os estereótipos femininos na mídia: mulheres frágeis, religiosas, pouco inteligentes, assexuadas, etc..

A Segunda Onda conquistou alguns direitos sexuais, como o acesso aos anticoncepcionais e (em alguns lugares) à interrupção da gravidez. Conseguiu que o abuso sexual e o estupro fossem denunciados e que suas vítimas recebessem proteção. Parcialmente, obteve leis para o cuidado dos filhos de mães trabalhadoras, e punições contra o assédio sexual no local de trabalho. Esta onda interceptou com a Guerra de Vietnam (1959-1975), à qual suas militantes se opuseram energicamente. Em 1964, criou-se um movimento feminista muito amplo, o frente de Libertação das Mulheres (Women Lib), que foi criticado por seu estilo genérico e sua falta de ações concretas para mulheres pobres e negras.

Na metade dos anos 80 surgiu a Terceira Onda, que ainda mantém sua força. Típicos da Terceira Onda são: a diversidade, e solidariedade com outros movimentos, e a crítica ao paradigma universal de identidade feminina, extraído da mulher branca pequeno-burguesa. Promove às interações com outras etnias, classes sociais e culturas.

A Terceira Onda incorpora assuntos mais amplos e profundos, especialmente a sexualidade em todas suas formas, e questiona a divisão binária dos gêneros, entendendo o feminino e o masculino como estados fluentes. Esta fluência reativou a palavra “queer” (utilizada antes para referir-se a homossexualidade), para designar as pessoas e condutas que faziam parte dessa fluência e podiam mudar o padrão de gênero. Esta onda está marcada por propostas sociais bem definidas:

(1) Anti-Racismo. Milita na luta contra o racismo, e reivindica a compreensão dos problemas de outras etnias para articular um feminismo coerente. (2) Atitude pós-colonial. Considera a variedade de problemas femininos criados pelo domínio imperial nos países ex-coloniais. (3) Transnacionalismo. Equivale ao internacionalismo socialista: a luta deve ser comum a todos os oprimidos, ignorando as identidades nacionais. (4) Ecofeminismo. Ressalta a afinidade entre a opressão da mulher, o domínio sobre outras espécies vivas e, em geral, sobre o conjunto da natureza.

O movimento central dentro da Terceira Onda é o feminismo Sexualmente Positivo, que trata a sexualidade explícita como objeto de prazer e não como degradação machista. Afirma que a pornografia nem sempre é degradante, como tinha afirmado a Segunda Onda, pois, desde que seu conteúdo não promova o ridículo, os estereótipos ou a violência, deve ser entendida como a difusão de atos prazerosos, cuja condena implicaria estigmatizar a própria atividade sexual.

Esta onda desafia os preconceitos contra mulheres e outros grupos discriminados, e defende o direito sobre o próprio corpo e a própria sexualidade, reconhecendo a influência fundamental da etnia e da classe social na luta feminista. Sua militância se baseia no esclarecimento, a educação, a comunicação, e as ações concretas em relação com trabalho, saúde, cuidados das crianças e reprodução.

A Luta pelos DH das Mulheres

Os movimentos feministas mais avançados trocaram solidariedade com outros movimentos e grupos, atingindo uma cooperação estável a partir da Terceira Onda. Isso fez possível a atual inclusão, pelo menos teórica, do gênero feminino dentro das conquistas dos DH. Vamos a apresentar uma tabela onde se mostram algumas destas relações de solidariedade.

Movimentos e Outros Grupos Solidários Externos com o Feminismo

Tipo de Grupo ou Movimento

Formas de Atuação

Exemplos

Homens Isolados ou em Grupos

Colaboração com movimentos feministas. Palestras, escritos, educação, discussões públicas ou privadas.

O sociólogo americano Michael Kimmel.

Movimentos de Esquerda

Defendem o feminismo como resistência à exploração das massas populares. Aproximam os sindicatos das mulheres, e propõem leis para a igualdade de gênero.

O Partido Social-Democrata da Alemanha até 1930.

Movimentos Anti-Racistas

Forjam a solidariedade entre os três componentes da luta humanitária: anti-sexismo, anti-racismo e anti-classismo.

O Partido das Panteras Negras, na Califórnia de 1960

Movimento de Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros

Unificam suas protestas e reclamações de direitos com as mulheres em geral, com independência da orientação sexual específica.

Coalition of African Lesbians (Johannesburg, África do Sul, 2007).

Movimentos de Libertação e Democratização de Países Subdesenvolvidos

Lutam para liberar as mulheres das aberrações de algumas culturas, como as punições familiares, as limitações da vida sexual, as mutilações rituais.

Golden Needle Sewing School (Afeganistão, 1996).

O Reconhecimento dos DH das Mulheres

Os políticos aprovaram o sufrágio feminino porque esperavam receber votos como amostra de gratidão (como aconteceu no Chile, onde forças católico-fascistas ganharam as eleições municipais de 1935 graças ao voto das mulheres), mas se mostraram menos sensíveis com os outros direitos. A integração de gênero nos colégios foi demorada e parcial. Os empregos para mulher aumentaram na Europa e nas Américas, porque o sistema necessitava mais mão de obra, mas os salários não foram igualados. Medidas humanitárias, como salário família e licença maternidade só foram implantadas pela insistência de legisladores de esquerda.

Teoricamente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 protegia de mesma maneira os direitos de homens e mulheres, mas na prática, os movimentos feministas deveram pressionar durante décadas para que a ONU assumisse seriamente sua causa. Desde 1975, a ONU celebrou várias conferências sobre as reivindicações femininas e em 1979, apresentou uma Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contras as Mulheres (CEDAW), um detalhado documento com 30 artigos contra as discriminações mais conhecidas.

Os Estados participantes condenavam todo preconceito, prometendo sua eliminação jurídica, a criação de organismos para problemas femininos, e a revogação de leis, hábitos e práticas discriminatórios. Esta medida visava eliminar costumes bárbaros, como o dote ou a virgindade nupcial, o que irritou às sociedades onde estas práticas eram comuns.

Sob a expressão “medidas especiais de caráter temporário”, o artigo 4º da Convenção estimula a adoção de ações afirmativas por parte do estado.

A Convenção previu ações educativas gerais para modificar preconceitos e estereótipos, e ações educativas familiares para ensinar aos homens e às mulheres sua responsabilidade conjunta no desenvolvimento dos filhos. Também obrigava os países membros a perseguir o tráfico de mulheres e a exploração da prostituição.

O Artigo 10º exigia eliminar a discriminação nos estudos, e garantir acesso equivalente a escolas, faculdades, bolsas, cursos de aprimoramento e aplicações em todos os níveis, e atacar os estereótipos profissionais que dividem os gêneros, revisando livros, programas, planos e métodos que veiculam esses preconceitos. No plano do emprego, a Convenção propôs a igualdade de gênero na escolha de profissão, e no direito a salário, promoção, capacitação e às diversas formas previdência, incluindo saúde e férias. Veja:

www.direitoshumanos.usp.br/counter/Onu/Mulher/texto/texto_3

www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/mulher/lex121.htm

Esta Convenção foi ratificada por vários estados, mas apresentou menor nível de aceitação que qualquer outro instrumento da ONU, e foi alvo de reservas em artigos importantes por mais de 20% dos aderentes. Em 1999, a Comissão da Situação da Mulher da ONU apresentou o Protocolo Opcional da CEDAW, no qual se providenciam métodos para o controle do cumprimento da Convenção e para a investigação das infrações. Este Protocolo, porém, encontra ainda maiores resistências que a própria Convenção.

Portanto, a luta, inclusive jurídica, pela emancipação de mulher, continua agora com maior vigor do que nunca. Como disse Lênin durante a Revolução Bolchevista, nenhuma sociedade será livre se só for livre uma metade dela.

Os Direitos Humanos e a Proibição da Burka

 

 

Em notas recentes, motivadas pela violenta reação das castas armadas contra o PNDH-3, falamos do militarismo como o maior inimigo dos DH. Não devemos esquecer, porém, que a voz da caserna não está sozinha, e que, como aconteceu quase sempre na história, tem a cumplicidade da teocracia. A Igreja Católica também vitupera o projeto, colocando ênfase maior em assuntos vinculados com homoerotismo, aborto e propaganda religiosa. Não entendemos a relevância para a Igreja da existência de crucifixos nas delegacias e nos juizados. Será que, quando um favelado é apressado pela polícia, é mais doce receber choque elétrico observando a imagem de Cristo martirizado? Será que a presença daquele enorme crucifixo no STF faz menos dura a condena das mulheres que não podem abortar, porque uma casta de leguleios medievais e sádicos o proíbe?

Por enquanto, nesta nota quero referir-me a um problema relacionado com a iconografia religiosa num tom menor: é o que surge quando os símbolos confessionais não são exibidos pelas instituições públicas, mas pelos cidadãos comuns.

Burka e Chador

Faz tempo que o conservador moderado Nicolas Sarkozy propõe que o parlamento francês impeça, pela força da lei, que mulheres islâmicas utilizem a burka em locais públicos. www.bbc.co.uk/blogs/thereporters/gavinhewitt/2010/01/french_burka_ban_looms.html

No 28/01/2010, uma comissão desse parlamento, que estudava o uso da burka e o niqab por umas 1900 mulheres islâmicas residentes na França, entregou seu relatório final. Este não defende a proibição absoluta, mas aconselha sua veda em instituições públicas, como hospitais, escolas, escritórios do estado, etc. Veja:

http://pt.euronews.net/2010/01/26/comissao-parlamentar-francesa-recomenda-proibicao-da-burqa

O parlamentar de esquerda, Andre Gerin, propunha que a proibição fosse absoluta em todos os locais públicos, mas o alcance da proposta só ficará bem conhecido depois que o parlamento vote uma lei oficializando essas idéias. O líder do governo no parlamento (de centro-direita) Jean-Francois Cope, afirma que esta iniciativa defende os direitos das mulheres. Ele disse a um editor da BBC inglesa:

“Pensamos que em nosso país, o rosto é o veículo pelo qual as pessoas se reconhecem, simpatizam, e se respeitam mutuamente. O problema é a ocultação do rosto.”

O ministro Xavier Bertand, do partido do governo, entende que burka ou niqab são uma prisão para a mulher, que não consegue comunicar-se , exibir seu sorriso, socializar-se com pessoas da mesma ou diferente tradição cultural, fazer amizades.

Em outros países europeus tipicamente seculares, como a Holanda e a Dinamarca, foram lançadas iniciativas parlamentares inspiradas no caso francês. Antes que a questão fosse levantada na França, já o UK tinha proibido esta indumentária nas escolas.

Entretanto, é injusto qualificar de intolerante o racista o projeto francês, que foi exaustivamente explicado por parlamentares tanto da esquerda como da direita moderada. Se o objetivo fosse amedrontar os islâmicos, o projeto poderia proibir também o chador, que constitui uma peça de indumentário do mesmo caráter classista, machista e discriminatório, mas que permite ver o rosto e, portanto, diminui a humilhação da mulher. Pelo pouco que eu conheço da cultura oriental, acredito que não há motivo para poupar tampouco o chador, que já tinha sido banido pelo conservador xá Pahlavi, considerando-o uma forma arcaica de domínio masculino.

Relativismo Cultural e Atrocidades

Vários cidadãos islâmicos e também alguns não islâmicos rotulam a iniciativa de proibir a burka de discriminação e intromissão na vida privada dos estrangeiros. O argumento de que essa proibição mostra a desconfiança contra os muçulmanos, expressadas por alguns fascistas delirantes (no sentido de que a burca permitiria esconder armas no corpo de mulheres terroristas) não merece a menor atenção. Não é provável que o governo francês seja vítima de um pensamento tão descabido.

Outros resgatam o uso da burca, por ser um objeto tradicional em alguns países islâmicos, e representar, portanto, a cultura e os costumes dessas regiões; porém, a maioria não aprova a obrigatoriedade de seu uso imposta pelo Talibã. Este tipo de raciocínio é muito conhecido desde a década de 1950 e corresponde a um relativismo cultural surgido como reação polarizada à imposição de hábitos coloniais pelos países imperialistas. Talvez nem precise comentário o fato de que a diversidade e tolerância cultural que procuramos não serão obtidas aceitando as tradições humilhantes, desumanas e sangrentas, seja de Oriente, seja de Ocidente, mas criando um convívio diversificado de hábitos solidários e saudáveis, que possam construir uma sociedade mais livre e racional.

Seria simplista ver a tradição da burka apenas como uma moda ritual. Embora não seja mais que uma vestimenta, sua função protetora está relacionada com tradições cruéis e supersticiosas. Na Ásia Central, a burca serve para proteger o namus (algo assim como honra) da família nuclear de um homem, mas também (no caso dos pashtum) para defender a honra da família estendida.  O namus é violado quando uma mulher comete alguma falta ao recato e inclusive quando é estuprada involuntariamente. Nesse caso, a família não se solidariza com a vítima, pois todos eles se consideram ofendidos. A solução que nunca é leve pode variar dependendo do lugar. Em Afeganistão, predomina a tendência a obrigar à menina “desonrada” a se suicidar; no Irã, o apedrejamento; na Arábia Saudita, a decapitação, e no Paquistão, a deformação de seu rosto com ácido.

Não precisa ser salientado o nível ético de qualquer um que defenda estas atrocidades em nome da soberania, da integridade cultural de um povo ou da luta contra o imperialismo.

É evidente que ninguém pode gostar desta vida, como o provam, aliás, os livros que mulheres árabes publicam em Ocidente. As moças que mostram resignação ou até defendem os brutais hábitos de indumentária (não os de tortura) tiveram sua “cabeça feita” durante anos, e temem pela ira dos maridos e familiares.

Depois da derrota do Talibã, muitas mulheres se lançaram à compra de cosméticos para assemelhar-se às ocidentais, e existem muitos vídeos que mostram um novo perfil da moça afegã. É impossível saber o efeito sobre as mulheres da invasão aliada em Afeganistão, já que sua opinião não recebe qualquer atenção. Mas é provável que vejam como salvador a qualquer inimigo do Talibã e outros marqueteiros da burca. Por sinal, foi isso o que aconteceu na década de 20, quando os bolchevistas entraram na Ásia Soviética Islâmica liberando as mulheres do uso daquelas roupas.

Não estou sugerindo que exista em Oriente uma especial tendência a barbárie ritual que seja desconhecida em Ocidente, pois os DH assim como as suas violações são universais. Os defensores dos DH também combatem as barbáries ocidentais semelhantes, como a repressão da mulher que a Igreja injetou em muitas gerações, e ainda injeta hoje nos ambientes mais atrasados. A diferença é, apenas, que os países ocidentais (especialmente a França) conseguiram reagir contra a teocracia, enquanto os orientais não puderam.

Política e Direitos Humanos

As razões para proteger as mulheres islâmicas da humilhação e do domínio masculino podem ter, como qualquer ação tomada por políticos e governantes, motivações espúrias, mas o efeito visível é um aumento no respeito a seus DH.

O aspecto político foi comentado por vários parlamentares. Sendo que atualmente a comunidade islâmica da Ásia e do Oriente Médio adquiriram uma visibilidade antes desconhecida, os governos estão preocupados pela possível criação de culturas internas, incomunicáveis, que não mantenham interação. Além do óbvio interesse estratégico e político, a medida de evitar a divisão da sociedade em compartimentos estancos, como nos Estados Unidos, possui um valor humanitário.

Pode deduzir-se das declarações de intelectuais, políticos e celebridades francesas e do próprio Sarkozy, que a proibição da burka visa estes objetivos:

  1. Evitar a segmentação da sociedade em subnacionalidades independentes, o que aumentaria o “bairrismo” e criaria novas formas de chauvinismo.
  2. Manter a neutralidade religiosa, que não é afetada pelo porte discreto de símbolos religiosos (cruzes, crescentes, estrelas de David em jóias e enfeites), mas que é desafiada pela exaltação provocativa de pessoas soturnamente fantasiadas.
  3. Desterrar da contemplação pública um símbolo que caracteriza a escravidão patriarcal sobre as mulheres, e representa implicitamente graves atrocidades.
  4. Contribuir à integração das mulheres islâmicas no mundo Ocidental, as livrando, não apenas do sofrimento psicológico de aceitar uma aparência bizarra, mas da dor concreta de estar separadas do meio ambiente.

Ninguém será livre nem terá DH, se sua vida pessoal for monitorada desde o Vaticano, Jerusalém ou Meca, com base nos esotéricos “conhecimentos” codificados por uma casta de alucinados, que acreditam receber ordens metafísicas. Os dirigentes islâmicos, cujos países são brutalmente arrasados pelos Estados Unidos e a Nato, produzindo a morte de famílias e condenando povos completos à desaparição, aumentam ainda mais a desgraça da população e colaboram com o imperialismo ao infernizar a vida de suas próprias mulheres.

Por outro lado, é deplorável que pacifistas e defensores dos DH apliquem o que se chama a filosofia do tango, em referência a um assunto que aparece sempre nos tangos argentinos. Tudo vale o mesmo, tudo é igual, em todo lugar tem maldade. Esse nihilismo só tem sido paralisante na história do mundo. Os países ocidentais não têm povos melhores que os outros, porque todos os povos são iguais. Mas tiveram uma oportunidade histórica melhor: a de desvencilhar-se (muito parcialmente) da tirania teológica. É por isso que usufruímos (algo mais) de DH que os orientais.