Primeiro que tudo, precisamos fazer um esclarecimento de vocabulário: trata-se da palavra”espírito”. Em português, como em todos os idiomas europeus, a palavra espírito sugere imediatamente o contrário de matéria. O fenômeno vem de longe. As nossas palavras são herdeiras das palavras gregas e latinas e seu significado foi forjado pela mentalidade dos gregos e dos romanos. Desde então as estruturas fundamentais da linguagem européia e, portanto, do pensamento europeu não mudaram.
Espontaneamente, o “espírito” evoca a idéia de não-matéria, imaterial. E bem sabemos que no pensamento moderno somente vale o material: as realidades que se apresentam como imateriais parecem não ter o mesmo valor de realidade. Imaterial sugere algo etéreo, menos real, ou totalmente privado de realidade. Essa estrutura do pensamento moderno desprestigia a palavra “espírito”. Quando se fala em “valores espirituais”, todo o mundo imagina que está falando um burguês numa reunião do Rotary ou do Lions Club, depois de uma abundante ceia com bons vinhos e comidas finas: para o povo em geral, “valores espirituais” equivale a “palavras ocas”. Com efeito, os discursos dos burgueses ou dos políticos são ocos. Pronunciam muitas palavras para dizer nada.
Com certeza, o Espírito Santo sofre um grande desprestígio por causa do seu nome. Infelizmente, não existe outro disponível em nossa linguagem. Este é mais um caso em que aparece claramente que os idiomas europeus, derivados do grego ou do latim, são radicalmente inadequados às realidades cristãs: não têm palavras para exprimir o pensamento de Jesus Cristo. Jesus sempre falou idiomas semíticos: falava aramaico e conhecia a língua hebraica em que estava escrita a Bíblia. Foi um grande problema para os apóstolos a tradução da sua`mensagem para o grego e . depois, para o latim: o mesmo problema que temos com a tradução portuguesa que tem a estrutura do grego e do latim. Temos muitas traduções da Bíblia em português justamente porque nenhuma traduz exatamente o pensamento original e nenhuma o traduzirá no futuro, pelo menos nas línguas européias. Pode ser que ó árabe seja mais adequado porque pertence à mesma família da língua de Jesus.
Tudo isso serve para dizer que o nome não deve enganar quando damos à terceira pessoa da Santíssima Trindade o nome de “Espírito”, queremos dizer exatamente o contrário daquilo que o nome evoca. Conforme as palavras semíticas a nossa palavra “espírito” significa a força de Deus, uma força de tempestade, como a força do vento, a força do temporal, aquela que se manifestou no dia de Pentecostes. Quando a Bíblia diz que o Espírito estava ou desceu na pessoa de Davi, ou de Elias, ou dos profetas, isto significa que a força de Deus estava neles, que havia neles uma força inaudita, uma força nova, que vinha diretamente de Deus, que era a própria força de Deus, a força pela qual Deus tinha feito o mundo.
Ao prometer e anunciar a vinda do Espírito, Jesus abre o caminho para a entrada da força de Deus: o força que criou o mundo e volta a esse mundo para refazê-lo, para completá-lo e levá-lo ao seu destino final. Neste capítulo queremos meditar o fato central, o efeito central da vinda do Espírito: a formação ou a re-formação do povo de Deus. O Espírito faz um povo, aquele povo que fracassou no antigo povo de Israel. Todo o resto da sua atuação no mundo se explica a partir desta finalidade principal.
Na realidade, a missão do Espírito é muito diferente da missão de Jesus no sentido de que esta foi muito limitada no tempo, foi uma missão brevíssima, e a missão do Espírito Santo se estende ao longo da história: o Espírito entrou na história para nunca mais sair dela. Iniciou a história do povo de Deus e nunca mais desistirá de continuá-la.
Em verdade, o povo já existia antes de Jesus e Jesus pertencia a ele: foi criado nos tempos referidos pela Bíblia, e o próprio Antigo Testamento é a história do povo nos séculos que precedem a vinda de Jesus. Quando Jesus veio, viu que o seu povo tinha sido desviado e corrompido profundamente: já não era o povo de Deus que devia ser. Veio dar um impulso definitivo para tirar o seu povo dos limites da raça, da cultura e do território da Palestina, e para fazê-lo alcançar o tamanho do verdadeiro Israel, destinado a envolver todos os povos da terra.
Para que a expressão “povo de Deus” seja bem entendida, precisamos fazer outra advertência. Embora o povo de Deus seja o que s. Paulo chama de “igreja”, isto é “assembléia” no sentido profundo em que ele usa a palavra, não podemos reduzi—lo àquela realidade à qual damos o nome de Igreja na linguagem comum. Pois a linguagem comum usa a palavra igreja para designa o sistema institucional dirigido pelos sacerdotes, pelos bispos e pelo Papa. Esta Igreja tem com toda certeza um papel a cumprir dentro do povo de Deus e está chamada a assumir uma função de mediação a serviço do povo de Deus, mas ela permanece ambígua. Este aparelho institucional da Igreja tem a vocação de servir o povo de Deus, ajudando-o na sua promoção na história, mas por outro lado não deixa de ser traidor a sua vocação, servindo interesses mesquinhos, entre os quais o mais forte é a própria segurança e os meios materiais ou políticos que acha conveniente para garantir essa segurança.
O povo de Deus não é pura metáfora: á um verdadeiro povo. Podemos dizer que é o único verdadeiro povo, embora seja muitas vezes escondido, um povo principiante, um povo de esperança mais do que de presente. Pois os povos atuais das diferentes nações do mundo mal merecem o nome de povo. Pode-se dizer que existe realmente um povo brasileiro ? Povo quer dizer comunidade de seres humanos que tomam consciência de sua unidade com os seguintes sinais : afirmação de si, organização, autonomia na ação, direitos e responsabilidades assumidas por todos os membros. Povo é o contrário de massa. Num povo as elites e a multidão estão articuladas de modo harmonioso para o bem de todos. Em todos esses sentidos pode-se dizer que existe o povo brasileiro ? Existe, sim, uma aspiração em muita gente para ser um dia um povo. Mas esse povo ainda não existe.
Se examinarmos o que há no fundo da aspiração dos brasileiros para serem realmente povo, veremos que não há nada que o separe dos outros povos. Os povos não aspiram a uma existência separada, mas o povo verdadeiro deseja a unidade do mundo inteiro, no respeito mútuo das diferenças que não requerem, de modo algum, separação e, menos ainda, rivalidade. O papel dos Estados seria unir uma porção do povo determinada por uma terra com as outras porções para formar um só povo. Um só povo é a aspiração de Jesus passando por cima de todas as fronteiras. Na prática muitas vezes os Estados fazem o contrário: separam.
Isto quer dizer que, no fundo da aspiração de todos os povos , há uma aspiração para ser o único povo de Deus, um e diverso, reunião de todas as culturas do mundo. Esse povo de Deus, povo real e verdadeiramente humano, é criação do Espírito, obra própria do Espírito enviado por Jesus e também fim da obra de Jesus, já que a sua missão culmina no envio do Espírito. O processo de formação do povo de Deus é o fundo do qual brotam todas as aspirações e os movimentos das multidões humanas atualmente divididas em nações para formar povos no sentido autêntico da palavra porque todos unidos.
Jesus e o povo de Deus
Tudo quanto o Espírito realizará no povo de Deus para desenvolver esse povo estava prefigurado na ação de Jesus. Pois Jesus delineou claramente pelas obras e pelas palavras o que devia ser esse povo, embora não tenha feito nenhum plano abstrato.
As ações e os discursos de Jesus poucas vezes são dirigidos a pessoas particulares. Jesus habitualmente não fala para pessoas isoladas das outras. O que ele falou na intimidade não foi conservado pela tradição porque não tinha importância. Pelo contrário, os evangelistas mostram que Jesus foi uma pessoa pública, que fala em público para o povo. Sua preocupação fundamental não é a salvação de almas isoladas e sim o povo de Deus, o verdadeiro povo de Israel.
Melhor dito : Jesus vê em torno dele massas abandonadas e sabe que elas são chamadas à condição de povo de Deus. A sua intenção é fazer delas o verdadeiro povo de Deus.: “Ao ver a multidão ,ficou profundamente penalizado,porque estava fatigada e estendida por terra como ovelhas que não têm pastor”(Mt 9,36).
Jesus tinha consciência de que era o último na linha dos profetas. A missão dos profetas tinha sido esta: lembrar ao povo de Deus as suas origens, a sua missão e mostrar até que ponto a realidade de Israel estava distante da sua vocação. Ora, Jesus não era um profeta qualquer: não veio somente para denunciar e anunciar, mas para fazer: para promover o advento do povo verdadeiro além dos limites estreitos da terra de Israel e da Lei de Moisés, e para libertá-lo dos obstáculos que as elites de Israel tinham colocado no seu caminho.
Para Jesus, o problema do povo de Deus são as barreiras: sacerdotes, doutores, fariseus, todos levantam barreiras e excluem do povo de Deus multidões de abandonados no mundo inteiro. Cada categoria invoca pretextos: essa massas abandonadas são pecadores, ignorantes, mal educados, miseráveis, rebeldes, pagãos, supersticiosos, não observam os preceitos, não oferecem sacrifícios, não são devotos, etc.
Na mente de Jesus, o verdadeiro problema do povo de Deus não consiste em rejeitar e excluir todos esses excluídos. Muito pelo contrário, o problema consiste em abrir as portas a todos aqueles miseráveis, até muito além das fronteiras do Israel histórico. Abrir as portas e convocar a todos: esta é a missão de Jesus. Exatamente como na parábola (Lc 14,15-24).
Por isso é que Jesus descreveu a sua missão da seguinte maneira: “Não fui enviado senão as ovelhas perdidas da casa de Israel”(Mt 15,24).. Ele próprio mostra aos discípulos uma missão semelhante: “Ide às ovelhas perdidas da casa de Israel”(Mt 10,6). São todas aquelas que os sacerdotes, os doutores, os poderosos eliminaram dol Israel restringido por eles. As primeiras vítimas são todos os outros povos tratados como pecadores, e excluídos.
Os atos de Jesus manifestam a continuidade com esse propósito. Na realidade os seus atos constituem uma inversão completa dos processos estabelecidos em Israel naquele tempo..Para os sacerdotes, o problema é que o povo não comparece como devia no templo, não oferece os sacrifícios devidos. Para os fariseus, o problema é que o povo não observa todos os mandamentos, não pratica as obras de piedade e devoção e não tem conduta moral.. Para os anciãos das grandes famílias, o problema é que o povo perdeu o respeito à autoridade. Para os herodianos, o problema é que o povo não entende as necessidades políticas e se deixa enganar pelas ilusões revolucionárias. E para Jesus, qual é o problema?
O problema é simplesmente que existem sacerdotes, doutores, fariseus, anciãos e outras falsas elites que são falsos pastores que afastam o povo em lugar de reuni-lo, que o deixam com fome em lugar de levá-los para a vida, que excluem em lugar de incluir.. Jesus vem para fazer o contrário dos outros: para desfazer o que fazem os sacerdotes, os doutores e os outros falsos pastores; Jesus vem romper as barreiras, todas essas precauções levantadas por uma falsa prudência humana, e chamar os pecadores, os rejeitados de toda espécie. Vejamos o que dizem os evangelhos. Tudo o que Jesus faz diz respeito a essa luta contra as elites e a essa aproximação das massas abandonadas que esperam que alguém as levante.
Por isso, a atividade de Jesus é uma parábola admirável de toda a história ulterior do povo de Deus.
O povo de Deus vai repetir sem fim os mesmos gestos, as mesmas iniciativas, o mesmo debate entre elites e massas. Sempre a Igreja vai ser movida pelo Espírito para não ceder ao medo e à falsa prudência dos judeus contemporâneos de Jesus. Sempre os verdadeiros discípulos vão procurar imitar a Jesus na sua aproximação de tudo aquilo que está perdido. O trabalho do Espírito se acha prefigurado, e também inaugurado por esse trabalho de Jesus.
Tal continuidade não surpreende já que Jesus e o povo de Deus receberam o mesmo Espírito. O Espírito quis mostrar em Jesus qual era o seu plano, o seu projeto, a sua obra para orientar os séculos seguintes até o fim da história.
Como um profeta, como a pessoa em quem culmina toda a história dos profetas, Jesus recebeu a investidura do Espírito: a força de Deus estava com ele. S.Lucas mostra essa investidura de Jesus pelo Espírito desde a sua conceição (Lc 1,35). O batismo de Jesus foi como uma renovação da investidura profética na iminência do momento em que ele ia começar a sua missão (Lc 3,22). Depois disso “cheio do Espírito santo, voltou Jesus do Jordão e foi enviado pelo Espírito ao deserto (Lc 4,1). Depois das tentações no deserto, “regressou Jesus à Galiléia com o poder do Espírito (Lc 4,15). Entrou na sinagoga de Nazaré e leu o texto famoso de Is 61,1-2) tantas vezes lembrado em nossos dias: “O Espírito d Senhor está sobre mim porque ele me ungiu para levar a boa nova aos pobres, etc.”(Lc, 4,18). Esse texto foi adotado por Jesus como programa: ele se sabia enviado pela força do Espírito e sabia qual era a direção para a qual o Espírito o enviava. Isaias já havia anunciado tudo.
Contudo, Jesus tinha consciência dos limites da sua missão. Sendo homem Jesus era limitado no tempo e no espaço. Era um ser situado. Estava situado n o povo de Israel tão maltratado pelos que deviam ser os seus guias, mas sabia que n o meio do seu Israel, sobretudo nas terras pobres da Galiléia estava presente o resto do verdadeiro Israel e com esse resto ia assumir a promessa feita a Abraão. Ele podia dispor de três anos. Depois dele outros iam continuar a sua missão.
De certo modo ele ainda pertencia ao Antigo Testamento: sua atividade se achava delimitada pelo povo do Antigo Testamento. Ele próprio disse aos discípulos: “convém a vós que eu vá; se não for, não virá a vós o Defensor ( o Espírito); mas se eu for, vo-lo enviarei”(Jô 16,7)
Diante das palavras e dos comportamentos de Jesus, as elites de Israel ficam perplexas e aborrecidas. Também as elites de todos os tempos. Elas procuram exegetas e teólogos que lhes expliquem que não se deve tomar tudo ao pé da letra, que Jesus fala como oriental que sempre exagera na linguagem. Nunca faltaram exegetas e teólogos para restaurar a tranquilidade das elites da sociedade e para explicar que não devem levar a sério o que está escrito nos evangelhos. Pois eles sabem melhor o que Jesus quer mesmo. Na realidade, se se tomam literalmente os comportamentos de Jesus, parece que levam a uma utopia total, uma anarquia total.. Ele perdoa tudo, aceita tudo, abre as portas para todos. Os “prudentes” perguntam-se : “O que é que vai acontecer agora ?” Essas elites podem descansar em paz : porque sempre terão a força suficiente para crucificar todos os que incomodarem. Além disso nunca permitirão que os discípulos de Jesus comecem sequer a repetir o que Jesus disse ou fez.. Uma vez pareceu que haveria uma exceção : foi quando Francisco de Assis e os seus companheiros começaram a imitar a vida de Jesus. Logo os “prudentes” tomaram conta da experiência e os franciscanos deixaram de incomodar. Estudaram a teologia que lhes explicou que Jesus queria dizer o contrário daquilo que os evangelhos contam. Desde então a Igreja institucional conseguiu evitar a repetição de tal excesso.
A ação de Jesus ia muito além de todos os programas de reforma política ou social: as revoluções políticas e sociais são imediatamente limitadas pelo necessário “realismo” dos dirigentes que devem levar em conta as condições reais da humanidade. Jesus lançou um movimento irrealizável em forma de programa: contudo é um movimento que vai fermentar e que ainda não acabou de fermentar e produzir tentativas de encarnar na realidade histórica aquele projeto de povo de Deus.
José Comblin nasceu em Bruxelas (Bélgica), no dia 22 de março de 1923, sendo o mais velho de 3 irmãos e 2 irmãs. Seus pais Alice e Firmino criaram os 5 filhos com os tradicionais valores da religião, da austeridade da época e valorizando sempre o trabalho.
Freqüentou o curso primário na escola paroquial e fez o curso secundário no Colégio São Pedro. Em 1940, entrou no Seminário Leão XIII, em Lovaina (Bélgica). Fez estudos de Ciências biológicas e filosofia de 1940 a 1942. Ingressou no Seminário São José em Malinas (Bélgica), em 1943 e fez o 1o ano de teologia. Em 1944, entrou no Seminário Maior de Malinas e cursou o 2o e o 3o ano de teologia.
De 1946 a 1950, cursou a Faculdade de Teologia em Lovaina, tornando-se Doutor em teologia, Sua ordenação sacerdotal se deu em 9 de fevereiro de 1947, em Malinas. Como sacerdote, exerceu a função de vigário cooperador na paróquia Sagrado Coração de Jesus, em Bruxelas, de 1950 a 1958. Além disso, foi professor de teologia no CIBI (centro de formação para seminaristas em serviço militar), Bélgica, durante o ano de 1951.
Impulsionado pelos apelos missionários para países da África e da América Latina, solicitou ao seu Cardeal, ser enviado para a América Latina. Atendendo à solicitação do Bispo de Campinas que desejava sacerdotes doutores para contribuir na formação de seu clero, foi enviado para o Brasil, onde chegou em 30 de junho de 1958. De 1958 a 1962, em Campinas, SP, foi professor no seminário diocesano e na Universidade Católica de Campinas. Além disso, foi convidado para ser assistente diocesano da JOC (juventude operária católica). Em 1959 foi professor no Studium Theologicum dos Dominicanos em São Paulo.
Novos apelos levaram o Pe. José Comblin ao Chile. De 1962 a 1965 foi professor na Faculdade de Teologia da Universidade Católica de Santiago (Chile). Também o Brasil vivia sob a ditadura militar, mas no Nordeste florescia uma Igreja comprometida com o mundo dos pobres e Comblin ouviu o chamado do grande pastor e profeta Dom Hélder Câmara e foi estabelecer-se em Pernambuco.
De 1965 a 1968 foi professor no Seminário regional do Nordeste em Camaragibe e professor no Instituto de Teologia do Recife. No início dos anos 70 passou a orientar uma experiência de formação de seminaristas que buscavam um estudo mais comprometido com a realidade e adequado ao exercício do ministério no mundo rural. José Comblin criou, então, um modo de estudo que depois ficou conhecido como Teologia da Enxada.
Ao mesmo tempo foi convidado a dar aulas no Equador e assim, de 1968-1972 foi professor de teologia no IPLA (Quito, Equador). Passou a dar assessoria á diocese de Riobamba, cujo bispo, Dom Leônidas Proaño foi um símbolo do compromisso com a causa indígena no Equador. Até 1985 passava duas quinzenas por ano em Riobamba e continuou freqüentando a diocese até a morte de Dom Leônidas Proaño, em 1988.
Passou, ainda, a lecionar teologia pastoral na Faculdade de Teologia da Universidade Católica de Lovaina (depois, Louvain-la –Neuve), cargo que exerceu de 1971 a 1988. José Comblin estava fortemente inserido na Igreja de Dom Hélder que marcava o cenário nordestino e nacional pelo seu compromisso com as causas populares. Dava assessoria a Dom Hélder na elaboração de posicionamentos, documentos e intervenções. A Igreja de Recife e Olinda era uma grande esperança para os pobres. Considerado subversivo e ameaçador a sistema, José Comblin foi expulso do Brasil em 24 de março de 1972.
Decidiu, então, retornar ao Chile, onde já tinha atuado por 4 anos e contava com um círculo de amigos. Assim, estabeleceu-se em Talca onde residiu de 1972 a 1980. No entanto, pouco tempo depois, em 1973, ocorreu o golpe militar no Chile com a deposição e o assassinato de Allende. Diante disso, deixou o ensino para evitar chamar a atenção. Dava suas contribuições intelectuais inclusive ao Vicariato da Solidariedad de Santiago, única instituição que enfrentou o ditador Pinochet na questão das torturas e dos desaparecimentos durante o regime militar.
Para o Vicariato da Solidariedad, José Comblin escreveu o seu estudo sobre a Ideologia da Segurança Nacional, a doutrina dos ditadores militares da América Latina. Durante o tempo que permaneceu no Chile, suas contribuições foram:
A Fundação do Seminário Rural, em 1979, em Alto de Las Cruces, Talca: experiência de formação ao sacerdócio de jovens do meio rural respeitando a sua cultura camponesa. Outra colaboração foi o curso de formação para professores de religião: fundamentos bíblicos e teológicos para uma clientela de professores e lideranças populares. Em 1980 ocorreu a sua expulsão do Chile. Conseguiu retornar ao Brasil, com visto de turista que exigia renovação a cada 3 meses, o que o obrigava a sair do país a cada 3 meses durante 6 anos, para renovar o visto. Finalmente, em 1986 foi anistiado e recebeu novamente o visto permanente.
Com o grupo da Teologia da Enxada e o apoio do Arcebispo Dom José Maria Pires, de João Pessoa, fundou, em 1981 no Avarzeado, PB, o Seminário Rural. Posteriormente denominado Centro de Formação Missionária, a experiência estabeleceu-se em Serra Redonda, PB. Teve o objetivo de formar sacerdotes e missionários populares para a evangelização da população rural, com uma metodologia adequada e levando em consideração e cultura camponesa.
A partir de então, passou a dedicar-se prioritariamente à formação de lideranças populares. Em 1981 foi professor no Seminário Rural do Avarzeado (Pilões, PB), depois em Serra Redonda (PB), depois Centro de Formação Missionária. Em 1987 participou da fundação das Missionárias do Meio Popular, com o mesmo objetivo. Neste ano surgiu também o Programa da Árvore – formação de Animadores de CEBs na Arquidiocese da Paraíba com sua orientação.
Em 1989 fundou o Instituto de Formação Pastoral de Juazeiro (PB) com núcleos em Mogeiro (Paraíba) e em Miracema (Tocantins). E desde 1995 passou a residir na Casa de Retiros São José, em Bayeux. Continua dando assessoria às diversas entidades de formação de lideranças populares no Nordeste, além da assessoria teológica para os mais diversos grupos eclesiais ou sociais no Brasil, na América Latina e no Nordeste.Foto Comblin
As presentes notas resultam, principalmente, da tentativa de recuperar elementos axiais de uma entrevista dada ao Pastor Luciano Batista, com o objetivo de destacar afinidades e nuanças metodológicas observáveis entre as bases formativas que caracterizam a Educação Popular e a Teologia da Enxada, na formulação respectiva de Paulo Freire e José Comblin. Entrevista que, por dificuldades técnicas na lida com o aparelho registrador, não pôde ser transcrita.
O propósito fundamental do entrevistador era de recolher nosso ponto de vista quanto às possíveis afinidades entre a metodologia proposta por Freire à Educação Popular e a metodologia característica da Teologia da Enxada, na formulação de José Comblin. Antes de me provocar, o entrevistador cuidou de contextualizar suas inquietações metodológicas, a partir de anotações suas acerca do pensamento de Carlos Rodrigues Brandão (sobretudo em seu conhecido livro O que é Método Paulo Freire (São Paulo: Brasiliense, 1981) e Moacir Gadotti.
No início da entrevista, tratei de destacar uma evidência: a íntima associação existente entre metodologia e visão de mundo. Algo, aliás, bem presente inclusive na obra e na vida tanto de Paulo Freire como de José Comblin.
Com efeito, não há como dissociar método/metodologia de uma opção teórica. Esta é matriz daquela. Acham-se, ambas, organicamente vinculadas. Por exemplo, seria algo estranho a um(a) pesquisador(a) de orientação funcionalista recorrer a uma opção metodológica propiciada pela pesquisa participante. Para alguém com orientação positivista/conservadora soaria estranho, numa atividade de pesquisa, a própria idéia de compartilhar saberes. Em sua cabeça, há os que sabem (aí incluídos os pesquisadores acadêmicos) e os que são, no máximo, alvo ou objeto de saber ou de pesquisa. Posição diversa – aliás, antagônica – de algum(a) pesquisador(a) inspirado(a) numa proposta freireana/combliniana, para quem ninguém é dono exclusivo de saberes, do mesmo modo que não há quem tudo saiba ou quem tudo ignore. Somos todos aprendentes uns dos outros, e de nossa relação com o mundo, com a natureza.
A partir desse registro preliminar, convém seguir buscando exercitar uma breve incursão analógica entre a proposta formativa da Educação Popular, na perspectiva freireana, e a proposta formativa da Teologia da Enxada, na perspectiva combliniana. Para tanto, partimos de uma sucinta explicitação dos conceitos aqui trabalhados de Educação Popular e de Teologia da Enxada. Em seguida, buscamos destacar suas principais características de natureza formativa, sem desconsiderarmos também suas nuanças de singularidade. Por fim, ensaiamos extrair suas principais contribuições ao enfrentamento dos desafios colocados pela atual realidade.
1. Ensaiando uma afinação conceitual
Sema por tratar-se de termos pouco comuns (a exemplo de “Teologia da Enxada”) ou portadores de múltiplos e, por vezes também controversos, sentidos (a exemplo de “Educação Popular”), parece-nos convenente e oportuno buscar explicitar, nessas notas, o sentido que estamos atribuindo aos termos “Educação Popular” e “Teologia da Enxada”.
Em relação à primeira, cabe reconhecer uma notável diversidade de concepões e conceitos, trabalhados em ambientes acadêmicos e outros. Com freqüência mais ampla, tem predominado o emprego do termo como correspondente a elementos do processo formativo ligados às camadas populares, as quais costumam aparecer como alvo ou destinatárias de políticas ou ações educativas – escolares ou não-formais. Trata-se habitualmente de iniciativas tomadas para ou, quando muito e de modo superficial, com os setores impropriamente chamados “carentes” (insinuando tratar-se de gente sem sorte, e por isso “necessitada da caridade alheia”, em vez de se tratá-los como são: injustiçados, destituídos dos seus direitos, o que configura outra coisa, como costuma insistir Ivandro da Costa Sales) das camadas populares. Por vezes, até parte das atividades é realizada com os destinatários. Em geral, trata-se de políticas sociais governamentais ou de atividades ou planos educativos elaborados/implementados por especialistas, com o propósito de serem aplicados a grupos ou comunidades do meio popular.
De nossa parte, entendemos que o emprego do termo só cabe nos casos em que os protagonistas da ação ou da política educativa são as próprias classes populares, participando de todos os momentos decisivos do mesmo processo – desde a concepção, o planejamento, a execução, a avaliação, etc., com a colaboração de seus aliados – sujeitos individuais ou coletivos que, mesmo não sendo membros originários das classes populares, são com estas efetivamente comprometidos: com seu horizonte, seus valores, com suas lutas, com sua caminhada. Na perspectiva gramsciana, parte significativa desses aliados atua como “intelectuais orgânicos” das classes populares.
Em outros textos, já tivemos ocasião de destacar algumas características próprias da Educação Popular, na perspectiva freireana. (cf. por ex., CALADO, 2008). Tivemos oportunidade de destacar, entre outras marcas: o protagonismo coletivo e individual, recurso a múltiplas linguagens, cultivo da memória histórica dos oprimidos, superação da dicotomia entre trabalho manual e trabalho intelectual, alternância de cargos e funções, reconhecimento e exercício da dimensão docente dos discentes e da dimensão discente dos docentes; desenvolvimento incessante da capacidade perceptiva dos protagonistas, cultivo da formação integral e contínua, exercício da utopia transformadora, exercício da mística revolucionária…
Com relação à Teologia da Enxada, aqui empregamos o termo na acepção – correspondente a uma expressão mais nordestina da Teologia da Libertação enquanto expressão da “Igreja na Base” protagonizada por setores eclesiais tais como as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), as Pequenas Comunidades de Religiosas Inseridas no Meio Popular (PCIs), o Centro de Estudos Bíblicos (CEBI), Pastorais Sociais como a Comissão de Pastoral da Terra (CPT), Comissão Indigenista Missionária (CIMI), a Pastoral de Juventude do Meio Popular (PJMP_, a Ação dos Cristãos no Meio Rural (ACR), entre outras, e que consiste numa experiência formativa de enraizamento no meio popular rural e urbano, numa perspectiva de compromisso com a causa de libertação popular.
Desde o final da década de 1960, a Teologia da Enxada, embalada pela profética irrupção da Conferência de Medellín (1968), vem ensaiando passos convincentes de uma experiência formativa de jovens do meio popular, caracterizada por elementos muito próximos dos traços componentes da Educação Popular, sem deixar de apresentar também seus traços de singularidade, que buscamos apontar, no item seguinte.
A Teologia da Enxada se apresenta, pois, como uma experiência formativa, de motivação político-teológica. Acompanhados e orientados por uma Equipe de formadores comprometidos com a causa dos pobres, os protagonistas da Teologia da Enxada, ensaiaram um processo formativo de caráter alternativo ao então dominante. Tratava-se de buscar uma formação de jovens missionários, não mais pela via clássica dos seminários teológicos, mas pela via de inserção no cotidiano de trabalhadores e trabalhadoras rurais, inicialmente, e, depois, também no meio das comunidades periféricas urbanas. Seu processo formativo se fazia por meio de um conjunto de práticas e procedimentos típicos, que se inspiram em princípios tais como: compromisso com as lutas de libertação dos pobres; inserção em sua cultura, buscando partir do cotidiano do povo, sua cultura, seus valores, seu trabalho, etc., animados por uma maior aproximação com os valores ecumênicos, fazendo Ecumenismo de base, evoluindo para uma fecunda diversificação de sua experiência inicial, desaguando numa multiplicidade de formas de vida, com uma unidade na diversidade, a partir da qual vão se formando experiências, seja dentro de uma opção mais contemplativa, seja uma opção de missionários e missionárias casados, seja a opção de vida como peregrinantes, e outras.
A seguir, buscamos destacar os pontos comuns à Educação Popular e à Teologia da Enxada, no que concerne às suas respectivas caracaterísticas formativas.
2. Pontos comuns e singulares das propostas formativas da Educação Popular e da Teologia da Enxada.
Sem desconhecer-lhes as singularidades (das quais nos ocuparemos, no item seguinte), o quê de comum é possível assinalar entre essas duas propostas de formação, a Educação Popular e a Teologia da Enxada? Que interfaces e incidências mútuas podem ser observadas? Vejamos alguns elementos, buscando resumi-los, agrupando-os em três aspectos axiais: a) o horizonte; b) os caminhos; c) a postura dos/das caminheiros/as. Ao fazê-lo, cumpre-nos observar que os aspectos a seguir destacados se acham dinamicamente interpenetrados. Dificilmente pode-se remeter a um, sem que os demais estejam aí presentes, de alguma forma.
a) Com relação ao horizonte
Um ponto de partida desse horizonte comum tem a ver com a convicção de que nós somos seres inacabados. Nascemos incompletos, chamados a ir nos completando, à medida que vamos nos tornando gente. A consciência desse limite é que faz uma grande diferença, na avaliação de Paulo Frire e de José Comblin, para mencionar apenas os dois autores referenciais de nossa incursão.
Com efeito, em distintos textos, um quanto o outro costumam lembrar essa nossa condição. De modo talvez mais explícito e mais freqüente, Freire retoma tal aspecto, em distintos textos seus. Somos seres inconclusos, inacabados. Mais e melhor: temos consciência de nosso inacabamento. Isso é recorrente em Freire. Quanto a José Comblin, ainda que tal aspecto não apareça com essa mesma formulação, com certeza tem uma incidência notável, à medida que insiste na nossa vocação a tornar-nos seres livres, constituindo-nos em povo, em sociedade, numa nova sociedade, alternativa à atualmente imperante, uma sociedade que permita a emergência de uma nova humanidade, livre das diversas opressões, justa, solidária, em harmonia com a mãe-natureza e solícita ao Espírito de Liberdade.
A natureza relacional dos seres humanos constitui, também, outro aspecto comum observável em ambas as propostas formativas. A consciência do inacabamento é o primeiro passo na busca em direção a uma participação efetiva no processo de humanização. Humanização do ser humano como um todo e de todos os seres humanos. E, justamente por ser uma luta em busca de humanização, trata-se de lutar, ao mesmo tempo, contra toda força de desumanização, sob qualquer de suas formas ou manifestações.
É essa mesma consciência de inacabamento que leva os seres humanos a inserir-se num processo de busca de superação de seus limites, sendo um deles o deles o isolamento, donde o empenho pelo seu progressivo relacionamento com os demais seres, com o mundo, com a natureza, com o “Sopro vital” (José Hailton B. Lyra).
Em Freire e Comblin – cada qual em seu campo específico de pesquisa -, a dimensão relacional é uma condição essencial no processo de humanização. Tem a ver, inclusive, com a necessidade de entendimento e de busca da necessidade de se entender e de se querer como gente, como comunidade, como povo, como classe popular, sem que isso apague ou neutralize a dimensão individual ou deságüe numa experiência coletivista. Lutar pelo desenvolvimento de uma dessas dimensões implica necessariamente o desenvolvimento da outra.
Ambas as propostas se mostram comprometidas com um horizonte comum, ainda que palavras diferentes sejam por elas utilizadas, até por conta de suas abordagens específicas _(enquanto uma lida mais diretamente com o campo da Pedagogia, a outra situa-se mais diretamente no campo teológico).
Um primeiro aspecto a destacar quanto a esse horizonte comum, tem a ver com a aposta de ambas na construção de uma nova sociedade, alternativa ao modelo atual. Seus protagonistas – de um lado e de outro – se acham convencidos de que o atual modelo capitalista de organização social – o Capitalismo – não condiz com as aspirações mais generosas do gênero humano, de modo a corresponder satisfatoriamente com às necessidades fundamentais e às aspirações gerais do conjunto dos membros da sociedade. Por definição, o sistema capitalista atende aos interesses materiais fundamentais de uma pequena minoria. E, assim mesmo, à custa da exploração e da marginalização de amplas maiorias da mesma sociedade.
Na formulação freireana, por exemplo, é recorrente o termo “Utopia”, a designar esse horizonte de transformação social. Em José Comblin, o mesmo sentido (não tanto o mesmo termo) aparece em vários textos, em especial em sua relevante contribuição aos estudos da missão do Espírito Santo no mundo. Aqui, esse horizonte utópico aparece como um futuro que é construído já agora, no presente. Em Tempo da Ação, por exemplo, nossas ações lebertadoras do presentes se acham grávidas desse futuro em incessante construção.
b) Ensaiando caminhos comuns
Outro ponto comum característico de ambas as propostas formativas em apreço, tem a ver os caminhos perseguidos. Na Teologia da Enxada, o horizonte de liberdade que os protagonistas desejam alcançar só se faz possível por caminhos igualmente de liberdade. Não é possível alcançar uma nova sociedade, uma nova humanidade que se queira livre e solidária, por meio de caminhos autoritários e individualistas. O mesmo entendimento se dá por parte da Educação Popular, na perspectiva freireana. Desde a Pedagogia do Oprimido a Pedagogia da Autonomia, passando por Educação como Prática da Liberdade, Extensão ou Comunicação?, Ação Cultural para a Liberdade, Pedagogia da Esperança e outros, sem falar em seu próprio legado existencial, Freire não concebe a busca de uma nova sociedade, alternativa ao sistema hegemônico, que também não se faça por caminhos que se contraponham igualmente aos do modelo vigente.
Daí resulta, também, o investimento decisivo, por parte de ambas as propostas formativas, em estratégias de ação, procedimentos e atitudes concretas, numa e noutra conhecidas por conceitos e princípios tais como:
– o critério da “Práxis”: a efetiva busca de construção do horizonte almejado não se avalia tanto pelo que dizemos, mas, fundamentalmente, pelo que andamos fazendo, no presente. Nos critérios dominantes, e assimilados e reproduzidos pelos mais diversos espaços sociais (família, escola, igrejas, sindicatos, partidos…), prevalece a tendência de se confiar no discurso, nas declarações, na boa lábia. O resultado é um desastre: um abismo enorme entre o que se afirma de boca para fora e o concreto do dia-a-dia. Nas propostas formativas de que nos ocupamos, além de insuficiente, é profunamente enganoso avaliar nossas vidas e as dos outros pela magia do discurso. Importa fazê-lo pelas práticas concretas do dia-a-dia;
– contínuo esforço de superação da dicotomia entre trabalho manual e trabalho intelectual – Prevalece entre nós a tendência, herdada desde o processo de colonização, de superestimação das atividades intelectuais (inclusive de administração, comando, chefia), em detrimento das atividades manuais (das tarefas caseiras ao trabalho na roça e na fábrica). Ambas as propostas formativas de que nos ocupamos, supõem o envolvimento de todos em todas as tarefas, sejam elas de caráter administrativo, sejam elas de caráter manual. Todos devemos cuidar de tudo, cada um a seu tempo, em rodízio;
– recorrer à sabedoria acumulada pela humanidade, em todos os tempos e espaços, o que se concretiza pelo exercício da memória histórica. Tanto a Educação Popular quanto a Teologia da Enxada cultivam um apreço todo especial ao exercício da memória histórica dos povos e de suas lutas, de suas conquistas e de suas derrotas. Aprende-se com a história, não para repeti-la ou copiá-la, mas para refazê-la;
– outro procedimento que se tem revelado fecundo, é o estímulo ao aprimoramento incessante da capacidade perceptiva: incentivar os jovens e todos os protagonistas do processo formativo a verem, a ouvirem, a sentirem mais e melhor o que se passa na realidade; a estarem antenados aos sinais dos tempos, aos acontecimentos e situações que nos rodeiam, e a buscarem extrair ensinamentos. Aqui também se inclui o fecundo hábito de se fazer análise de conjuntura;
– o cultivo do rodízio ou da alternância de tarefas, cargos e funções, o que se traduz pelo cuidado de não se permitir que as mesmas pessoas sigam por muito tempo a desempenhar as mesmas funções. Em vez, disso, importa que se criem condições que favoreçam o rodízio de tarefas e funções, de modo que se favoreça a quem está na base a realizar trabalhos de administração, e a quem tenha cumprido tarefas administrativas volte aos trabalhos de base;
– com o propósito de assegurar a todos os participantes – parte dos quais com pouca escolaridade – as condições de mútuo entendimento, promove-se o recurso a múltiplas linguagens (imagens, desenhos, poesia, teatro, jogral, cordel, etc.). Além disso, insiste-se na clareza e objetividade por parte de quem fala ou escreve, no sentido de garantir o entendimento de sues interlocutores, eviatando-se assim o que Comblin, por exemplo, avalia como uma prática excludente;
– promover condições favoráveis a que os protagonistas descubram seus talentos e potencialidades, bem como tomem consciência de seus limites, não numa perspectiva de auto-inibição ou bloqueio, mas numa perspectiva crítico-propositiva.
– incentivar um aprendizado em mutirão e com capacidade criativa, o que implica trabalho em equipe e vigilância em relação à tendência ao estrelismo individual, em vez do exercício do protagonismo de todos;
– estimular o exercício contínuo de uma mística libertadora, isto é, permitir aos protagonistas ocasião contínua de renovação de seus compromissos com a causa libertadora dos oprimidos.
c) Qual postura de protagonista?
Ainda, dentro dos aspectos axiais de afinidade entre Educação Popular e Teologia da Enxada, sob a ótica aqui trabalhada, convém pôr em relevo um outro elemento, este de caráter mais pessoal. Parte-se da convicção de que, além da busca de adequar os caminhos percorridos ao horizonte almejado, importa, não menos, investir no cuidado com a postura pessoal do protagonista no processo formativo. Não basta apenas trilhar os caminhos coletivamente percorridos pelo conjunto dos participantes. Importa também zelar pelo jeito pessoal de caminhar nesse mutirão.
Sem qualquer propósito de idealização ou de pretensão perfeccionista, talvez valha ter-se como referência um perfil de caminhante de protagonista que se aproxime dos demais elementos dessas duas propostas formativas, de modo relativamente coerente e orgânico. Ensaiemos, então, alguns traços de semelhante perfil:
– a participante ou o participante de uma caminhada formativa como a acima esboçada apresenta-se como alguém insatisfeito com as condições sócio-históricas dominantes, seja do ponto de vista da concentração de riquezas e de renda, seja do ponto de vista do exercício do poder, seja ainda quanto à grade de valores hegemônica;
– é alguém que vai se convencendo de que a formação que pretende seguir, é uma ferramenta importante na direção de superação progressiva da realidade atual;
– é alguém que sabe que, sozinho, ninguém será capaz de vencer os obstáculos para a sua realização como pessoa humana;
– é alguém que, ao entrar nesse processo, vai cuidando de constuir sua identidade (sempre em processo), buscando lidar, cada vez melhor, com a diversidade de seus parceiros de camihada, aprendendo a respeitar e a dialogar com as diferenças, delas colhendo ensinamentos para a sua própria formação;
– é alguém que, pouco a pouco, à medida que vai compreendendo o caráter e a metodologia da proposta formativa, vai apresentando sinais convincentes de mudança de atitude: não se trata de assimilar bem os conteúdos aprendidos, mas de dar testemunho concreto pelo seu novo modo de vida e de se portar na caminhada, nos mais diferentes momentos;
– é alguém que vai se apaixonando cada vez mais pelos pobres e oprimidos, não como quem deles tem dó ou esboça um sentimento paternalista/assistencialista, mas como quem se compromete a ajudá-los a se transformarem em sujeitos de sua própria história, empunhando suas bandeiras de luta, e fazendo-se participantes nas distintas trincheiras de enfrentamento;
– é alguém que não se contenta com os momentos formativos em grupo, mas que vai além dos mesmos, assumindo o compromisso de investir incessantemente em sua formação, indo atrás de materiais, compartilhando leituras, antenando-se em fontes alternativas de informação e de formação.
É bastante vasto o leque de atitudes a destacar, quanto ao que deveria ser o perfil médio de quem se decida a entrar em tal processo formativo. Aqui nos limitamos a esboçar, de leve, alguns pontos.
3. Singularidades de cada uma
Como havíamos prevenido, a despeito de seus muitos pontos comuns e afins, a Educação Popular e a Teologia da Enxada também apresenta suas singularidades, das quais passamos a destacar algumas que nos parecem mais significativas.
A Educação Popular constitui um amplo espaço formativo que abriga movimentos sociais populares, experiências comunitárias as mais distintas, do ponto de vista dos perfis de seus protagonistas. A Teologia da Enxada, por sua vez, se apresenta como um espaço formativo dos movimentos sociais populares e comunitários, cuja grade de valores se orienta dominantemente por uma motivação de fé.
Ambas lidam com discursos distintos, ainda que complementares. Enquanto a Educação Popular se faz dentro de uma lógica mais característica das ciências sociais, a Teologia da Enxada, como já sugere o próprio nome, é, antes, tecida por um discurso específico, o do campo teológico. Entre ambas se passa algo semelhante ao que se passa, por exemplo, entre os movimentos soiciais populares e a Teologia da Libertação. Discursos específicos que, entretanto, se complementam.
Por exemplo, no caso da Teologia da Libertação, seus liames tornam-se mais orgânicos com os dos movimentos sociais populares se davam mais diretamente, em parte, tanto em sue primeiro momento – a chamada mediação sócio analítica (correspondendo ao “Ver”, da fecunda metodologia da Ação Católica -, quanto no momento da mediação político-pastoral, correspondente ao “Agir” da Ação Católica.
Ainda há outros pontos de singularidade. É o ocorre a diferentes termos por ambas utilizados, às vezes até para designar os mesmos fenômenos da realidade social. É assim que, enquanto no terreno da Educação Popular, fala-se mais frequentemente em “classes populares”, no campo da Teologia da Enxada, o mesmo sujeito coletivo é comumente chamado “povo”.
Considerações adicionais
Tratamos de ensaiar um breve exercício de analogia entre Educação Popular e Teologia da Enxada, seja quanto às respectivas abordagens teóricas, seja quanto às respectivas balizas metodológicas, sem deixar de assinalar igualmente suas singularidades.
Ao cabo desse breve exercício, convém destacar notáveis afinidides entre ambas, principalmente com relação à sua visão de mundo, aos objetivos comuns quanto à luta por transformação social e à aposta no mesmo sujeito coletivo, tomado como principal protagonista de mudança social: as classes populares.
Nesse sentido, foram apontados vários elementos comuns em e por ambas trabalhados, tais como os princípios de inconclusão do ser humano, de seu caráter relacional, por força do qual o mesmo sujeito coletivo ensaia passos de sua libertação histórica, bem como sua aposta no protagonismo dos formandos na luta por seu desenvolvimento integral e por sua libertação.
Além de afinidades de caráter teórico, foram também apontadas afinidades quanto aos caminhos percorridos por ambas, sempre sem deixar de reconhecer suas singularidades, já que, enquanto uma (a Educação Popular) milita mais diretamente no campo das ciências sociais, a Teologia da Enxada trabalha a realidade social com ferramentas de caráter mais propriamente teológicos.
Notas sobre o livro O Espírito no Mundo, de José Comblin
O livro não é tão recente. Foi editado pela primeira vez em 1978, pela Vozes. Lá se vão mais de trinta anos. No mundo de então, a conjuntura era de crise do Capitalismo, em mais uma de suas famigeradas crises cíclicas. Às voltas, então, com o problema do petróleo, do aumento de preços, combinado com o progressivo escasseamento das fontes energéticas não-renováveis.
Na esfera da Igreja Católica Romana, eram os últimos dias do pontificado de Paulo VI, forte em seus inícios em plena realização do Concílio Vaticano II, e já combalido pelas forças conservadoras que apostavam na derrocada do espírito do Vaticano II.
Na América Latina, a despeito do venturoso impulso de Medellín (1968), vivia-se um “rumor de botas” (Eder Sader). Um tempo de intensa repressão protagonizada pelas ditaduras civil-militares (e até civil-militar-eclesiásticas, no caso da Argentina), especialmente no Cone Sul: Brasil (a partir de 1964), Chile (1973), Argentina (1976), além do Uruguai e do Paraguai…
Na América Central, vivíamos um tempo de esperança no enfrentamento da ditadura de Somoza, finalmente derrotada pelas forças sandinistas, com decisiva participação dos cristãos,, a partir de 1979. No Brasil, a despeito da vigência do regime militar, este dava provas de enfraquecimento, graças à crescente mobilização da sociedade civil, bem representada por movimentos sociais populares que se mostrariam vigorosos (início do Movimento pró-PT, mobilização pela Anistia aos exilados e presos políticos, papel ativo da CNBB, da ABI, da OAB… Ao interno da Igreja Católica e de outras igrejas cristãs, vivia-se um período auspicioso de expansão das CEBs, da Teologia da Libertação, em breve, da “Igreja dos Pobres” ou também chamada “Igreja na base”.
Nessa época, o Autor do livro ainda vivia seu exílio no Chile (em Talca, mais precisamente), expulso que havia sido do Brasil (1972) e do próprio Chile (em 1980,, pela ditadura de Pinochet que, pela truculência d o golpe de Estado contra o o Governo de Salvador Allende, em 1973, espalhou o terror e a tortura).
É justamente a partir de suas experiências eclesiais concretas vivenciadas em Recife (meados dos anos 60 até 71, quando foi expulso do Brasil), em Santiago e em Talca, no Chile, bem como em Riobamba, no Equador, que ele vai elaborando sua abordagem inovadora da ação do Espírito Santo no mundo.
No caso das experiências com a Igreja no Brasil, mais particularmente no Nordeste, tais contatos não cessariam, nem mesmo no período do exílio. A partir dos países que fazem fronteira com o Sul do Brasil, sempre encontrou formas de continuar os contato com os pobres e os amigos do Brasil. Vale notar que este seu livro foi, inclusive, escrito em Português e publicado por uma editora brasileira, que dava um suporte relevante às experiências da base da Igreja e da Teologia da Libertação. Como não lembrar a experiência, por exemplo, da CEHILA Popular, com sua série de folhetos em linguagem popular?
No caso do Pe. José Comblin, ele próprio um dos teólogos de maior referência da Teologia da Libertação, especialmente na expressão do que se havia cunhado como “Teologia da Enxada”, referência maior do seu trabalho no Nordeste do Brasil, junto a fecundas experiências comunitárias, inicialmente em Pernambuco (Tacaimbó) e na Paraíba (Salgado de São Félix), a partir de 69, e depois continuadas no exílio (a criação de seminários rurais, no caso). Seminários rurais que, tendo sido inicialmente aprovados pelo Papa Paulo VI, foram desaprovados já no início do pontificado de João Paulo II, o que levou a converter tais experiências num frutuoso trabalho de formação de missionários e missionárias leigos, em vários Estados, especialmente no Nordeste (Serra Redonda e Mogeiro – PB, Colônia Leopoldina (AL), Juazeiro (BA), além de outras experiências semelhantes no Piauí e em Tocantins.
É nesse contexto de notável efervescência social e eclesial, que elabora esse livro-projeto. De fato, nele o A. busca esboçar as balizas de uma abordagem pneumatológica alternativa à abordagem convencional dominante sobre a missão do Espírito Santo. “Livro-projeto”, dissemos, porque as balizas apenas esboçadas neste livro de 114 páginas vão ser ter desdobramentos relevantes numa série de livros ulteriores: O Tempo da Ação (1982), A Força da Palavra (1986), O Espírito Santo e a Libertação (1987), Vocação para a Liberdade (1999), Povo Deus (2002) e Vida em busca da Liberdade (2007), e mais outros (um deles, aliás, A Liberdade Cristã, data de 1977, editado pela Vozes), na medida em que se debruçam, cada um, sobre as características ou atribuições mais marcantes da missão do Espírito Santo no mundo.
Atribuições estas já apontadas, quase sempre de explícito, no livro O Espírito no Mundo, há mais de trinta anos: Com efeito, no livro em tela, estão bem explicitadas as principais atribuições do Espírito Santo, a saber:
– “Povo de Deus” (p. 10:“O fato central, o efeito central da vinda do Espírito: a formação do povo de Deus.”);
– “Ação” (Espírito como ação eficiente, como vento impetuoso a agir na História, cf. Introdução do livro);
– “Liberdade” (p. 64:“Onde está o Espírito aí está a Liberdade”);
– “Palavra” (a Palavra, e não a guerra, é o instrumento do Espírito na formação do Povo de Deus (cf. pp. 38-40); ver também p. 76: “O Espírito atualiza a presença da da Palavra”; p. 40: “Ele fez de minha boca uma espada afiada” Is 49, 2);
– “Vocação”, “Vida”… A cada uma dessas atribuições dedicaria o A. um livro específico, como mencionamos acima.
Mas, aqui tratamos apenas do livro-projeto. Ele se reparte em seis capítulos: o primeiro intitula-se “Um só corpo e um só espírito”; “O pensamento de Cristo” é o segundo; o terceiro capítulo versa sobre a força da Palavra, focando o testemunho do Espírito no mundo; o quarto capítulo tem por título “Onde está o Espírito, aí está a Liberdade”; “O penhor do Espírito” é como se intitula o penúltimo capítulo, versando sobre a Vida; e o sexto e último capítulo trata de “Os dons espirituais”.
Desde o início do livro, Comblin atribui também ao nome “Espírito” uma das dificuldades de compreensão mais efetiva da missão do Espírito Santo, do Sopro divino, do vento impetuoso que soprou em Pentecostes e continuar a fazer hoje sua missão.
Já na Introdução, trata o A. de justificar sua reflexão, ao lembrar a tendência dominante de uma compreensão muito limitada da ação do Espírito Santo, a quem se invoca para assuntos internos e particulares da Igreja, tais como celebrações, devoções e fins semelhantes. Compreensão limitada também era a dos discípulos de Jesus. Mas, ao longo da história do Povo de Deus, essa compreensão vai se ampliando, embora sofra grande oscilação. Inquieta-o o fato de, ainda hoje, ser freqüente uma interpretação “interna corporis” da ação do Espírito Santo e seus dons ou “como uma experiência privada, pessoal, interior.” (p. 8).
“Um só corpo e um só espírito”
É com esta remissão a Ef 4,4 (combinada com o capítulo 2 da mesma Carta), como de resto a todo o belo capítulo 4, que é dedicado o primeiro capítulo do livro. A certa altura, ao comentar a ação do Espírito, que é a da formação do Povo de Deus, constituído de numerosas pequenas comunidades na base, cada qual com sua autonomia, mas profundamente ligadas por laços afetivos e efetivos de unidade, o A. trata de explicitar o sentido da citação: “S. Paulo nunca separa os dois pólos da ação do Espírito: a formação de inúmeras pequenas comunidades na base e a unificação de todas num só povo;” (p. 22).
Começa buscando entender o motivo dessa dificuldade de se compreender o sentido da missão do Espírito Santo. E parte da dificuldade mesma do nome “Espírito”. Argumenta que tão grave é o problema de tradução para as línguas européias, especialmente para o grego e para o latim, que a tradução (“Espírito”) termina conotando até o sentido contrário ao termo bíblico, na medida em que “Espontaneamente “espírito” evoca a idéia de não-matéria, imaterial.” (p. 9), enquanto que na língua semítica, “o Espírito Santo significa a força de Deus, uma força de tempestade, como uma força do vento, a força do temporal, a força dos tufões.” (p. 10). Eis por que, completa o A. mais adiante, “Ao prometer e anunciar a vinda do Espírito, Jesus abre o caminho para a força de Deus: a força que criou o mundo, volta a esse mundo para refazê-lo, completa-lo e levar ao seu destino final.” (p. 10).
O cerne do primeiro capítulo consiste em ressaltar a especificidade da vinda do Espírito Santo. A esse respeito, é relevante observar o que afirma Comblin acerca da grande missão do Espírito Santo; ao sustentar que “O fato central, o efeito central da vinda do Espírito Santo: a formação do povo de Deus.” (p. 10).
É, com efeito, o propósito do Espírito Santo: a formação do povo de Deus comportando o conjunto da Humanidade, na ótica da universalização da salvação. Razão pela qual o A. também faz distinção entre povo e massa, para enfatizar a missão do Espírito Santo, ao longo da História, que é transformar a massa em povo, o povo de Deus. Um povo que vai tomando consciência de sua identidade, a partir dos excluídos que vão sendo reunidos, conscientizados, organizados e mobilizados, na direção de se erigirem enquanto povo, povo Deus, portanto, consciente, autônomo, solidário, uno em sua diversidade. Aqui se percebe a marca de interculturalidade atestada pelo povo de Deus, cuja unidade se faz a partir de sua ampla diversidade.
Processo cujo chão/espaço o próprio Jesus revelou, para escândalo dos judeus (e dos ocidentais de hoje!), ser bem mais amplo do que o Estado de Israel… O novo Israel agora é sem fronteiras. Abrange o mundo inteiro, todos os povos, a Humanidade. Eis o Povo de Deus! Desse Povo em permanente construção a Igreja, as igrejas cristãs, são chamadas a se tornarem a serviço. Com o cuidado de não sucumbirem à tentação de aprisionarem o Espírito em suas amarras institucionais. Risco que tem marcado a caminhada histórica das igrejas cristãs, até hoje…
As igrejas só ajudam na formação do Povo de Deus, na medida em que contribuem para que esse Povo tome consciência de sua vocação à Liberdade do Reino; na medida em que se vá comprometendo a ser participante ativo desse processo. Infelizmente, raramente encontramos testemunhos edificantes das igrejas cristãs, nessa sua missão. Um dos obstáculos nessa caminhada é a vã aposta em que tal missão seja confiada a figuras ou grupos privilegiados (o A. se refere às“elites”). Trágico equívoco. Só a partir das massas próprias é se vai descortinando esse horizonte, e se realizando essa caminhada libertadora: “Na idéia de Jesus, o verdadeiro povo de Deus está nessas massas abandonadas que precisam ser ajudadas e levantadas.” (p. 15). O processo tem que ser feito de baixo para cima, “com a força do Espírito Santo”. Ou não vingará. Até porque o papel histórico das elites tem sido o de só cuidam de manter e ampliar seus privilégios, ainda que isso se faça em nome de Deus. E como se faz!
Povo que se vai fazendo num processo contínuo, ininterrupto. A esse respeito, o acontecimento de Pentecostes constitui uma realidade emblemática. Já não mais se trata de criar leis a serem inscritas em códigos, em tábuas, mas inscritas nos corações. Em Pentecostes, “O Espírito já não é reservado aos puros profetas que aparecem de vez em quando. Agora todos são profetas.” (p. 17).
Uma tal infusão do Espírito vai implicar desafios, certamente. Os aparelhos sagrados são sempre controlados com mão de ferro por um pequeno número, que se sente ameçado, em seus privilégios, por essa ousadia do Espírito, a comunicar-se a quem entenda fazê-lo. Por exemplo, aos pagãos, às “ovelhas perdidas da casa de Israel”. A ação do Sopro divino não aceita fronteiras, esparrama-se por todo o mundo. Mais: “força” seus vocacionados a acatarem o desafio. Pela força de Pentecostes, por exemplo, “Pedro compreendeu que as barreiras estavam destruídas: “Poderá alguém recusar a água do batismo a esses, que recebeu o Espírito Santo da mesma forma que nós?” (At 10, 47) (p. 18). Tal foi o impulso do Sopro Divino, e o acatamento dos discípulos, que em pouco tempo, o Povo de Deus já era constituído, em sua maioria, de ex-pagãos! É a essa experiência que o A. chama de “lançamento do povo de Deus”.
Um desafio constante tem sido a luta acirrada entre duas tendências: de um lado, os controladores da ação do Espírito, que, para defenderem seus privilégios, não hesitam em criarem intermináveis barreiras para acolher “as ovelhas perdidas da casa de Israel. Para tanto, não hesitam em multiplicar os obstáculos e suas defesas, por meio de leis, de normas, de mecanismos burocráticos. Está ai há muito tempo a Cúria Romana como um exemplo concreto de obstáculo à formação do Povo de Deus. Por ouro lado, a contínua ação profética das “minorias abraâmicas”, a resistirem pela força do Espírito.
Resistência e ação instituinte tanto mais fecundas quanto conseguem não perder de vista o horizonte de Povo de Deus, fundado no Projeto de Deus (Carlos Mesters). Se é certo que mesmo o desenho desse Projeto não aparece nunca completamente delimitado, não menos certo também é que apresenta traços convincentes de seu perfil. No livro em apreço, Comblin enfatiza alguns pontos fundamentais. Um deles é a tensão que ele implica entre unidade e diversidade, sobre o qual voltaremos mais adiante. O rosto do Povo de Deus comporta uma ampla diversidade cultural que caracteriza tantos povos, espalhados por todo o mundo. Essa diversidade é, ao mesmo tempo, alimentada pela busca de unidade (não uniformidade), fundada em valores como solidariedade, partilha, serviço, autonomia, liberdade, entre outros traços.
Chama a atenção o caráter alternativo subjacente a esse desenho de organização social, sobretudo pelo forte investimento no que costumo chamar de cultura consultiva, isto é, na aposta a uma organização com base em conselhos de base, com caráter deliberativo. Na interpretação de Comblin, aquela forma de organização comporta elementos não menos relevantes: o povo de Deus não pode ser constituído por grupos isolados, mas de pequenas comunidades zelando por sua autonomia e, ao mesmo tempo, sentindo-se parte de um povo, do mesmo Povo de Deus. Nos termos do A., referindo-se à ação missionária animada pelo Apóstolo Paulo, junto aos Coríntios, “os grupos se sabem representativos das suas cidades: são as primícias da cidade e sua ambição é a animação da cidade toda, inteiramente chamada a achar o seu lugar no povo de Deus. Entendemos que, na idéia de Paulo, o povo de Deus seria como uma confederação de cidades livres espalhadas no mundo inteiro, cada uma sendo uma parte do povo, cada uma autônoma e mantendo laços de amizade e intercâmbio com as outras, mas sem nenhuma dominando outras.” (pp. 21-22). Para o A., é uma constante nos escritos paulinos sua inquietação com esses dois pólos da ação do Espírito a conduzir as comunidades: de um lado, a formação de inúmeras comunidades; de outro, a busca da unidade, em busca da formação de um só Povo de Deus.
Nesse movimento, aparece um desafio: qual deve ser o comportamento do Povo de Deus, em suas relações com outros povos? Na dinâmica animada por Paulo, a julgar por Rm 13, 1-7, há nele uma aposta otimista na tecelagem dessas relações. Paulo passa uma visão otimista das autoridades (e do império), a quem todos da comunidade devem obediência, pelo fato de serem representantes de Deus. Como afirma Comblin: “São Paulo não dá a impressão de prever conflitos graves e gerais com o império.” (p.23). Mesmo assim, como antes (p. 27) havia lembrado, aliás, o próprio A., convém não perder de vista aspectos reveladores de sua confiança nos pobres, e de sua desconfiança nos poderosos, como se percebe, por exemplo, no primeiro capítulo da Primeira Carta aos Coríntios: “O que é fraco para o mundo Deus o escolheu para confundir os fortes; o que é vil e desprezível ao mundo, Deus o escolheu, como também aquilo que não é nada, para destruir aquilo que é.” (1 Cor 1, 27-28).
A posição de São João, por seu lado, com base no relato do Apocalipse, apresenta-se antes pessimista. Para João, há um hiato insolúvel entre as forças que governam o mundo e as que representam o Projeto de Deus. E aponta a pregação alternativa dos profetas. Comblin afirma que a caminhada do Povo de Deus oscila entre essas duas posições, aí predominando uma tensão. De todos os modos, o A. lembra o risco de se apostar ingenuamente num alinhamento incondicional. È preciso manter uma postura crítica, de autonomia em relação aos poderes.
Seja como for, importa não perder de vista que, apesar de tantas tentativas históricas frustradas (o A. lembra, inclusive, a da criação da Internacional dos Trabalhadores), o Povo de Deus tem que continuar tentando uma alternativa a essa ordem dominante, que não se coaduna com a vocação do Projeto de Deus, afinal de contas “O Espírito está agindo como fermento, nesse sentindo, suscitando sempre novas tentativas e iniciativas.” (p. 26).
O dom de entender quem é Jesus
Na admirável concisão com que é tecido o segundo capítulo do livro (menos de dez páginas), o A. trata de destacar as linhas-mestras do pensamento de Jesus, a quem o Espírito confere toda a primazia. Para tanto, cuida de dissipar vários equívocos, como o de se atribuir o conhecimento de Jesus a membros da hierarquia pelo único motivo de conhecerem bem sua biografia, ou de pronunciarem seu nome com freqüência ou terem dele aprendido conceitos e definições: “Sacerdotes acham que conhecem Jesus porque falam nele o dia todo, desde o seminário. Religiosos acham que o conhecem porque invocam o seu nome o dia inteiro, desde o noviciado. Catequistas acham que o conhecem porque o ensinam, durante anos.” (p. 28). Lembrando que o verdadeiro conhecimento de Jesus é obra do Espírito Santo, o A. trata de dissipar uma noção superficial de Jesus, produto de emoções e sentimentos humanos generosos como o de Pedro, em sua afoita promessa de fidelidade feita a Jesus, antes da Paixão… Conhecer Jesus vem menos por uma noção de sua biografia do que por tê-lo presente nos desafios da atualidade, “Pois o que queremos e devemos conhecer é o Jesus atual, o Jesus ressuscitado que age na história e age atualmente como agirá no futuro.” (p. 30).
Nesse sentido, desponta realmente deslumbrante a ação do Espírito Santo. Jesus, por diversas vezes, como se percebe no Evangelho de São João (14-16), em que Jesus justifica a vinda do Espírito Santo, e dá pistas bem concretas sobre seu papel, sua missão. Muitas coisas que haviam passado ao largo da compreensão dos discípulos, durante o tempo da breve convivência com Jesus, caberia ao Espírito Santo esclarecê-las, ensiná-las mais a fundo, rememorá-las. E não se tratava de limites apenas de caráter do entendimento. Também havia os limites éticos: a sedução pela sabedoria humana, pelo poder, pelo prestígio, pela segurança. “Uma vez uma pessoa submergida nos processos e nos atos da história, seja da carreira pessoal, seja dos problemas de família, seja naa estratégias da sua empresa, do seu partido, da sua nação, ele já nem se lembra de Jesus” (p. 35).
Havia outras tantas tarefas que os discípulos de Jesus não estavam em condições de entender nem de assumir, sem o envio do Espírito Santo, a quem caberia igualmente revelá-las. Isto tem um sentido realmente revolucionário. Nem tudo o que Jesus tinha a dizer, os discípulos podiam alcançar, dados os limites de ordem vária. Seria missão do Espírito Santo.
É aí que aparecem numerosos obstáculos, dos quais o maior de todos é a busca de segurança, é a tentação de seguir a prudência humana sempre mandando evitar os perigos, a respeito dos quais o próprio Jesus já prevenira como necessários a quem se dispõe a segui-Lo. Seguir Jesus passa a ser algo tão perigoso, que se torna “Impossível que uma paróquia, uma diocese, uma congregação religiosa, um movimento cristão enxergue de maneira permanente as coisas assim como Jesus enxerga.” (p. 33).
Se não for pelo Espírito Santo, não logramos conhecer Jesus. Esta é precisamente sua missão, anunciada por Jesus, por exemplo, em Jo 14, 26: “O Espírito Santo que o Pai vos há de enviar em meu nome, ele vos ensinará todas as coisas e vos trará à memória tudo o que eu vos disse.”
Não se tratará, contudo – adverte Comblin, em várias passagens -, de um ensino abstrato, estritamente intelectual. Trata-se, sim, de um ensinamento que passa pela experiência concreta. Experiência, inclusive, da cruz como ante-sala da ressurreição. Neste caso, de pouco aproveitam as emoções que se derramam profusamente pelas igrejas, em momentos de louvação. É sobretudo nas horas conflitivas mais sombrias, mais cruciais, que se costuma fazer a experiência do Espírito, como nas ocasiões de perseguições e de martírio. É assim que procede o Espírito, no processo de formação do Povo de Deus, graças à fecundidade da Palavra.
Como o Espírito forma o Povo de Deus
No terceiro capítulo (pp. 38-53), o A. vai tratar fundamentalmente da pedagogia do Espírito Santo, refletindo sobre os instrumentos de que Ele se serve no processo de formação do Povo de Deus. Aqui desponta a Palavra como a arma por excelência, de que faz uso o Espírito, em contraste efetivo com a tendência dominante entre os povos: cada um, para se afirmar enquanto povo acima dos outros, recorre ao poder das armas como seu instrumento de referência. Sua vitória é garantida pela violência, pelo poder bélico. Na formação do Povo de Deus, todavia, é a força da Palavra o instrumento pedagógico utilizado pelo Espírito. E aqui assume lugar privilegiado a figura de Jesus. Especialmente de Jesus como profeta. Várias passagens dos evangelhos mostram como se deu sua investidura de profeta, como no episódio do Batismo.
Jesus se apresenta como o Enviado do Pai, cuja missão é ser Palavra. Palavra afiada como uma espada, como ocorrera, antes, a Isaías, a Jeremias e a outros profetas. Ao mesmo tempo, na continuação da linha profética do Antigo Testamento e na adoção de elementos de ruptura com aquela linha profética, Jesus vai se apresentar como profeta. Na continuidade daqueles, Jesus profeta denuncia as injustiças, a opressão dos poderosos; anuncia um novo tempo, uma nova humanidade. Diferentemente daqueles, Jesus já anuncia a chegada do Reino de Deus. Jesus já se manifesta como a realização das promessas. Uma realização cuja plenitude vai acontecendo após Sua ressurreição, e com o protagonismo do Espírito Santo. Jesus é a Palavra anunciada, enquanto sua plena efetivação vai se dar com a atuação do Espírito no mundo, contando com a participação dos discípulos do Movimento de Jesus. Nesse sentido, Jesus é a Palavra, para além de sua missão estritamente terrestre. É Palavra ao longo de toda a História. (cf. p. 41). Pela força dessa Palavra, os discípulos e discípulas de Jesus, à medida em que vão tomando sua estrada, passam a ser agentes colaboradores na formação e animação do Povo de Deus. Fundamentado em Jô 4, 23s, o A. afirma que passa a ser a Palavra o verdadeiro culto. (cf. p. 41). Interessante registrar o que o A. observa: antes da Ressurreição, Jesus era conduzido pelo Espírito Santo; após a Ressurreição, é Jesus quem passa a tomar a iniciativa: é Ele quem faz o envio do Espírito: “Antes da ressurreição, Jesus era portador das palavras de Deus e era conduzido pelo Espírito” (…) “Contudo, após a ressurreição, houve uma transformação: Jesus toma a iniciativa.”. (pp. 43-44).
Em sua vida terrestre, coube à Palavra chamar e reunir seus discípulos. Uma vez ressuscitado, é o Espírito quem vai agir pela força da Palavra, enviando os discípulos e discípulas do Seguimento de Jesus, ao longo da história, confiando-lhes a tarefa de formar o Povo de Deus, enviando-os a criar comunidades, sempre pelo caminho da Liberdade, sem forçar ninguém a acolher a Palavra, mas propondo uma vida nova, sobretudo aos desprezados, aos marginalizados, aos pobres.
Só a experiência do Espírito nos permite compreender o verdadeiro sentido de sua ação: “A partir de tal experiência é que se pode compreender qual é força do Espírito: é aquela força que se revela no evangelho para suscitar comunidades”. (p. 49).
Experiência que só é possível viver, quando se mergulha, de peito aberto, não no poder da lei, mas no Evangelho da Liberdade do Espírito. Inspirado em Paulo, o A. dedica algumas páginas deste capítulo a mostrar vários pontos que fundamentam a oposição entre o “ministério do evangelho” e o “ministério da letra”. Este se apóia na lei, em normas, em doutrinas, desembocando não raro na inércia característica do trabalho desenvolvido pelas estruturas eclesiásticas, razão por que se torna funcional a todas as elites, clericais e outras igualmente centradas no poder das autoridades: “O ministério da letra é uma imposição, uma forma de dominação das almas.” (p. 47). Por outro lado, “O ministério do evangelho fica na linha do ministério profético: por isso Paulo assimila a sua própria vocação a uma vocação profética (Gl 1, 15-16).” (p. 45). Daí a vitalidade dos trabalhos comunitários realizados sob o Sopro divino, a exemplo do acontecimento Pentecostes, com a aquele derramamento de dons sobre todos. Todos chamados à missão profética, o que supõe uma obediência à voz do Espírito que sopra onde quer, mas sempre respeitando a liberdade do atendimento, que se acha condicionado a uma série de barreiras, entre as quais o apego ao poder, à segurança, aos bens, razão por que é junto aos pobres que o Espírito recebe mais acolhida, e entre os quais os frutos aparecem com profusão. Neles a Palavra é multiplicada. (cf. pp. 50-53).
O A. enfatiza a densidade profética da atuação de Jesus, ao explicitar para quem veio: “Eu não fui enviado a não ser para as ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt 15, 24. Mesmo sentido, aliás, afirmado em Mt 10, 6).
Pelos caminhos da Liberdade
A partir daí, e sempre biblicamente bem fundamentado, o A. vai mostrando os desdobramentos dessa missão, pelos caminhos da Liberdade do Espírito. Ao longo das mais de vinte páginas correspondentes ao quarto capítulo, Comblin vai assinalando os embates e confrontos do Povo de Deus pelos caminhos da Liberdade do Espírito. Embates contra a morte. Tendo Jesus vencido a morte, somos com Ele chamados a uma vida de ressuscitados, vencendo o medo e as barreiras que nos impedem de fazer os caminhos da Liberdade do Espírito. Batalhas contra o pecado, aqui entendido em sua dimensão estrutural. Mais tarde, a Teologia da Libertação designaria essa luta como nossa disposição de vencer o “pecado social”. A libertação do pecado implica romper a submissão à carne (na acepção paulina), isto é, romper com as seguranças humanas depositadas no sistema, nos poderosos e suas estruturas. “O pecado consiste em pôr toda a sua confiança e segurança nos poderes da carne: confiar no dinheiro, nas armas, no prestígio, , na superioridade intelectual” (p. 60). Para romper com tal estrutura, o Espírito inspira pessoas que vão se libertando da escravidão do sistema, à medida que também vão se dedicando a ajudar pessoas e grupos a superarem a escravidão ao sistema, em suas relações econômicas, políticas e culturais. Nesse sentido, “Só é possível superar as estruturas de pecado a partir do momento em que existam pessoas capazes de pensar no bem dos outros independentemente do bem próprio.” (pp. 61-62).
Distingue o sentido de povo de Deus em relação às pretensões dos chefes de Israel, que restringiam a si próprios, à sua pátria, à sua nação, ao seu território, à sua cultura, todo o povo de Deus. A Lei para eles era tudo, e aí repousava o sentido de sua vida. O sistema lhes bastava, e não hesitavam em assumi-lo como a última palavra. É Paulo, um exímio conhecedor da Lei, uma vez convertido, quem ousa desmascarar esse sistema, como lembra o A, ao citar o próprio Paulo. (Rm 7, 6):“Agora emancipados da lei, estamos mortos para a lei que nos trazia presos, a fim de servirmos conforme o novo Espírito, e não à antiga letra.” (pp. 63-64).
Vale, porém, o alerta do A. quanto à atualidade dessa afirmação paulina. Não se trata de uma advertência válida apenas para as comunidades eclesiais primitivas. Hoje, também, o alerta continua pertinente. Eis por que, após remeter à ação profética de Paulo em relação aos Gálatas, o A. nos adverte, a justo título: “Voltar à escravidão da lei não é somente problema para os Gálatas. Foi e ainda é problema da Igreja: o apego às formas e ao sistema gera múltiplas injustiças, falta de misericórdia, dominação sutil mas cruel. O mesmo apego gera uma tremenda inércia de estruturas, uma preguiça, uma falta de chamas e caridade, uma frieza no meio às necessidades dos homens. Frente aos problemas do mundo, o apego à letra e à lei faz com que os membros da Igreja se assustem e reajam como todos os demais, buscando segurança, cuidando da sua sobrevivência, escutando os conselhos da prudência humana, quer dizer, da inércia dentro das coisas seguras” (p. 64).
Não menos instigante e profeticamente provocativa é a extensão da denúncia feita pelo A. a outras forças para além do âmbito eclesiástico. Com efeito, é assim que, com toda a propriedade e atualidade, ele adverte: “Fora da Igreja os mesmos comportamentos acontecem com muito mais razão ainda. Os grupos sociais, as nações, os partidos, as instituições apegam-se a seu sistema com medo de perder a sua identificação, a sua sobrevivência. Defendem o seu sistema de todas as maneiras, de acordo com as ameaças encontradas. Aceitam injustiça, mentira, fraude, até homicídios com o fim de salvar o sistema. Não se trata somente dos conservadores que procuram defender o que têm. O mesmo sucede com os seus rivais da oposição que procuram estabelecer as suas próprias estruturas. Também eles se submetem totalmente ao partido, ao sistema do partido ou do movimento.” (p. 64).
E aqui importa também ter presente o risco que se instala até nas iniciativas de resistência. Os “de baixo”, confiando apenas na força da resistência pelas armas, também podem reeditar a conduta daqueles que combatem. Podem deixar-se contaminar por sua grade de valores. Convém não esquecer que há trabalhadores com cabeça de patrão, mesmo dizendo-se trabalhadores.. Com isso o A. quer também mostrar os difíceis caminhos da Liberdade. Não raro, é grande a tentação de não se entrar para o caminho da Liberdade, na medida em que ela encerra riscos, sacrifícios. Não poucos são tentados a desistir dos caminhos da libertação, quando avaliam o preço a pagar, os sacrifícios a assumir, o risco de perder sua segurança. Só pela força do Espírito, é que se vai vencendo o medo, é que se vai exercitando o necessário discernimento que conduz à Liberdade, já que “Não há estruturas que sejam portadoras do Espírito por si próprias” (p. 65). Pelo exercício do dom do discernimento, as pessoas vão se libertando, primeiro, de si próprias, de seus medos, de seu egoísmo, de suas omissões. Não é fácil abrir-se ao serviço dos outros, de forma desinteressada. É assim que, ao se entender que Liberdade rima com Caridade, vai se descobrindo que “O ato de liberdade culmina na opção por um serviço.” (p. 69). Serviço como expressão de Amor. Não um amor/um serviço abstrato “universal”, de mera declaração comovida, mas um amor praticado em relação a pessoas concretas, em especial às pessoas e grupos marginalizados, ao “povo de todos os oprimidos”. Amor/serviço que se expressa em atitudes de solidariedade.
Na busca de se radicalizar essa solidariedade, ela deve expressar-se no plano histórico concreto. Solidariedade que desborde do plano estritamente eclesial, afinal o Povo de Deus está espalhado pelo mundo inteiro, não apenas nas fronteiras das igrejas e dos países. Uma solidariedade que se comprometa com a tarefa de construir as condições concretas de libertação de todo o Povo de Deus, e não apenas de um segmento. “Portanto, precisamos preparar outro tipo de sociedade além do estritamente nacional.” (p. 74).
“O penhor do Espírito”
Intitulado “O penhor do Espírito”, o capítulo V ajuda-nos a entender a presença vivicante do Espírito nos caminhos da História, e para além da mesma. Já início do capítulo, percebemos traços do esboço do primeiro livro resultante da proposta originária do A. (esboçada neste livro), em sua busca de compreender, de forma alternativa, a ação do Espírito no mundo. Referimo-nos ao livro O Tempo da Ação (1982). Já no livro ora resenhado, o A. manifesta sua intenção de compreender aspectos relevantes da Ação do Espírito, ao longo da história humana: “O Espírito constrói assim o povo de Deus, preparando o caminho para o advento definitivo do reino de Deus.” (p. 76). Impactante, a esse respeito, é perceber como o A., a partir de sua inspiração na teologia paulina, como em 1 Cor 15, 17-23, vai recolhendo desse baú tantos ensinamentos efetivamente fecundos e com enormes implicações práticas. Recolhe, por exemplo, os efeitos vivicantes da ressurreição de Jesus, ao lembrar que “há um laço íntimo entre a ressurreição de Jesus e a ressurreição dos eleitos.” (p. 78). Essa presença da Palavra, agora conduzida pela força do Espírito, vai mexer profundamente na ação dos discípulos e discípulas de Jesus.* A vida eterna animada pelo Espírito implica reconhecer, manter e renovar os sinais de ressurreição já aqui e agora, uma vez que “A presença do Espírito faz com que o cristão seja de certo modo introduzido na vida eterna.” (p. 79). Isto tem uma efetiva conseqüência prática: na medida em que a eternidade já começa aqui e agora, até porque “O Reino de Deus está próximo”; “já chegou até vós o Reino de Deus” (Mt 3,2; 12, 28), os discípulos e discípulas de Jesus são vocacionados, pela força do Espírito, a protagonizar a construção de um mundo novo. Essa é a marca impressa pelo Espírito, de que fala a Carta aos Efésios (1, 13-14); é a força que faz com que “até no abismo da escravidão, alguma coisa da vida eterna e da cidade livre, a nova Jerusalém, possa ser vivida.” (…), havendo “uma transfiguração da personalidade desde o tempo presente.” (p. 82).
Nessa direção, os discípulos e discípulas do Movimento de Jesus sentem-se chamados a refazer, já a partir de agora, as relações sociais e pessoais presentes. É aqui e agora que deve acontecer seu protagonismo, movido pela força do Espírito enviado por Jesus, o Enviado do Pai, vencendo a tentação de sucumbirem ao escapismo, sob a alegação falaciosa de que “só Deus dará jeito”, contribuindo assim para a passividade, que equivale a uma postura de cumplicidade com as estruturas ante as quais Paulo alerta a não nos conformarmos: “Não vos conformeis com as estruturas desse mundo” (Rm 12, 2).
Grande desafio para os discípulos e discípulas de Jesus é exercitar o discernimento, ao buscarem equilíbrio entre o presente e o futuro. O A. alerta para dois vícios que tendem a nos afastar dos caminhos do Espírito. De um lado (cf. pp. 82-89). De um lado, há os que se deixam absorver de tal modo pelo porvir (projetos, lutas, militância…), sem qualquer tempo dedicado à vida do dia-a-dia, que terminam, por vezes, surpreendidos, ao verem que chegam ao final da vida, sem que tenham alcançado suas metas gerais e sem ter quase nada usufruído da vida presente. Por outro lado, há os que o A. compara a quem anda com uma flor na mão nos campos de batalha: tão absorvidos estão com a santidade pessoal, que se tornam incapazes de escutar os grandes gemidos das gentes. A Pedagogia do Espírito ensina o equilíbrio.
Dons e carismas do Espírito
De que bens somos agraciados pelo Espírito? Eis a questão correspondente ao último capítulo do livro de Comblin. Com base em São Paulo, o A. trata de abordar sos dons espirituais, em sua ampla mutiplicidade. Os dons manifestam o penhor do Espírito. O primeiro sobre o qual reflete o A. é a oração. Diferentemente da oração de correspondentes a tantas culturas, a oração cristã distingue-se como um grito do ser humano face às fraquezas humanas, frente à opressão e às misérias do mundo. Um grito de um filho, em sua confiante entrega ao pai.
Dons que acompanham a experiência do ser humano, ao longo da vida. Os dons espirituais que vêm pela via dos sacramentos, também assumem formas bem humanas, como as artes e a festa. O Espírito dota os seres humanos de instrumentos, de caminhos que lhes permitem acesso ao penhor do mesmo Espírito. É isso que implica, por exemplo, a Oração no Espírito. Diferentemente do sucede a outros povos, em que a oração brota do medo e da angústia ante a morte e as doenças, a oração cristã brota da espontaneidade, da alegria, da confiança e da entrega, representadas no grito que o filho dirige ao Pai, produzindo um estado comparado por São Paulo como o de embriaguez, como sucedeu em Pentecostes. Não se trata de engessar a oração, com fórmulas e códigos, dotando-a de rigidez, por meio de mecanismos fixos (hora, lugar…): “O grito “Pai” é um triunfo sobre o mal da opressão e da injustiça, uma vitória das massas esmagadas e derrotadas. É o grito de vitória apesar da sensação contrária. É o grito de confiança no meio dos gemidos da história.” (p. 91).
Outra importante manifestação do Espírito, para a formação do Povo de Deus, se dá por meio de carismas de que o Espírito dota a todos, para o bem da comunidade, isto é, para a formação do Povo de Deus. Vale notar, a esse respeito, que a ênfase dada pelo A. recai sobre os carismas recebidos em função do bem comum, em proveito da formação do Povo de Deus, ou, nos termos paulinos, “para a edificação da comunidade”. Não por acaso que São Paulo “os assimila aos ministérios. Ele enxerga os dons espirituais do ponto de vista do seu papel na comunidade: são serviços. O dom não é considerado pela satisfação que dá ao sujeito; o que se estima no dom é o serviço que presta: os dons correspondem a diversos papéis sociais, diversos papéis que concorrem para a construção da comunidade. (…) Para ele a profecia vale mais porque é útil na construção da comunidade”. (pp.. 94 e 95).
Vasta é a ação do Espírito. O fato de atuar também no mundo não apaga sua presença nas pessoas, como vimos na entrega de dons a cada um, e como vemos em sua atuação nos espaços institucionais, como ocorre em relação aos sacramentos, em especial – lembra o A. – no Batismo e sobretudo na Eucaristia, em relação aos quais o maior apoio vem dos Santos Padres, com base na antiga tradição oral. Aqui se sublinha a força do Espírito como capaz de transformar a matéria, transfigurá-la (o pão, o vinho, a água, o óleo…). Dada uma sobrecarga de simbologia que se revela funcional ao comando hierárquico mais do que ao serviço das comunidades, como no caso, por exemplo, da multiplicação das bênçãos, o A. alerta: “A Igreja ampliou o sistema dos sacramentos por meio de inúmeras bênçãos. Houve bênçãos para quase tudo” (…) Cria-se também a falsa impressão de que se pode mudar o mundo simplesmente por uma bênção, por um gesto litúrgico, como se um pouco de água benta pudesse modificar o conteúdo real de uma realidade material e histórica. Favorece-se uma consciência mágica do mundo” (pp. 102-103),
Também na festa, no casamento, nas artes se faz atuante a presença do Espírito. Sendo estas realidades concretas na caminhada do Povo de Deus, o Espírito aí se faz presente. É o que o A. apresenta, nas páginas finais do seu livro.
Alguns ensinamentos recolhidos da leitura
Ao término extremamente provocativo e instigante dessa leitura, gostaria de repercutir brevemente algumas das impressões mais fortes e alguns ensinamentos que dela recolho. Uma primeira impressão: o cuidado espontâneo – tão espontâneo que é permanente – de Comblin, em fundamentar-se biblicamente, especialmente no tocante às fontes neotestamentárias. Sensação recorrente: a mesma que experimento sempre que o leio ou o escuto. Além de registrar isso com alegria, fiquei a me perguntar se não estaria aqui um dos elementos que dificultam uma eventual ofensiva por parte de Roma contra esse teólogo…
Senti-me diante de uma proposta de reflexão pneumatológica tão impactante quanto frutuosa. Disso dão prova, por exemplo, os livros que ela desencadearia, nas três décadas seguintes à produção desse texto, a partir de seus respectivos temas/questões de referência: a “Ação” do Espírito no processo de formação do “Povo de Deus” pela força da “Palavra”, agindo com “Liberdade”, pela forma generosa como se atende à “Vocação”, no cotidiano da “Vida”.
Antes, porém, desses desdobramentos criativos, há de se realçar mais fortemente o caráter inovador de que se acha impregnado este livro. Inovador por diferentes razões, a começar pelo fato de apresentar uma abordagem alternativa da missão do Espírito Santo. Inovação que ele elabora, também inspirado em alguns autores, a exemplo de Yves Congar, mas em cima de um contexto não menos novo, no campo pneumatológico: a América Latina sob o impulso e ressonância das conferências de Medellín (1968) e Puebla (1979), não sem se tornar uma interpretação bem ao modo da Teologia da Libertação.
Até então, a bibliografia atinente ao Espírito Santo restringia-se consideravelmente aos espaços intra-eclesiásticos (cantos, devoções, celebrações, sacramentos…). Daí decorria uma compreensão reducionista, de modo a tentar-se enjaular a ação do Espírito Santo nos espaços controlados pelas estruturas eclesiásticas, no caso, mais especificamente, a Igreja Católica Romana.
Interpretação reducionista, também, pelo fato de tornar a missão do Espírito Santo algo etéreo, abstrato, “espiritual”, sem qualquer implicação com as realidades concretas dos seres humanos, aos sinais dos tempos. Limitação que o A. atribui à imprecisão da tradução para as línguas ocidentais do vocábulo original.
À medida, porém, que se vai mostrando a fecundidade do Espírito em Sua ação no mundo, vão-se descortinando possibilidades de grande envergadura e de grande alcance sócio-eclesial. Graças à efetiva ação do Espírito no mundo, é que podemos sonhar acordados (Ernst Bloch) e comprometer-nos com a construção de um mundo alternativo, para o qual despontam, dentre outras, como tarefas ao nosso alcance:
– empenhar-nos na formação e fortalecimento de pequenos grupos e movimentos sociais, com projeto alternativo de sociedade. Tarefa que nos envolve diretamente no esforço de corresponder positivamente aos apelos do Espírito, em Seu projeto de formação do Povo de Deus, cujo processo de formação implica a multiplicação de pequenas comunidades livres e autônomas e, ao mesmo tempo, voltadas à construção da unidade de todo o Povo de Deus;
– investir o melhor de nós no processo de humanização do ser humano como um todo, e de todos os seres humanos. O Espírito nos chama a protagonizar a experiência de uma nova Humanidade, que faça justiça às legítimas aspirações de todo o Gênero Humano, na direção apontada pelo Sopro divino;
– ensaiar, já de agora, passos convincentes na direção da construção desse novo Povo de Deus, pelos caminhos da Liberdade e pela Pedagogia do Espírito.
Do alto de seus abençoados oitenta e seis anos, e com uma vasta produção que alcança em torno de setenta livros e centenas de artigos publicados em diferentes periódicos nacionais e internacionais, José Comblin também se destaca pela força inovadora de sua produção. No caso específico, no campo da Pneumatologia, cuja maior contribuição consiste em propor uma nova leitura da ação do Espírito Santo, tratando de desprivatizar um entendimento da missão do Espírito, antes exclusivamente vinculado à esfera intra-eclesiástica, mostrando, com ampla fundamentação neotestamentária, a ação do Espírito no mundo, especialmente Sua missão de formar o Povo de Deus, ao longo da História.