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Os primeiros escritos de José Comblin

Por Eduardo Hoornaert

Proponho-me a comentar aqui escritos menos conhecidos de José Comblin, principalmente os que ele elaborou ainda na Bélgica antes de viajar ao Brasil (1950-1958) ou nos primeiros anos do Brasil, quando ele ainda escreveu em francês (1958-1965). Penso em juntar também um comentário aos dois volumes de sua Teologia da Revolução, igualmente escritos em francês e publicados no início dos anos 1970. A intenção é de realçar a figura intelectual de Comblin, um aspecto talvez menos conhecido de sua personalidade.

Vamos aos seus primeiros escritos, elaborados em torno de sua Tese de Doutorado em Teologia na Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica, no início da década de 1950.

Bem jovem, Joseph Comblin (1923-2011, ainda não José) entra no seminário católico de Malinas, na Bélgica, e, se revelando bom nos estudos, é enviado à Universidade de Lovaina para estudar teologia.

Por que o estudante escolhe, para a difícil prova do Doutoramento em Teologia, trabalhar sobre o Apocalipse de São João? Curvado sobre o texto, no silêncio de seu quarto de estudos, lendo as primeiras palavras do Apocalipse: Desvelamento de Jesus Cristo, ele se sente atraído pela poderosa mística que emana do texto. Assim imagino. A mística que fez com que Mateus, em seu Evangelho, escevesse: nada que é velado deixará de ser desvelado, nada que é escondido ficará desconhecido. O que lhes digo na escuridão, repitam à luz do meio dia, o que se lhes sussurra na orelha, gritem em cima dos telhados (10, 26-27). Urge revelar Jesus Cristo o mais depressa possível, pois Jesus fica escondido por demasiado tempo. Há de se gritar em cima dos telhados o que se sussurra na orelha. Urge mostrar o que se deve mostrar, o mais depressa possível (Apoc. 1, 1). Nos textos do Novo Testamento se encontram nada menos de cem exortações acerca do que ‘deve’ acontecer, do que ‘deve’ ser anunciado: O Filho do Homem deve sofrer e morrer (Mt 8, 31), eu devo ocupar-me das coisas de meu Pai (Lc 2, 49), O Filho do Homem deve ser elevado da terra (Jo 3, 14). Tudo isso urgentemente, o mais depressa possível. Para João, o místico judeu que escreve setenta anos após a morte de Jesus, não há mais tempo a perder. Jesus Cristo tem de ser revelado logo:

Feliz quem lê e os que escutam

As palavras da profecia

E que guardam as coisas nelas expressas

Pois o momento, sim, urge (Apoc. 1, 3).

Como ressoam essas palavras na alma de um estudante, que cursa numa Universidade conhecida e estimada por procurar alcançar ‘ideias claras e precisas’ sobre o que vai escrito? Onde textos considerados obscuros e enigmáticos, permeados de imagens de difícil interpretação, costumam ser deixados de lado?

Aqui já temos uma primeira imagem do intelectual Joseph Comblin. Em meio a um ambiente intelectual impregnado de ‘cartesianismo’, ele se abre a um texto místico, cuja leitura postula, antes de tudo, o exercício de uma inteligência intuitiva, aquela inteligência que consiste em ver Deus nas coisas, como escreve Spinoza em sua ‘Ética’. Joseph não tropeça sobre imagens como a da luta entre a ‘Besta’ e os seguidores do ‘Cordeiro imolado’, do ‘Cavaleiro montado num cavalo branco’, do ‘Filho do homem’ a segurar sete estrelas na mão direita e uma espada afiada (que corta de dois lados) saindo da boca, etc. Ele não fica assustado com o turbilhão de imagens do Apocalipse, pois capta a inspiração geradora dessas imagens, dos símbolos, sugestões e evocações fortes e impactantes.

Penso que a opção do estudante Joseph Comblin, no sentido de escolher trabalhar em cima do Apocalipse, diz muito, não só sobre seu perfil intelectual, mas também sobre seu temperamento.  Ao longo de sua vida posterior, ele vai demonstrar que vem para ‘desvelar’, ‘revelar’, provocar, desafiar a inteligência de seus ouvintes, leitores e interlocutores.

O estudante Joseph se sente atraído pelo visionário judeu João, que ‘descobre’ Jesus Cristo, retira o véu da incompreensão, por meio de uma compreensão intuitiva de sua figura. Sua poderosa prosa, ‘obra de furor e paz, sangue e luz’, não amedronta o estudante, que resolve fazer sua Tese de Doutoramento em Teologia em cima de uma leitura do penúltimo capítulo do Apocalipse, o capítulo 21, acrescido dos primeiros 5 versículos do capítulo 22, à qual  dá o título La Liturgie de la Nouvelle Jérusalem (Apoc 21,1-22,5). No referido capítulo surge a esplendorosa visão da Nova Jerusalém, finalmente vencedora da Babilônia, onde reina a ‘Besta’ com seus lacaios. A Nova Jerusalém desce do céu num fulgor de luz e de paz. O jovem teólogo capta por que João opõe Jerusalém a Babilônia. E, logo após a conclusão de seu Doutorado, ele resolve retrabalhar o texto, alargar o tema e abarcar uma leitura do Apocalipse inteiro. Assim sai à luz seu primeiro livro: Le Christ dans l’ Apocalypse (Bruxelles, Desclée, 1965).

O livro, editado 56 anos atrás, ainda hoje merece ser lido. Consta do acervo de livros que Comblin, alguns anos antes da morte, doou para a Biblioteca da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Como sou feliz possuidor de um exemplar, dou aqui um breve comentário.

Não é à toa que Joseph retoma pacientemente a longa lista de comentários do texto, que cobrem dois mil anos (como você pode conferir por meio do verbete ‘Apocalipse’ no ‘Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs’, editado pela Vozes em 2002, pp. 126-127). Mas, enquanto muitos desses comentários, ao longo dos tempos, se atêm a estranhezas (o número 616; as sete trombetas e as sete taças, os quatro cavaleiros, a espada que corta de dois lados, os candelabros etc.), Comblin focaliza logo o cerne da questão: Babilônia e Jerusalém. A Babilônia, ‘a grande prostituta’ (19, 2), a ‘moradia dos demônios’ (18, 2), hospeda a Besta ‘que só abre a boca para proferir blasfêmias contra Deus’ (13, 6).Ela simboliza sucessivas dolorosas histórias, vividas pelo povo judeu, como o exílio babilônico do século IV aC, por exemplo. A história mais dolorosa se refere à corrupção própria Jerusalém, que decide, por meio de seu Sinédrio, crucificar Jesus. Eis o ponto fundamental, em torno do qual tudo gira. No momento em que Jerusalém condena Jesus, ela se torna cúmplice de Roma, a Babilônia. Mais: ao ‘matar o profeta de Deus’ (11, 8), Jerusalém vira uma nova Babilônia, domínio do Satã (11, 7-8) e executora dos profetas. Ao se alinhar com Roma, ela não é mais o ponto de convergência dos povos. Nasce uma Nova Jerusalém entre os cristãos, seguidores do mártir Jesus. Relacionando o drama de Jerusalém ao drama de Jesus, o Apocalipse projeta esse último num cenário mundial. Roma significa a mundialização da profecia de Jesus. Aqui vale a pena ler (para os que estão em condição!) a longa nota 2 das páginas 88-89 do livro que estou comentando, e que não cito aqui por falta de espaço.

A derrota política de Jerusalém no ano 70 dC (movimento dos zelotes) confirma a visão de João. A cidade histórica deixe de ser referência. Os cristãos fogem da cidade para Pella e aí se tornam o ‘resto espiritual de Sião’. Carregam consigo a Jerusalém espiritual. Como Jesus foi condenado em Jerusalém por Roma, os cristãos fogem de Jerusalém de Roma. A Nova Jerusalém é irredutível a Roma. No momento em que Roma reivindica a supremacia sobre o mundo, ela entra em conflito com Jesus (veja pp. 190-191).

Embora seu primeiro livro seja um primor, Joseph não se dá por satisfeito, pois sabe que esse livro nunca será lido por um público não versado em teologia. Então resolve retrabalhar o tema de modo menos acadêmico, em forma de ensaio, deixando de lado o pesado aparelho bibliográfico e mesmo a referência ao Apocalipse. Assim aparece em 1959 um novo livro, intitulado La réssurrection de Jésus Christ. Essai (Paris, Éditions Universitaires, 1959) e logo traduzido em neerlandês Hij is verrezen. Essay (‘Ele ressuscitou. Ensaio’; s’ Gravenhage, Pax, 1963). O livro é bem acolhido, ganha um elogio do professor holandês Grossouw, na época uma referência no mundo teológico e pastoral de língua neerlandesa: ‘Comblin é legível por um leigo não especializado, mas não é superficial. Não procura sensação por teses ousadas. Ele é um verdadeiro ensaísta. Paira um ar de liberdade. O leitor se sente bem, pois o autor não se exibe conhecimentos e conduz o leitor pela mão, como um guia. Ele é um autor ‘profano’, ou seja, dialoga com o mundo profano. Critica a teologia medieval que não entende a ressurreição, pois vive encapsulada na cristandade e não tem perspectiva de futuro diferente, democrático e secular. Mostra-se a favor da secularização e da democracia’ (edição neerlandesa, pp. 9-11).

Esses elogios fazem pensar em algo que permeia toda obra teológica de Comblin: ele não está empenhado em provar que ‘entende do assunto’, mas quer dialogar com seu leitor, sua leitora. Escreve em tom ‘ensaístico’, não ‘dogmático’, e nisso acompanha diversos bons teólogos da época, como Michel de Certeau, que não se refugiam numa ‘especialidade’, mas transitam livre e competentemente por diversos campos de conhecimento. Teólogos que não têm medo de enfrentar os grandes temas do cristianismo, acima das controvérsias, não se perdem em minúcias, não apresentam erudição, não entram em discussões e controvérsias, não discutem pormenores, mas só tratam de dados primários e fundamentais. Comblin não se exibe, vai direto ao assunto e pressupõe, por exemplo, que seu leitor seja bastante inteligente para captar que, em seu livro ‘A ressurreição de Jesus Cristo’, por exemplo, ele se move em campo místico, não definidor nem doutrinador. O autor nada mais pretende que apresentar uma síntese, provocar uma conversa com o leitor e, ao mesmo tempo, instigar a reflexão.

Desde esses primeiros livros, ao comentar o Apocalipse e o Evangelho de João, escritos considerados difíceis pelos exegetas, ele revela a humildade e sinceridade de um grande intelectual. Não pretende dizer a última palavra, não se refugia atrás de seu título de ‘Doutor em Teologia’, não se exibe como exegeta, conversa com seu leitor, sua leitora, está interessado em fazer com que se reflita. Enquanto os exegetas têm medo de comentar o Apocalipse, dizendo que não dominam a complexa literatura apocalíptica judaica da época, Joseph avança e depura o que está ‘por trás das palavras’ desse texto em muitos pontos enigmático. Permanece ‘provisório’, ‘incompleto’, consciente da provisoriedade de qualquer interpretação de textos tão complexos como são os textos atribuídos a João Evangelista.

Acrescento aqui um dado importante. Joseph vê no Apocalipse a chave de compreensão do quarto Evangelho. Uma fértil intuição, embora não aceita por todos os especialistas. Comblin enxerga no Evangelho a mesma poderosa prosa que ele encontrou no Apocalipse. João é alguém que parece dizer, a cada momento: como foi possível aparecer no mundo uma figura humana como Jesus!  Ele eleva a figura de Jesus ao mais alto dos céus, ao mundo sublime de Deus, à própria convivência divina. O que atrai no texto de João é a mais viva emoção que transparece a cada momento: a Verdade, a Luz e a Glória alcançam nosso mundo na pessoa de Jesus de Nazaré! Uma obra de excepcional inteligência intuitiva. Embora provavelmente poucos episódios narrados por João tenham a ver com acontecimentos reais, ocorridos na vida de Jesus, eles (as conversas com Nicodemos e com a mulher samaritana, a ressurreição de Lázaro, etc.) captam maravilhosamente o espírito de Jesus e do primeiro cristianismo.

Hoje temos o ‘best seller’ ‘The fourth Gospel’ (O quarto Evangelho, Harper One, 2013), do exegeta e bispo norte-americano (da igreja episcopal) John Shelby Spong. Mas quando lemos esse livro, verificamos – não sem surpresa – que, no fundo, o Comblin de 1959 combina com o Spong de 2013. Claro, o primeiro não dispõe do instrumental de análise linguística do segundo (escreve numa antecedência de mais de 50 anos), mas é interessante verificar que ambos concordam no essencial: a obra de João Evangelista e a obra de um místico judeu do final do século I dC, dotado de grandes habilidades literárias, de uma inteligência intuitiva excepcional.

Gostaria, para terminar, de comentar a impressão que o teólogo francês Yves Congar teve dos primeiros trabalhos de Comblin, especificamente dos dois volumes da sua Théologie de la Paix (Principes, editado em Bruxelles, Éditions Universitaires, em 1960, e Applications, pela mesma editora, em 1963), que Joseph – por sinal – redigiu a pedido do Cardeal Léon Suenens, da Bélgica. Congar escreve que esses livros são um peu touffus (‘um pouco espessos’, ou seja, sobrecarregados de detalhes).

É verdade. Mas há como argumentar que esses detalhes e essas frequentes anotações ao pé das páginas revelam algo que, com os anos, desaparecerá dos livros de Comblin: a preocupação em fundamentar a teologia na história concreta dos homens. Ao longo de toda a sua produção intelectual, José aborda sempre seus temas teológicos por meio de considerações históricas, e isso exige entrar em pormenores, escrever longas páginas para apresentar temas que, para muitos, pertencem a um passado morto. Acontece que o passado não está morto, mas vive no presente. ‘Quem desconhece o passado está condenado a repeti-lo’, diz o ditado. Ao longo de sua vida de intelectual, Comblin se distingue de muitos de seus colegas teólogos por nunca omitir a dimensão histórica do estudo teológico de não ‘pular’ em cima da história e evocar simplesmente a vida dos primeiros cristãos para apresentar experiências de hoje (na apresentação das Comunidades Eclesiais de Base [CEBs], por exemplo). José nunca passa diretamente da Bíblia ou dos primeiros tempos cristãos para a situação atual. Sempre considera a ‘tradição’, ou seja, a mediação dos dois mil anos de cristianismo. Assim ele não fala em CEBs sem falar da paróquia. Convencido que ‘o passado vive em nós’, não é nunca página virada. Negligenciado, pode se vingar, de modo inesperado.

Concluindo. Nos primeiros livros de Joseph Comblin, ainda dos anos 1950, que acabei de comentar acima, encontramos um estudante em teologia que consegue ver claro num turbilhão de imagens e símbolos, muitos deles enigmáticos para nós hoje. Um estudante capaz de superar a condição de ‘inteligência confusa’ e dizer as coisas com clareza meridiana. Uma clareza que – à primeira vista – se apresenta como ousadia, mas que na realidade é uma clarificação do pensamento (embora a muitos se apresente como provocação). Nesse sentido, o ‘Desvelamento (a apocalipse) de Jesus’ é o desvelamento da história do mundo, simbolizada pela transformação da Antiga Jerusalém, vergonhosamente humilhada pela Babilônia e que acabou se submetendo ao poder da ‘Besta’, em uma Nova Jerusalém, espiritual, que desce do céu e liberta os habitantes dos poderes imperiais deste mundo. Encontramos aqui outra poderosa imagem metafórica, a do Reino de Deus, que subjaz às falas de Jesus de Nazaré.

Fonte: Teologia Nordeste

(23-02-2021)

Prática do Padre José Comblin

Sua produção teológica e os projetos pastorais foram construídos a partir de uma apurada crítica aos sistemas políticos, econômicos e sociais que lhe eram contemporâneos. Tal crítica, associada não poucas vezes à ação da própria Igreja, tinha por intuito mostrar a contradição desses sistemas com a dimensão ético-social e eclesial mais profunda do Evangelho: o cuidado com os pobres. Esse cuidado, impulsionado pelos valores do Evangelho e pela força do Espírito presente e atuante na história, foi a marca da vida, da fé e das obras do eminente teólogo.

Nesse sentido, é figura simbólica para muitos cristãos e cidadãos espalhados pelo mundo, sobretudo na América Latina e no Nordeste brasileiro. Um dos grandes colaboradores da Teologia Latino-Americana da Libertação, com uma produção privilegiada em que se contam centenas de artigos e mais de setenta livros. Comblin foi um apaixonado pela causa libertária dos pobres, na perspectiva do seguimento de Jesus, o que abre perspectivas para reflexões sobre a identidade da fé cristã como também sobre critérios para o diálogo inter-religioso.

A diversidade e a amplitude dos temas analisados por Comblin, articulados de forma contextualizada com as diferentes áreas do saber (Filosofia, Antropologia, Sociologia, Psicologia, Economia e Ciências da Religião), nos permitem sistematizar sua reflexão a partir do diálogo entre Teologia Fundamental e as demais áreas da Teologia (Teologia Sistemática, Revelação na Sagrada Escritura e na Tradição cristã e a Teologia Prática). Trata-se de uma produção teológica relevante que oferece fundamentos não só para o trabalho pastoral, mas também para a produção teológica que privilegia a relação entre fé e vida, texto e contexto, Igreja e sociedade. A produção de teológica de Comblin é densa e contextualizada. E é essa segunda característica que nos permite falar de sua pertinência para os dias atuais. Comblin escrevia e refletia em seus escritos aquilo que vivia pessoalmente e que os destinatários de sua teologia, os pobres, viviam ou pudessem viver.

Mais sobre Comblin

Fonte: UNICAP – Centro de Pesquisa e Documentação José Comblin
(11-09-2019)

O deserto é fértil: partilha de uma semana de experiências nas “correntezas subterrâneas”

Com um ano de antecedência, por ocasião da II Romaria da Terra, realizada em Santa Fé (Solânea-PB), em memória do Padre José Comblin, foi agendado o compromisso, relativo ao fraterno convite feito pela Associação dos Missionários e Missionárias do Campo (AMMC) e pela Fraternidade do Discípulo Amado (FDA), para acompanhá-los e acompanhá-las, em seu encontro anual de 2019, no Sítio Catita, em Colônia Leopoldina – AL, onde se acha o Mosteiro da Fraternidade do Discípulo Amado, num sítio que fica a uns 12 Km (serra acima), de Colônia Leopoldina.

Como previsto, o encontro se deu, durante o período de 18 a 25 próximo-passados, com a participação de cerca de 30 membros de ambas as entidades. O alegre e tocante convite feito – e imediatamente acatado, com humildade e alegria – propunha a participação e acompanhamento de minha parte, no sentido de ver, ouvir, sentir e ressoar, junto aos participantes, acerca do que era refletido e partilhado por todos, por todas que do encontro participaram.

Da densa programação vivenciada destacam-se os seguintes pontos: marcantes momentos de oração comunitária e pessoal; relato de cada participante acerca de sua caminhada pessoal, familiar e comunitária; celebração, em Tacaimbó – PE, dos 50 anos da Teologia da Enxada; retiro tendo como principal “matéria-prima” e ponto de partida, as partilhas vivenciadas; a consagração de um novo membro da AMMC; a renovação dos compromissos daqueles e daquelas que pertencem à AMMC – alguns desde a fundação, há 25 anos; prestação de contas pelos membros da atual Coordenação dos trabalhos e atividades realizadas, no curso de último ano; eleição de membros para a Coordenação, em vista do próximo período.

Nas linhas que seguem, propomo-nos ressoar alguns aspectos da vivência desta densa e profunda experiência, digna da fecundidade característica das “correntezas subterrâneas” que irrigam e tornam viçosas as experiências aí em curso, qual “deserto fértil”, usando uma expressão cara a Dom Helder Câmara.

Desta rica experiência, ainda que correndo o risco de omissão, atrevo-me a mencionar os seguintes nomes, por Estado e por ordem alfabética (incluindo crianças e adolescentes):

Alagoas: Analene, Benedito, Cacau, Flaviano, Gabriel, Márcio, Sebastiana, Sirlene, Solange, Valdo;

Bahia: Genival;

Maranhão: Luiz Barros, Robertinho;

Paraíba: Ana, Clara, Deda, Francisco, Lucinha, Meirinha, Pedro, Severo;

Pernambuco: Barbosa, Catarina, Cida, Filipe, Geovan, Glaudemir, João Batista;

São Paulo: Alessandra, Maria Eduarda, Rafaela, Risal;

Sergipe: Jaime, Júnior, Moisés, Nanai;

Também os ausentes se fazem presentes, dentre os quais: Ana Cláudia, Raminho, Irmã Zarita, Irmã Marival, Alexandre, José Florêncio…

Quem é, e de onde vem essa gente?

Trata-se de missionários e missionárias vocacionados a trabalharem como e entre os pobres, no campo e nas periferias urbanas do Nordeste. Vêm da Teologia da Enxada, iniciada há meio século, e protagonizada por jovens (hoje, adultos e alguns já idosos) do campo e das periferias urbanas, que, sentindo-se vocacionados a servirem à Tradição de Jesus, orientados e alimentados pelos valores do Reino de Deus e Sua Justiça, seguem entregando-se ao convívio entre os pobres, seja como contemplativos (Fraternidade do Discípulo Amado), seja como casados, vivendo em família, a serviço da causa do Reino de Deus (Associação dos Missionários e Missionárias do Campo – AMMC, Escolas de formação Missionária). Alguns vivem em assentamento; outros e outras vivem do trabalho da roça (agricultura, criação de pequenos animais, apicultura), outros fazendo objetos do artesanato nordestino, há quem ganhe a vida como ambulante, como gari, outros vivem de sua aposentadoria, e há quem também receba contribuições em função de assessoria (por exemplo, à CRB), assim ganham o pão de cada dia. Suas respectivas associações são mantidas graças a uma caixa comum, alimentada pelas contribuições dos seus sócios e sócias e de colaboradores. Desde o Maranhão à Bahia, vivem inseridos no meio popular, como missionárias e missionários, enquanto outros e outras consagram-se à vida contemplativa, num mosteiro de leigos e leigas, que também trabalham para se manterem. Levam uma vida de simplicidade, com um estilo de vida muito próximo da média do povo dos pobres.

Encontros anuais

Tendo em vista a distância geográfica em que vivem, costumam encontrar-se todos os anos, no Sítio Catita, para realizarem atividades de formação contínua, para aprofundarem momentos conjuntos de oração mais intensa, para avaliarem e planejarem sua caminhada, para deliberarem sobre pendências, por meio de sua Assembleia Geral. A grande importância que atribuem a esses encontros pode ser dimensionada pelo enorme sacrifício que fazem, para se deslocarem de grandes distâncias, assumindo custos nada desprezíveis (há deles e delas que chegam a desembolsar até em torno de mil reais, para poderem participar desses encontros anuais). Além dos encontros anuais, também eles e elas se visitam, com certa frequência, conforme suas possibilidades.

Pontos fortes do Encontro 2019

 Oração: Memória e Compromisso: Os vários ramos da família combliniana (centro de formação de Missionárias populares, grupo de peregrinos e peregrinas, escolas de formação missionárias e outras) trazem em comum o empenho pessoal e coletivo na oração diária. Trata-se de dedicar momentos de sua jornada para expressarem sua fé por meio da oração. Uma oração que manifesta traços admiráveis, dentre os quais:

– Por meio de sua oração exercitam a memória e renovam os compromissos com a causa do Reino de Deus e sua justiça;

– Com o canto salmódico (Sl 51 – “estes lábios meus vem abrir, senhor”-), faz-se a entrada na oração, momento seguido da “recordação da vida”, seguindo o Ofício Divino das Comunidades, livro emblemático da espiritualidade de quantos e quantas seguem a Teologia da Enxada;

– Os cantos bíblicos, conforme o tempo litúrgico, cantados ou recitados, de modo compenetrado, instigam o louvor e a memória: a memória de diferentes momentos da caminhada do povo de Deus, ao longo da história;

– em se tratando de uma oração encarnada/contextualizada, o exercício da memória da caminhada do Povo de Deus, de ontem e de hoje, ajuda-os/as a reforçarem o compromisso com a causa do Reino de Deus, à medida que os/as inspira, numa perspectiva de maior entrega e solidariedade com todas as vítimas de injustiças e de perseguições;

– impulsiona-os/as ao aprendizado, na leitura e interpretação dos sinais dos tempos, e a busca de toma-los a sério, na convivência do dia-a-dia;

– Instiga-os/as a aprimorarem sua capacidade perceptiva, sua sensibilidade, em relação às dores, aos sofrimentos, mas também às alegrias e às esperanças do povo dos pobres; – todos esses (e outros) traços são ainda mais reforçados pela força transformadora dos cantos escolhidos para esses momentos, dentre os quais ocorre-me destacar, por exemplo: “Seduziste-me, Senhor”; “Antes que te formasses dentro do seio de tua mãe”, “Virá o dia em que todos, ao levantarem a vista, veremos nesta terra reinar a Liberdade, “Se calarem a voz dos profetas, as pedras falarão entre outros;

– Vale, ainda, destacar, no modo como se vivenciam os momentos de oração comunitária, o permanente cuidado, não apenas com o envolvimento de cada um, de cada uma, em ser responsável pela condução da oração, a cada dia, como também com o envolvimento dos membros mais jovens (adolescentes e crianças) nas atividades e leituras deste momento.

Tais momentos de oração também constituem preciosa ocasião formativa, à medida que, não apenas os/as recém-chegados/as, como também quem já está na caminhada há mais tempo, todos se empenham em fazer novos aprendizados e a irem incorporando-os em seu dia-a-dia, resultando daí elementos relevantes de seu processo organizativo e de sua ação mobilizadora, no quadro geral de seu processo de humanização;

Exercício de partilha

Já no segundo dia, após a chegada, reunindo-se num grande círculo, no principal salão daquele mosteiro, passou-se à socialização, por parte de cada participante, de trechos relevantes de sua experiência missionária, tal como vivenciada, no âmbito familiar, no plano comunitário, no trabalho e nas atividades missionárias desenvolvidas, nos últimos meses. Eis um outro momento de denso aprendizado para todos, sob vários aspectos:

– como se dá no dia-a-dia de cada pessoa, na vida em família, nos desafios enfrentados pela comunidade local (enfrentamento dos desafios de violência que vitima os jovens, os pobres as mulheres);

– na labuta nos assentamentos – os trabalhos na roça, a produção, a lida com os pequenos animais, com a apicultura, com as feiras agroecológicas, as marchas de solidariedade com os sem-terra e os sem-teto;

– os desafios da convivência com as comunidades das periferias urbanas;

– as vivências desafiantes em lugares com jovens e adultos dependentes de drogas, sofrendo toda sorte de influência e pressão do comércio de drogas;

– o constante exercício de discernimento para se lidar com uma vasta diversidade de perfis humanos.

Retalhos da celebração dos 50 anos da Teologia da Enxada, em Tacaimbó – PE

As chuvas que vinham caindo, nos últimos dias, sobre o solo encharcado da Serra do Catita tornavam mais difíceis os deslocamentos, naquela região. Mesmo assim, em um pequeno ônibus, saímos por volta das 6 horas, e seguimos viagem em direção a Tacaimbó. Por volta das 10 horas, estávamos chegando. A antiga cidadezinha de Tacaimbó de há cinquenta anos atrás havia mudado sensivelmente: muitas coisas haviam mudado, a olhos vistos: a população crescido rapidamente, novos bairros, novas ruas. A cidade estava em festa, inclusive com serviço de som a tocar canções características da caminhada da Teologia da Enxada, em especial “Eu acredito que o mundo será melhor, quando o menor que padece acreditar no menor” (Jorge Pereira de Lima, agricultor sergipano). Dirigimo-nos inicialmente, à sede do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, onde fomos acolhidos, com muita afeição, e onde nos foi servido um café saboroso. Em seguida, marchamos em direção à Matriz, em cuja lateral foi aposta uma placa comemorativa, com a presença do vigário local e do prefeito do município, Álvaro (que também passou pela trajetória da Teologia da Enxada, com sua mãe). Este momento foi coordenado pelo Monge João Batista Magalhães, apresentando as pessoas, chamando-as para uma breve fala, e também partilhando seu sentimento, como um dos fundadores da Teologia da Enxada, juntamente com figuras tais como Pe. José Comblin, Raimundo Nonato Queiroz (bem representado ali por sua esposa Cida Queiroz e seus filhos Catarina e Filipe), João Moura, João Firminio, Maria Emília Ferreira, contando com a participação também de Pe. Pedro Aguiar, de Frei Enoque, Antônio Gudes, o prof. Heleno, o prof. Adauto Guedes e tantas outras pessoas. Encerrado este momento, a marcha segue. Desta vez, em direção a uma Escola Pública local, em cujo auditório as pessoas participantes foram acolhidas, para um momento de rememoração desta caminhada. Foi formada uma grande mesa, à qual foram sendo convidadas diferentes pessoas da comunidade local, que haviam também protagonizado a história da Teologia da Enxada, em Tacaimbó, sendo convidadas a darem seu testemunho. Com a coordenação de João Batista, feita com muita leveza e discrição, pudemos ouvir com atenção e com emoção densos testemunhos, de cujo teor destacamos:

– a gratidão àquele grupo de seminaristas e sua Equipe de formadores e formadoras, pelo seu testemunho de pobreza e de compromisso com a causa libertadora dos pobres;

– a vida de simplicidade, a vida de trabalhos, a convivência fraterna com as pessoas da comunidade local, inclusive ajudando-as em seus trabalhos na roça;

– a construção de cerca de uma dezena de casas simples, feitas em mutirão;

– o importante apoio às lutas populares, às reivindicações da comunidade, à luta sindical, o apoio a candidatos da própria comunidade, como foi o caso do Prof. Antônio Guedes.

Na mesma Escola foi servido um almoço simples e bem preparado aos participantes. Já por volta das 14h30, seguimos em marcha em direção à Matriz, onde foi celebrada a Eucaristia, contando com muita gente da comunidade e um bom número de pessoas visitantes e solidárias à caminhada da Teologia da Enxada, dentre as quais:

– uma comitiva de irmãos e irmãs evangélicos (Pastora Elivete, Pastor Quino, Bispo Sebastião Armando e Madalena (sua esposa), Lindolfo, o casal Edvaldo e Anilda, da Fraternidade Leiga dos Irmãozinhos e Irmãzinhas Charles de Foucauld. Testemunhos marcantes e proféticos foram pronunciados e partilhados por essas figuras e por muita gente, ao final da celebração, presidida por três presbíteros (Robertinho, Nanai, Severo) da caminhada da Teologia da Enxada, e com a homilia do Diácono Genival, da Associação dos Missionários e Missionárias do Campo, atuando na Bahia. Um dia inesquecível! Por tudo o que havíamos vivido, demos graças a Deus. De volta ao Sítio Catita, no mesmo dia, tendo chegado por volta das 20h30, preparando-nos para a retomada dos trabalhos, no dia seguinte, dando continuidade às partilhas.

Assim como no sábado, também desde a manhã da segunda-feira, ocupando a tarde e a noite, seguimos ouvindo atentamente as partilhas feitas por todos e por todas, sobre sua vida, seu trabalho, sua vida missionária, sua vida familiar, sua vida de oração, etc.

Experiência do Retiro

Durante os dias da quarta-feira e da quinta-feira, foi vivenciada do retiro, em clima de silêncio, de contemplação, de meditação e de partilha, em busca de uma atenta escuta ao que o Espírito Santo tinha a dizer a cada uma, a cada um. Como “matéria-prima e ponto de partida, buscou-se trazer para este momento os relatos anteriores, atentamente escutado. E, alternando momentos de uma reflexão provocativa e momentos de escuta e oração (pessoal e comunitária), cuidamos de nos abrir docilmente ao que o espírito santo nos tinha a comunicar. Na intenção de ajudar os participantes neste exercício, foi distribuída à cada participante uma lista de questões (a quem interessar possa, seguem, ao final, estas questões), abrangendo o conhecido método, Ver-Julgar-Agir, com o intuito de provocar cada participante que assim o desejasse.

Consagração de um novo membro e renovação dos compromissos por parte dos membros participantes

Culminando o retiro, e com criativos arranjos e adornos do local da celebração participamos da eucaristia, presidida pelos presbíteros, durante a qual se deu a consagração missionária de Junior, seguindo belo ritual mantido pelos membros da AMMC, bem como tivemos a graça de presenciar, com muitos membros e famílias, moradoras da catita, a renovação das promessas de todos os membros da AMMC.

Assembleia e eleição da coordenação para o próximo período

Na sexta feira seguinte, dia 25, festa da conversão de São Paulo, os membros da AMMC reuniram-se em assembleia geral, para deliberam pendências da caminhada, bem como para elegerem os membros da nova coordenação.

Eis uma breve síntese do que consegui ver, ouvir e sentir, ao longo desses dias abençoados.

João Pessoa, 29 de janeiro de 2019.

PROPOSTA DE ROTEIRO PARA O RETIRO

  1. Quanto ao VER:

– No âmbito pessoal:

* Como me sinto enquanto criatura de Deus, enquanto ser natural, em convivência com a Mãe-Natureza e toda comunidade dos viventes?

* Como me comporto na contemplação da Criação, na convivência, no cuidado com, e no uso dos bens de nossa Casa Comum?

* Como lido com o meu corpo, com minha abençoada sexualidade, com minha saúde do corpo, da mente do espírito?

* Como me avalio enquanto homem / enquanto mulher, nas relações sociais de gênero?

* Como me penso enquanto Negro/Negra, enquanto Indígena ou descendente de outra etnia?

* Em que minha condição de um ser nascido onde nasci, me faz pensar em minhas particularidades (de nordestino, de nordestina; de sertanejo, de sertaneja, de agrestino, de agrestina; de pessoa nascida na zona da Mata; de pessoa nascido em outra região, em outro país?
* Como me sinto enquanto uma pessoa situada nesta faixa de idade, em relação a mim mesmo, a mim mesma e em relação a outras pessoas de outras faixas etárias?

* Antes de avaliar mais diretamente minha vida missionária, como anda minha vida como ser humano? A vida que levo, como ser humano, me tem feito feliz?

* Que aspectos de minha vida me fazem mais feliz?

* Que aspectos de vida pessoal me deixam insatisfeito?

* Como anda minha agenda? O que meu fazer cotidiano anda priorizando?

* O que venho priorizando, em minhas ações, que frutos vem dando?

* Se não tem dado fruto, por que será? Tem algo a ver (também) comigo?

* Que atividades tenho realizado, que avalio mais frutuosas?

* A que fatores eu atribuo tal êxito?

* Que atividades de minha agenda não me parecem satisfatórias?

* Como avalio essas dificuldades?

* Que atividades considero frustradas?

* Por que isto teve tal desfecho?

* Eu (também) terei alguma parcela de responsabilidade nisto?

No âmbito comunitário

– O que, na via comunitária, mais me atrai?

– O que nela mais desafia?

– Num rápido balanço, eu acho que contribuo mais com a vida comunitária ou da vida comunitária tudo recebo, em quase nada contribuindo?

– Percebo a comunidade da qual participo como exclusiva ou me sinto chamado a colaborar também com outras, que também faço minhas?

No âmbito do Trabalho

– Como me percebo no mundo do trabalho?

– Como me avalio enquanto enquanto trabalhador/trabalhadora do campo?

– Que sentido faz para mim minha rotina de trabalho?

– Para quem trabalho? O que produzo?

– Eu me vejo no que produzo?

– Para onde vai o que eu produzo?

No âmbito de minha/nossa formação contínua

– Como associo minha rotina à necessidade de formação contínua?

– Que tempo dedico/dedicamos a refletir o que faço/fazemos?

– Que textos ou livros estou/estamos lendo?

– Com quem partilho/partilhamos essas leituras?

– Que balanço posso/podemos fazer do tempo dedicado à formação, enquanto ser humano, trabalhador, cidadão…?

No âmbito da Cidadania

– Tal como em outros planos, também aqui busco estar atento e vigilante aos sinais dos tempos?

– Atuando mais diretamente no âmbito local, procuro perceber e levar a sério os laços orgânicos que há entre os acontecimentos locais, regionais, nacionais e internacionais?

– Apesar de minhas/nossas limitações, busco sempre dotar-me de instrumentos que me ajudem a ler, interpretar e intervir mais coerentemente a realidade social, econômica, política e cultural?

  1. Quanto ao JULGAR

No plano da Mãe-Natureza:

– Assim como Jesus, que não cessava de aprender da Mãe Natureza (ver a profusão de parábolas inspiradas em fenômenos e aspectos da Mãe-Natureza), eu também busco aprender com a Mãe-Natureza, sob as mais diversas manifestações?

– Como Daniel e seus companheiros, como Francisco e tantas outras pessoas, eu contemplo e louvo o Criador pela Sua Criação?

 – Quem ama cuida: busco testemunhar esse cuidado com a Criação, em meu dia-a-dia, no meu trabalho, no cuidado com as plantas e os animais, na sobriedade do consumo dos bens da natureza, na mística da agroecologia, no re-uso, no tratamento do lixo, etc., etc., etc.?

 – No cuidado com a saúde do corpo e da mente, inclusive por meio da vivência de uma rotina frutuosa?

No plano do trabalho:

– O que faço no dia-a-dia, que ligação tem com os valores do Reino de Deus?

No plano da cidadania:

– Como costumo ler os sinais dos tempos, tal como Jesus fazia?

– A que fontes recorro para buscar acompanhar a realidade e interpretá-la?

– O que faço para aumentar minha consciência crítica de modo a não engolir fake News?

– Como interpreto, na prática, a recomendação de Jesus de que “Entre vocês, não será assim” (cf. Mc 10, 42 – 45)?

– Que esforço concreto de autocrítica busco/buscamos fazer em relação aos malfeitos no âmbito político?

– O que estamos semeando como ação alternativa às práticas dominantes no cenário político?

No âmbito das relações familiares

– Que lugar tem a família em meu/nosso dia a dia, na perspectiva do Reino de Deus?

– Nas relações de gênero, como tento me comportar?

  1. Quanto ao AGIR

– No que sou chamado a mudar em meu processo de conversão, em cada um dos itens acima mencionados e em outros tantos?

Serra do Catita, 18 – 25/01/2019.

Um tufão chamado José Comblin

Por Newton Darwin de Andrade Cabral, Luiz Carlos Luz Marques

No campo dos estudos das religiões, há expoentes que são como tufões. Na Teologia, em específico, um tufão euro-tropical tem nome: José Comblin!

Europeu, fez-se latino-americano; nascido na Bélgica optou por viver grande parte de sua vida no Brasil, onde Joseph ficou o nosso “bom José”, diríamos com Drummond, embora ele tenha sabido deixar-se guiar pelo Espírito e propor respostas quando esteve diante dos inúmeros “e agora, José?”, que lhe foram colocados por circunstâncias políticas e eclesiais, as bruscas variações atmosféricas que enfrentou, escreveríamos por fidelidade à metáfora que estamos usando.

Com o Dossiê José Comblin, acrescido dos instigantes artigos propostos e aprovados para Temática Livre, encerramos o último número do volume 2018 da Paralellus – Revista de Estudos de Religião, do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião, da Universidade Católica de Pernambuco.

Leia o artigo na íntegra:

http://www.unicap.br/ojs/index.php/paralellus/article/view/1356/pdf

A Teologia da Enxada como ação do Espírito no povo de Deus pelos caminhos da História

Considerações a partir do livro de José Comblin. O Tempo da Ação. Ensaio sobre o Espírito e a história. Petrópolis: Vozes, 1982.

A Teologia da Enxada completa seus quarenta anos. De 9 a 12 de outubro de 2009, uma parte considerável de seus protagonistas – os de ontem e os de hoje – estiveram a confraternizar-se, em Serra Redonda – PB, num encontro marcante de celebração, de rememoração, de avaliação e de um esforço prospectivo. Seus protagonistas compõem uma família diversificada = a Associação de Missionários e Missionárias do Campo, o Centro de Formação Missionária/Fundação Dom José Maria Pires, a Fraternidade do Discípulo Amado, a Associação da Árvore, as  Missionárias do Meio Popular, Associação dos Missionários e Missionárias do Nordeste, a Associação das Escolas Missionárias, mantendo uma relação orgânica com outros grupos e expressões da Igreja dos Pobres, como as CEBs, as PCIs, o CEBI, o Grupo de Peregrinos e Peregrinas do Nordeste, as Pastorais Sociais, num amplo espectro no qual reconhecemos traços vigorosos do rosto da “Igreja na Base”.

Em se tratando de uma expressão mais nordestina da Teologia da Libertação e experiência formativa de enraizamento cristão no meio dos pobres, a Teologia da Enxada tem muito a comemorar, ao tempo em que trata de exercitar um olhar avaliativo, e prospectivo, em busca de responder aos novos desafios da conjuntura social e eclesial, na perspectiva do Seguimento de Jesus.

Momento propício para refletir distintos aspectos dessa caminhada. Nas linhas que seguem, ensaiamos focar um desses tantos pontos: o referencial teológico que melhor fundamenta e inspira a experiência da Teologia da Enxada. Em três momentos tratamos de organizar as presentes notas: 1) um sucinto quadro mnemônico dos fundamentos da Teologia da Enxada; 2) a redescoberta da missão do Espírito Santo no mundo; e 3) novos desafios na caminhada da Teologia da Enxada.

  1. Rememorando alguns traços históricos da Teologia da Enxada

A despeito da clara prevalência, no Concílio Vaticano II, de um perfil entre moderado e conservador do episcopado participante, foi amplamente reconhecida a atuação de um grupo de bispos – entre os quais Dom Helder Câmara é considerada como uma de suas referências – que desempenhou um papel significativo, no empenho da ação profética da Igreja no mundo. Esse grupo, que reuniu algumas dezenas de bispos de diferentes continentes, ficou conhecido como o do “Pacto das Catacumbas”. Mas, foi, sobretudo, no contexto da Conferência de Medellín, na mesma esteira da caminhada das CEBs, da Teologia da Libertação, foi sendo tecida, pela ação do Espírito, a Teologia da Enxada, no final dos anos 60, a partir de dois núcleos iniciantes – um em Salgado de São Félix – PB – e outro em Tacaimbó – PE.

Já de início, os protagonistas dos primeiros núcleos da Teologia da Enxada, em boa parte compostos de jovens seminaristas, descontentes com o tipo de formação recebida, compartilhavam o sentimento da necessidade de buscar uma formação alternativa, à altura dos desafios dos novos tempos. Em grande parte, de origem rural, sentiam o fosso entre uma formação com demasiado acento na apreensão intelectual de temas e problemas que tinham pouco a ver com os desafios do cotidiano do povo, especialmente os pobres das periferias urbanas e do mundo rural.

Sob o impulso daquele abençoado contexto inspirado pelas prioridades de Medellín, a opção pelos pobres sendo a primeira, ousaram ensaiar, com a orientação e acompanhamento de formadores como o Pe. José Comblin, um caminho formativo diferente, a começar pela opção de fazê-la junto com os pobres, e vivendo como pobres.

Aspectos do tipo de formação dessa ousada experiência acham-se registrados no livro organizado pelo Pe. José Comblin, intitulado Teologia da Enxada. Uma experiência da Igreja no Nordeste. publicado pela Vozes, em 1977. Dizem respeito aos propósitos formativos da experiência, inicialmente voltada à  formação de jovens do meio rural, vocacionados ao presbitério. Experiência que se realizaria, em inícios dos anos 80, no Seminário Rural, inicialmente instalado numa pequena área chamada Avarzeado, no município de Pilões – PB, em 1981, pouco tempo depois (1982/3) transferido para Serra Redonda, com o firme apoio de Dom José Maria Pires, então arcebispo da Paraíba.

Após passarem por vários dias de reflexão, no exercício do discernimento, acompanhados por uma Equipe de Formadores, e por uma criteriosa avaliação, em que se buscava ajudá-los num primeiro discernimento entre o caráter daquela proposta e o que sentiam aqueles jovens, em processo de admissão ao Seminário Rural, foi assim que por lá passariam dezenas de jovens do meio rural de vários Estados do Nordeste e até de fora do Nordeste. Aí passavam dois anos, numa experiência formativa que incluía, além dos estudos teológicos e da realidade social, o cultivo da lavoura e a criação de pequenos animais, como meio de contribuir para sua própria sustentação, bem como as atividades litúrgicas e atividades pastorais, junto às comunidades vizinhas. Nos dois anos seguintes, sempre contando com a participação de uma equipe de formadores, passavam em comunidades rurais, a estudarem, a trabalharem e a acompanharem as atividades das respectivas comunidades, numa atitude de aprendizado, vendo, ouvindo, sentindo e registrando diferentes aspectos de suas experiências. A formação se completava nos dois anos seguintes, quando assumiam o compromisso de irem ajudar a fundar novas comunidades, noutras regiões, sempre acompanhados pela Equipe de Formação.

Essa fecunda experiência de formação de jovens do meio rural vocacionados ao presbiterado, que tinha contado com a aprovação do Papa Paulo VI, foi negativamente avaliada no pontificado do Papa João Paulo II, e desaprovada como insuficiente em sua proposta curricular… A partir daí, a experiência é mantida, mas na perspectiva de formação missionária para jovens do meio rural. E assim evoluiu, com a participação de várias dezenas de jovens.

Experiência que se mostrava aberta e sensível aos sinais dos tempos, o que implicou a necessidade de se adaptar aos vários perfis e carismas de seus formandos. Nascem, assim, várias ramificações da mesma experiência: inicialmente, com a iniciativa de criar associações com caráter autônomo, tal como a Associação de Missionários e Missionárias do Campo, a Associação da Árvore. Uns, sentindo-se mais vocacionados a uma vida contemplativa (Fraternidade do Discípulo Amado, passam a viver uma experiência monástica de novo tipo, bem sintonizados com as necessidades, as aspirações, as lutas, as dores, as alegrias e as esperanças do povo dos pobres, passando a viver no Sítio Catita, em Colônia Leopoldina – AL;

Outros continuaram vivendo no Centro de Formação Missionária, constituindo a Fraternidade São Marcos, dedicando-se à formação de jovens do meio popular rural e urbanos, em cursos oferecidos em vários formatos, conforme o perfil dos jovens formandos, vindos de experiência de animação de grupos de jovens, das pastorais sociais, de atuação sindical, de militância em movimentos sociais, ONGs, partidos políticos populares, ora em formato de finais de semana, ora em quinzenas semestrais, para os quais eram e continuam sendo oferecidos cursos versando sobre temáticas várias: formação de educadores populares, cuidados do meio ambiente, cultura de paz, comunidades quilombolas, entre outros.

Outros sentiam-se chamados a uma vida itinerante, a peregrinarem pelo Nordeste, em consonância, aliás, com o Grupo de Peregrinos e Peregrinas do Nordeste. Convém, ainda, lembrar mais uma experiência dessa mesma “família”: a fundação da experiência formativa específica às jovens do meio rural. Eis que, em 1986/7. Mogeiro passou a ser a sede da formação dessas moças do meio rural, as Missionárias do Meio Popular. Outra experiência fecunda, também na área da formação, foi a fundação das Escolas Missionárias, no final dos anos 90, espalhadas por vários Estados: Bahia, Piauí, Paraíba, Tocantins, Pernambuco.

Convém, ainda, ter presente que várias outras experiências daí nasceram ou guardam consideráveis vínculos de afinidade, a exemplo da fecunda experiência de formação protagonizada pelo DEPA – Departamento de Pastoral e Assessoria, animada por uma Equipe de Formadores, da qual faziam parte: Pe. Humberto Plummen, o atual bispo anglicano Dom Sebastião Armando Soares, Pe. René Guerre, os Professores Eduardo Hoornaert, Ivone Gebara, Luiz Carlos Araújo, Marcelo Agusto Veloso, entre outros.

A partir desse sucinto relato de elementos relativos à Teologia da Enxada, tratamos de focar o que entendemos como os fundamentos axiais da proposta formativa dessa experiência. Fundamentos que brotam de um entendimento novo da missão do Espírito Santo no mundo. Tema em relação ao qual a obra do Pe. José Comblin, especialmente a de caráter pneumatolótico, vem dando, pelo menos desde 1978, uma profunda contribuição. Nossa questão, agora, é: em que vem se inspirando a fecunda experiência da Teologia da Enxada? Que importância ela atribui à ação do Espírito Santo na História do Povo de Deus, ontem como hoje?

  1. A ação do Espírito Santo sobre o Povo de Deus pelos caminhos da História

Do vasto leque de temas trabalhados por José Comblin, em seu frutuoso percurso existencial e densa produção teológica, a ação do Espírito Santo no mundo, na história e na construção do Povo de Deus destaca-se sobremaneira. Mais do que uma simples inquietação circunstancial, esse tema nele se tem constituído um alentado projeto de incessantes buscas. Desse projeto, iniciado sobretudo a partir de seu livro O Espírito no Mundo (Petrópolis: Vozes, 1978), e ao qual dá seqüência com a publicação de uma meia dúzia de livros[1], este do qual ora nos ocupamos constitui um de reconhecida relevância e repercussão, dentro e fora da Igreja Católica latino-americana.

Já tivemos ocasião de nos deter em outros textos de Comblin, a exemplo de O Espírito no Mundo e de O Povo de Deus. Agora, houvemos por bem, e em conseqüência dos estudos sobre a obra de Comblin, que vêm sendo objeto de trabalho de um pequeno Grupo, debruçar-nos sobre o presente, nos termos anunciados no título dessas notas.

Iniciamos pela forma como vem estruturado o livro, aqui apresentando um quadro  panorâmico da obra, para, em seguida, propor um passeio mais detido pelos capítulos da mesma. Não por acaso, o mais volumoso dos estudos pneumatológicos publicados por José Comblin. Em quase quatrocentas páginas, cuja introdução toma dez por cento, ele distribui em nove densos capítulos sua fecunda incursão, iniciando pela explicitação e precisão dos conceitos com que trabalha, ao longo do texto, inquietação a que dedica os dois primeiros capítulos, destacando os sentidos da ação na história e na construção do povo de Deus.

O terceiro capítulo é dedicado a uma apreciação crítica das relações entre o Cristianismo e o Helenismo. A marcante penetração deste nas manifestações do Cristianismo e suas profundas implicações, de modo a destacar suas negatividades. O desafio a Cristandade é alvo de análise do quarto capítulo, onde historiciza as relações características vivenciadas pelos cristãos nesse período, destacando as terríveis implicações, sem deixar de reconhecer aspectos positivos.

“A Reforma em questão” é como intitula o quinto capítulo, em que cuida de situar historicamente a proposta da Reforma, em suas positividades e em suas inconsistências.O sexto capítulo trata do “choque da modernidade”. Nele, o autor aborda criticamente o impacto da “civilização do trabalho” e a posição da Igreja Católica e do Cristianismo, seja quanto a uma rígida oposição, seja quanto a uma aproximação. O estudo se estende até o pós-Vaticano II.

O sétimo capítulo ocupa-se de analisar “a era das revoluções”, destacando seu contexto histórico, suas relações com o Cristianismo. Aborda, também, o sentido da ação revolucionária, bem como os aspectos positivos e negativos dos processos revolucionários. Por fim, o autor situa um impactante quadro de desafios conjunturais (oitavo capítulo), em relação a que importa exercitar o discernimento (nono capítulo), para se captar o sentido da ação inspirada pelo Espírito.

Tendo fornecido um leve quadro sinótico do livro, buscamos, em seguida, resumir e destacar aspectos pontuais de cada capítulo, começando pela própria

Apresentação e introdução do livro

Já na apresentação do livro, cuida o autor de explicitar o caráter de sua produção. Reconhecendo a vastidão do alvo de suas inquietações externadas no presente livro, prefere propô-lo em termos em que expressa profunda modéstia: propõe seu livro em termos de um ensaio, de uma hipótese, de uma sugestão, não obstante tratar-se de um texto com 389 paginas, fruto de uma pesquisa de longo fôlego, amparando-se em fontes e autores de reconhecida contribuição. Trata, igualmente, de assinalar o lugar social e o contexto sócio-histórico a partir dos quais propõe sua reflexão. Esta brota de um lugar e de um contexto bem concretos: o caminhar da Igreja Católica na América Latina da primeira metade dos anos de 1980. Daí é que despontam as interrogações partilhadas no livro.

Começa a introdução com uma afirmação lapidar e emblemática: “Deus é ação. Nosso Deus é um que age: que liberta, constrói, transforma.” E, com propósito de contextualização sócio-histórica, parte, em seguida, para uma constatação tocante, inclusive pela sua refinada sensibilidade ecológica, já então (vale lembrar o livro foi publicado em 1982)> recorda que em cem anos, a população do mundo passa de um para seis bilhões, o que implicou a emergência dos seres humanos, da sociedade humana, como o maior desafio a ser enfrentado pela ação, pelas profundas implicações que tem representado essa enorme expansão da presença humana no Planeta (cf. p. 13).

Por conta de tal desafio sócio-histórico, a Igreja é instada a passar de uma ação voltada para si mesma, para abrir-se, solidária, aos desafios do mundo, da história, de toda a sociedade, de promover o bem de todos os homens, cristãos e não-cristãos. É instada a contribuir efetivamente com o processo de libertação do homem todo e de todos os seres humanos (cf., por ex., a encíclica Populorum Progressio, do Papa Paulo VI, de 1967).

Na esteira do anúncio da ação libertadora de Deus no mundo e na história, o livro indica os fundamentos e inspirações mais fortes dessa abordagem da ação do Espírito. Um desses elementos é a Teologia da Libertação, na medida em que nasce e se afirma, pela força do Espírito, como uma proposta de reflexão e ação dos cristãos na América Latina, no fecundo contexto sócio-históricos de Medellín (1968) e de Puebla (1979). Uma proposta de reflexão teológica, então ainda apenas anunciada, em suas bases e traços gerais mais fortes: o espírito profético de denúncia das profundas desigualdades sociais, o compromisso com a causa libertadora dos pobres e oprimidos, tomando estes como sujeitos de seu processo libertador, o exercício de uma consciência mais forte da Igreja Povo de Deus, abertura ao exercício de um ecumenismo de base, entre outras características que, em seguida, seriam tomadas como alvo de uma alentadora proposta de produção teológica, como a expressa pelo Projeto “Teologia e Libertação”, do qual resultaram importantes contribuições, em diferentes domínios, desse novo modo de fazer Teologia (a Teologia da Libertação), da qual o autor é uma das principais referências.

No seio da Teologia da Libertação, vai se produzindo uma fecunda gestação de formulações inovadoras, a exemplo da Cristologia. No caso do presente livro, o propósito explícito do autor é de contribuir num domínio específico e organicamete articulado a outros: o campo pneumatológico, o da ação do Espírito Santo no mundo. Neste caso, tratava-se de continuar a contribuir, pois desde a década precedente, já iniciara sua contribuição (O Espírito no Mundo é de 1978). Espírito e libertação – eis o terreno mais impactante de sua contribuição, desde então.

Tal é o alcance da contribuição do autor, enquanto um dos formuladores da própria Teologia da Libertação, que, mesmo reconhecendo que a TdL achava-se então ainda como um anúncio, precisando de consolidar-se em diferentes esferas, propõe-se contribuir na esfera da ação do Espírito Santo no mundo, tendo o Espírito como uma das mãos com as quais Deus age no mundo, na história e entre os homens (a outra é Jesus). Já àquela altura, sentia-se à vontade para tecer um comentário crítico na tendência de então de se fazer Cristologia, a partir de uma perspectiva eclesiológica ocidental. Sua avaliação, a esse respeito, revela-se bastante crítica: “Até o momento pode-se dizer que as teologias da libertação têm seguido os caminhos traçados pela teologia ocidental. É notório que ignoram as teologias do Oriente. Buscam uma cristologia, mas o mais das vezes se fundamentam, antes de tudo, numa eclesiologia. O fato se torna mais grave, visto que querem ser teologias da práxis, e se abordamos o cristianismo pelo ângulo da práxis, aquele que de imediato encontramos é o Espírito.” (p. 22).

A teologia ocidental parece não haver encontrado em suas sínteses o lugar certo da Terceira Pessoa da Trindade. Até que se invoca sua presença, lembra o autor, mas quando se trata de pedir-Lhe que confirme as decisões já tomadas, sem um esforço concreto de escutar o quê o Espírito tem a nos dizer. Uma forma inconsciente de se tentar privatizar o entendimento da missão do Espírito Santo?

Essa incompreensão ou entendimento insuficiente da missão específica do Espírito Santo na História tem implicado equívocos diversos. Um deles: a tendência a um certo cristomonismo, à medida que se acha completamente acabada mensagem cristã, após a ascensão de Jesus e a partida dos apóstolos. Tudo que se tinha a dizer, já teria sido dito. Agora, nossa missão é só repetir. É aí que se escanteia a missão específica do Espírito Santo, o enviado do Ressuscitado, que continua agindo sobre o Povo de Deus, inspirando-o em suas buscas, em suas lutas de transformação, na perspectiva do Reino de Deus.

Devem-se a tal incompreensão da especificidade da missão do Espírito Santo sucessivos equívocos: o de julgar-se a Igreja como a continuadora do próprio Cristo, portadora dos seus poderes divinos, em vez de pensar-se estabelecida sob Seu poder. Mais: com tal compreensão, a Igreja julga ser função sua apenas conservar, repetir e difundir as verdades reveladas como sendo toda a Revelação; o equívoco de, ao definir-se como divina e humana, atribuir uma divisão rígida entre essas duas dimensões, de tal modo que, em virtude de seu lado divino, retém para si automaticamente qualidades que somente a Deus deviam ser aplicadas, e, em relação à sua dimensão humana, só retém as fragilidades, os pecados, as fraquezas, sem admitir também as potencialidades, as virtudes como também fazendo parte da dimensão humana, graças à atuação do Espírito na humanidade, na história; o equívoco de trabalhar apenas a unidade/uniformidade, fazendo uma leitura negativa da diversidade/multiplicidade, enquanto, em verdade, uma melhor compreensão da missão do Espírito Santo, a ajudaria a ver positividades e e negatividades tanto na unidade quanto na diversidade. Diferentemente do entendimento hegemônico na teologia ocidental, de que a unidade é divina, enquanto a diversidade é coisa humana, Comblin pondera que “a unidade como a multiplicidade, a uniformidade como a diversidade, são divinas e humanas, ao mesmo tempo. O Cristo é princípio de unidade, mas o Espírito é princípio de multiplicidade. Se existem formas de diversidade que constituem fraquezas devidas à fragilidade humana, existem também formas de unidade que são devidas à mesma fraqueza humana.” (p. 26). E conclui: “A volta ao Espírito restaura a plenitude das dimensões divinas e humanas da salvação.” (ib.).

A partir dessa compreensão, o autor prossegue sua instigante reflexão, sempre bem fundamentado biblicamente. Assim, cuida de bem articular e distinguir as atribuições de Cristo e do Espírito Santo. Entre as Pessoas da Trindade, há uma unidade tocante, como há uma diversidade de funções. É o que acontece também em relação a Jesus e ao Espírito: suas atribuições comportam uma notável unidade bem como uma diversidade notável, sendo que esta é muito pouco observada na teologia ocidental. Donde o cuidado do autor, de acentuar tal distinção, sem prejuízo da unidade entre as Pessoas Trindade. “Para nos levar ao Cristo não outro caminho senão o Espírito.” (p. 30). E o Espírito dispõe para cada um, para cada uma, uma multiplicidade de caminhos cuja unidade é assegurada pelo próprio Espírito.

Nessa mesma linha, Comblin aborda a missão do Espírito, nas diferentes situações humanas, inclusive quanto ao esforço de conhecer que comporta armadilhas, à medida que pretendemos conhecer a Deus, a partir de nossos esquemas próprios, de nossos métodos, o que implica apenas ter-se uma idéia de Deus. Só pelo Espírito chegamos ao verdadeiro conhecimento de Deus, pondo em prática seus ensinamentos, e não apenas limitanndo-nos a conhecimento intelectual. O mesmo se dá em relação à Igreja, à conversão – como expressão da ação do Espírito no meio do Seu Povo.

Elementos do estado dos estudos atuais sobre o Espírito Santo na História

O primeiro capítulo, assim como o segundo, constituem um espaço destinado a explicitar o sentido que a obra confere aos três conceitos-chave que a permeiam: “Ação”, “História” e “Espírito”. O autor começa pelo sentido dado à “Ação”, focando principalmente a dimensão pública, antes que a ação no cotidiano, seguindo o critério bíblico e da tradição oral da mensagem cristã. Enquanto a maior parte da obra cuida de focar, de modo contextualizado, como se deu a ação do Espírito através da História, o primeiro explicita as relações entre ação, história e Espírito Santo, ao tempo em que, o segundo capítulo cuidará de situar o estado atual dos estudos bíblicos contemporâneos sobre o Espírito e sua ação na História. (cf. (cf. pp. 45-46).

Com relação especificamente ao primeiro capítulo (pp. 45-75), o autor o distribui em duas partes: trata inicialmente da relação entre a ação e o Espírito (pp. 46-66); em seguida, enfoca a relação entre História e Espírito (pp.66-75). Os destaques da primeira parte incidem sobre o lugar de Jesus como Ação do Pai; o Espírito como continuação do Ressuscitado como Ação no mundo; o conteúdo e o valor dessa ação e a relação entre Messias e ação, enquanto na segunda parte deste capítulo (História e Espírito), reflete sobre o sentido de duas opções frente a esse movimento do Espírito na História: a de acomodar-nos à situação histórica ou a do compromisso com a transformação.

Na leitura da Teologia contemporânea, Deus age no mundo por meio do seu Povo, razão por que a nossa ação tem origem divina, sendo a Bíblia um ponto de referência relevante, desde que seja interpretado à luz do Novo Testamento.

Retomando as grandes linhas do primeiro capítulo,  primeiro destaque do capítulo incide sobre a missão de Jesus, o enviado do Pai para agir no mundo, ungido pelo Pai, desde sua concepção e desde seu batismo, para ser ação no mundo, na História. O livro enfatiza a ação de Jesus, em sua diversidade. Jesus aparece nos relatos bíblicos como Ação: anuncia, denuncia, cura, proclama, faz o bem por onde passa. Jesus é a Ação do Pai, pela força do Espírito. E, como Ação, tem como alvo maior, que atua como unidade de sua ação, a formação do Povo de Deus, pelos caminhos da História.

À medida que esse Povo vai compreendendo sua vocação, passa a entrar para o Seguimento de Jesus, não tanto para imitá-lo, para copiá-lo, mas para reinventar sua ação, nos desafios do presente, eis por que, afirma o autor: “Toda verdadeira ação humana, toda história humana, todas as nossas ações encontram sua imagem perfeita, sua inspiração, nessa ação de Jesus. Toda a história, no sentido mais humano e profundo, apenas revive ou sai em busca da ação de Cristo para revivê-la. Mas para revivê-la será preciso reinventá-la. Nada há para ser copiado. Tudo foi dito, mas nada ainda foi dito. Tudo foi mostrado, mas tudo está por descobrir. Pela missão do Espírito, a humanidade reinventa a ação de Cristo, a seu modo, múltiplo e diverso, em todos os cantos do espaço e do tempo, e isso forma uma grande ação, uma única história.” (pp. 50-51).

Eis por que Deus é ação, e das três Pessoas da Trindade é a Terceira que melhor a quem incumbe revelar esse atributo divino. Insiste o autor em reconhecer a dificuldade de se ter claro tal atributo de Deus, a partir dos profundos limites do vocábulo “Espírito”, em relação ao qual se passa uma idéia de algo contraposto a matéria, a corpo, na esteira do dualismo das filosofias gregas. Vocábulo a tal ponto limitado, de modo que o autor se sente obrigado a estar sempre lembrando que “Espírito ´quer dizer força ou ação. Dizer que Deus é Espírito é dizer que Deus é ação, energia, movimento.” (p. 51).

E o Espírito age em nós, Seu Povo, pelos caminhos da História. A ação do Espírito não se deixa controlar por instituições. Nem por aquelas que, a exemplo das igrejas, pretendem ter o monopólio do Espírito. O Espírito age no Povo de Deus, e, em especial, se manifesta nos pobres, nos fracos. É aí que Sua força age de modo todo especial. Agir implica uma vasta multiplicidade de operações, protagonizadas pelas pessoas. São inumeráveis as ações. Mas, é agindo na direção da libertação que o ser humano vai se libertando. Cada ação conta para uma conquista mais ampla. Enquanto luta, o ser humano vai se pondo no processo de libertação.

Nem toda ação provém do Espírito Santo. Somente aquelas que promovem e conduzem á liberdade, à libertação de todas as formas de escravidão. Somente aquela ação portadora de sementes de efetiva mudança. Mudança do mundo, mudança do ser humano. E mudança para melhor. Em breve, é toda ação que implique um processo de conversão pessoal e social. De cada uma, de cada um e do conjunto do Povo de Deus.

Processo que requer incessante exercício de discernimento, condição a que o autor dedica parte do último capítulo deste livro, mas já adianta alguns de seus elementos. Discernimento tem a ver com o exercício de nossa capacidade perceptiva, de nossa atenção aos sinais dos tempos, ao que o Espírito tem a nos dizer e nos estimular a fazer. Implica também uma avaliação crítica das relações das forças em embate: as que lutam por mudanças efetivas e as que representam obstáculos a essas mudanças. Implica um ato criador, pelo qual são buscadas pistas concretas de ação transformadora. No limite, uma tal busca pode implicar o martírio, o ato cristão definido pelo autor como o mais completo, cuja referência maior é o próprio Jesus. (cf. pp. 57-58). Mais adiante, assim se exprime o autor, a propósito do valor da ação: “Cada uma das ações, desde o martírio até os mais humildes serviços quotidianos, é uma antecipação da libertação final e se projeta nessa tela de fundo.” (p. 61).

No movimento de libertação dos pobres, sobretudo – mas não apenas – no universo judeu-cristão, as ações dos oprimidos têm comportado uma considerável motivação de caráter messiânico, à medida que, ao se darem conta dos mecanismos de sua opressão, põem-se a resistir contra a ordem imperante, e a ousar ensaiar caminhos alternativos. Não apenas as experiência messiânicas de natureza religiosa, como também as de cunho laico. A proposta de Jesus ia além de uma empreitada estritamente messiânica, ainda que não tenha sido entendida por seus discípulos. Acenava para um protagonismo maior dos próprios oprimidos, em vez de apostarem demais na força transformadora da ação exclusiva do Messias.

De todos os modos, é em função da transformação da História que age o Espírito Santo no meio do Seu povo.

Construyendo

Muchas veces vengo a la hoja con la única intención de estar aquí. Estar en la hoja, un lugar donde me siento bien. Aquí estoy a mis anchas, sin presiones ni internas ni externas.

¡Es curioso como algo tan sencillo puede tener, y tiene, un efecto tan saludable! Aquí me enraízo, me siento dueño de mí mismo, de mi tiempo. Y, al mismo tiempo, me siento integrado con el movimiento general de la vida. Me siento participante de mi familia, de mi círculo de amistades y colegas.

Aquí se han ido desvaneciendo y se siguen desvaneciendo las sombras que ya me ocuparon casi por completo en otros períodos de mi vida. Aquí se ha venido haciendo, y se sigue haciendo la luz. Aquí es como si me encontrara, y de hecho me encuentro, en mi lugar. Creo que no hay mejor sensación que ésta, la de estar en el propio lugar.

Saber que uno forma parte de una humanidad en movimiento, una humanidad que no se satisface con la crítica, sino que se esfuerza por vivir de una manera digna. Construyendo y reforzando vínculos saludables entre las personas. Trabajitos de hormiga, podríamos decir.

Esta expresión le era muy cara a Dom Antonio Fragoso el obispo católico que vivió tantos años en João Pessoa, en un barrio pobre. Él mismo, ya jubilado, hacía su parte en estas tareas casi invisibles, de rescate de la persona humana.

En la medida en que me fui integrando en esa red de cristianos y cristianas que vivían y viven en barrios pobres, me fue volviendo una conciencia antigua. Yo también tuve un origen humilde. Después conocí al Padre José Comblin, cuya vida y obra inspira y moviliza a tanta gente no solamente aquí en el nordeste brasileño, sino en todo el mundo.

Comblin también vivía en un barrio pobre de João Pessoa, y reunía a su alrededor, numerosos movimientos sociales que encontraban en él una luz, un impulso, más claridad y fuerza para seguir trabajando en la línea de la justicia, los derechos humanos, la educación popular, la salud mental comunitaria.

Los libros de Comblin me siguen iluminando e inspirando, hacia una lectura del evangelio que va más allá de la religión, las doctrinas y las ideologías. Creo que mi incorporación a este tejido humano, me viene enseñando muchas cosas, cosas que siento necesidad de compartir.

Estos trabajitos de hormiga, a los cuales se agregan, en este ancho mundo, muchísimas otras iniciativas, tienen la virtud de ser tareas que uno mismo puede hacer, y de hecho hace. No dependen de gobiernos ni partidos, ni de otras instituciones.

Son cosas que se hacen con la gente pobre, no para la gente pobre. Uno se ve como alguien que está en proceso de crecimiento y descubrimiento de su verdadera identidad, en medio de personas que tienen sus propias trayectorias de vida que, al sumar, crean un espacio solidario confiable y positivo, constructivo.

Digo estas cosas porque me parece que es necesario cada vez más, ir valorizando lo pequeño. Las actitudes y gestos positivos, lo que de hecho hacemos, cada uno y cada una, en pro de una humanidad más sana y más saludable.