Nas veredas libertárias do Nazareno: Apontamentos acerca do livro de José Comblin. “O Caminho: Ensaio sobre o seguimento de Jesus”. São Paulo: Paulus, 2004.
Como lhe sói acontecer em suas obras, também em “O Caminho”, José Comblin dá sobejas provas de uma atualidade e vigência impactantes. Com efeito, 18 anos após a publicação deste Ensaio, não há como o leitor/a leitora não ficar profundamente mexido/mexida pela acuidade analítica do autor. Não foi por acaso que o grupo Kairós, que se tem empenhado na leitura e reflexão atentas da obra de Comblin, decidiu reler “O Caminho”. Nesta ocasião, ao ser avisado por Elena de que, ao final do livro, eu havia escrito 5 páginas de anotações sobre o livro. Surpreso, tomo a liberdade de compartilhar estes apontamentos a partir daqueles registros.
Já em sua introdução, ao brindar-nos com uma síntese panorâmica do ensaio, Comblin trata de situar historicamente o que, durante séculos, os teólogos abordam deste tema. Sem mencionar a figura de Joaquim de Fiore (1135 – 1202), Comblin comenta que a Igreja da Baixa Idade Média punha no amor o núcleo primeiro no Seguimento de Jesus. Com efeito, o que o Monge calabrês Joaquim de Fiore definia como tendo chegado a Idade do Espírito Santo (precedida pela Idade do Pai, caracterizada pela obediência, e pela Idade do Filho, marcada pela misericórdia), cuja principal marca é o amor, assim o Povo de Deus passava a viver sob este signo, o da liberdade, o da criatividade. A Idade Moderna, por sua vez, graças à ação reformadora de Lutero e seus seguidores, bem como a reação da Hierarquia Católica, passava a reger-se pela Fé, entendida como o cumprimento formal dos preceitos, dos princípios, das regras, do magistério eclesiástico, ao qual todos os demais setores da Igreja Católica deviam rígida obediência, distanciando-se assim, do Espírito do Evangelho. Enquanto isso, sublinha Comblin, a Idade Contemporânea é caracterizada pela vigência da Esperança
Nos capítulos que seguem, tratamos de esboçar um resumo aproximativo do que propõe o autor. Como já dito, Comblin começa pela Esperança.
A proposta bíblica é fundamentalmente escatológica, o ser humano sempre é caminho . O papel pedagógico dos profetas no Reino de Deus. A mensagem cristão é mensagem e esperança, sobretudo para os pobres: Importa ir à galileia. As 3 opções dos vencidos diante dos opressores: Submissão integradora, fuga ao passado ou resistência na esperança. Enjaulamento no medo das autoridades de falar, de reivindicar. Quem espera o reino trabalha para que ele comece a acontecer na sociedade pq (cf. 21-38)
Esperar é poder afirmar a necessidade de mudança radical. O sentido da revolta é destruir as opressões, elas são diferentes da esperança como expressão secularizada do advento do Reino, as revoluções ajudam a mudar. Revolução é preparada por um grupo mais dinâmico, não conta com a participação de todos. Após destruir inimigo, desafio maior é prestar atitude alternativa. Somente os pobres podem mudar, somente eles tem esperança (cf. 40-44)
Dirigentes partidários, não raramente, vivem longe do povo. Os cristão são protagonistas do movimento dos pobres Os novos movimentos valorizam a subjetividade, a mística. A esperança abrange a totalidade da vida (cf. 47-49)
Quem não age tem saudade. Jesus protagoniza mudança radical sem suprimir mudanças ulteriores. A teologia escolástica suprime de mudança para a cristandade, missão é para conquistas não para mandar. O Reino de Deus não é estrutura instalada definitivamente na história. Importa buscar sempre pois os limites do possível podem ceder. A figura de Francisco sugere que Jesus começa pelo corpo. Por isso era peregrino, caminhando peregrino aprende a aproveitar tudo sem se apegar a nada. Torna-se livre. O peregrino aprende a ser mais a cada dia. Na peregrinação nunca se caminha só, há todo um povo em movimento. A Esperança da vida eterna procede da esperança vivida do dia a dia. Não há esperança sem profeta. Este lembra da vocação da liberdade.Todos os cristãos são chamados a ser profetas. (cf. 50-72)
O segundo capítulo do livro versa sobre a fé.
Fé é diferente de representação intelectual. A fé primitiva dos primeiros cristãos repousa na simplicidade, foi a hierarquia que não aceitando a divergência de interpretação criou a ortodoxia. A condenação das CEBS e da Teologia da Libertação são um exemplo.O Espírito inquisitorial fez grandes estragos, inclusive na América Latina, recorrendo a imposição do pensamento único, a estratégia dos hierarcas consistia em deformar ao máximo o pensamento dos seus adversários, e imputar lhes autoria dos “erros”. De tão a frente a fé incorporou reis e imperadores. Reduzindo-se o entendimento da fé, forjando uma interpretação supostamente baseada na carta aos romanos, a partir daí, estabeleceu-se separação entre reino e mundo. Diante da posição protestante a Igreja Romana adota o sacramentalismo, o ritualismo, esquecendo o Amor descrito em 1 Cor 13. Nasce daí o enquadramento religiosos da vida clerical, só escaparam os beatos e benzedores, porque eram desprezados por serem analfabetos. A fé como iluminação que transforma a vida. Neste caso a fé é a porta de entrada para a esperança, e sem esperança pode se viver como ser biológico, mas não como ser humano (cf. 79-96)
A fé implica mediação, o olhar do outro.A fé provoca mudança, em alguns casos, mudança radical, a exemplo de Paulo e Francisco. Fé implica ação, por longo tempo reduziu-se Cristo a cruz, esquecendo-se ou omitindo-se a vida de Jesus. A fé implica renuncia ao poder: é a lição que extraímos do próprio Jesus (cf.Fp 2). Caminho é o nome que as comunidades cristãs primitivas davam à Jesus. Libertação é protagonismo dos pobres, não vem como dádiva dos poderosos. Seguir o Caminho implica seguir a verdade, ao contrário do que pleteia a lógica do marketing, de “dourar a pílula” para obter lucro. A tendência à institucionalização do Reino contrapõe-se ao movimento profética de afirmação da pobreza (cf.97-115)
A ressurreição de Jesus é o início da história, prova de sua efetiva presença por meio dos discípulos e discípulas. Mais do que venera-lo Jesus pede mesmo é que O sigamos. Libertando-nos de todas as dominações. Talvez por isso não se tenha chamado filho de Deus. Olhando a vida de Jesus pode-se sempre entender Deus. O Espírito Santo é a presença de Jesus, nos discípulos e discípulas, também acusados pelo mundo (os Poderosos). Quando todos calam, os discípulos levantam a voz, a exemplo dos que fazem os mártires. O pretenso monopólio de Roma sobre o Espírito: O Espírito quer a diversidade ele segue as possibilidades históricas. Importa aprender a caminhar no escuro. O Vaticano II preferiu usar linguagem metafórica: invés de se impor um sistema de conceitos sobre quem é Jesus, importa procurar saber o que ele fez e queria, o grande problema reside nos descaminhos trilhados sobretudo pela hierarquia. (cf. 116-136)
Aceitação intelectual de todos os dogmas não é garantia de fé, a fé a porta da Esperança contra toda esperança (Rm 4-18). É o fundamento da nossa verdadeira vida, o edifício é o amor, a conversão é amorosa, opção pelo essencial que o convívio com os pobres favorece. O amor sustenta o mundo por estar sendo vivido na realidade dos pobres, confiar na transformação social pelo Estado é confiar na lei. O capitalismo é uma imposição dos poderosos. O amor que vem de Deus pode estar presente nas experiências humanas, inclusive na dimensão erótica e do Ághape. Deus não quer receber coisas, quer que amemos com o amor que Dele procede (cf. 1JO 4). O amor se realiza corporalmente, cabeça, mãos, pés, etc. A excelência de MT 25-35-36 como critério principal. Aquele que fez a pergunta a Jesus sobre qual era o maior mandamento, já sabia que era o Amor, mas só intelectualmente, precisava da prática, isto é da relação Deus-próximo (cf. 138-145)
O amor aos pobres é o núcleo do Cristão, ambos desaparecidas do cenário católico desde o século XIV, perseguição aos Espirituais. São Gregório Nazianzeno, o amor aos pobres não é opção é obrigação. São João Crisóstomo dizia que o começo e a raiz da riqueza é sempre uma ofensa à justiça. Importa perceber a força profética do olhar do outro: os pobres nos denunciam, nos anunciam. Formas de exclusão e inclusão dos pobres que deixaram de ser tratados como sujeitos históricos (cf. 146-151)
Em geral são minorias que lutam pela libertação. Apoiadas por lideranças proféticas o MST tem essa característica. Importa contar com lideranças autênticas próximas do povo e fiés ao mesmo. A compaixão leva a um compromisso coletivo e não individual, não considera a miséria uma fatalidade, sofrer com os excluídos. A compaixão de Jesus virou indignação contra os chefes.Testemunhos da indignação: Montesinos e Bartolomeu de las Casas. A indignação dos profetas da América Latina não é qualquer indignação. O fazer como critério da verdade vivida por Jesus. Importa combater a uniformização do pensamento único via televisão. Tecnologia a serviço de quem? O Capital converte o trabalho em produtos e o trabalhador em produtos e consumidores. Precedidas pelos neo pentecostais, as Igrejas a exemplo da sociedade transformam seus fiéis em consumidores de bens religiosos voltados para interesses imediatos e individualistas (cf. 158-201)
203 É de se lamentar que o que identifica o católico não é a prática do evangelho, mas os sinais exteriores. A verdadeira cultura cristã é a dos pobres. As democracias ocidentais defendem mesmo é a propriedade privada. Estamos numa época de trevas, num túnel que parece não ter fim. Jesus não deixou uma religião pronta, mas uma crítica a religião. O sacrifício já não é o que os homens oferecem a Deus, mas o que Deus oferece aos homens, o verdadeiro culto a Deus é oferecer-se para a prática da justiça. A ideologia do sacrifício requer um templo, os que seguem o movimento de Jesus hoje, atua lá onde estão os pobres e necessitados. Oração é aceitação do dom de Deus, é a missão.Na contemporaneidade observa-se o surgimento de nova religião fundada na emoção e gestos corporais. É um desafio para o Seguimento de Jesus usar a religião para anunciar o Evangelho.
Eis um breve resumo do livro de Comblin. Ao elaborá-lo, nosso objetivo é o de incentivar os leitores e leitoras a beberem na própria fonte.
Era uma palavra muito escutada e pronunciada nos anos 1960.
Continua a ser uma palavra que mobiliza, neste século XXI em que parece que temos nos tornado presos e presas numa jaula de aço.
O que é a libertação?
Não vamos dissertar nem desenvolver uma reflexão de tipo acadêmico, mas sim vivencial. Apoiados, certamente, nas buscas e achados da pesquisa científica, que embasa este conceito ou noção.*
Trata-se de uma pessoa, comunidade, povo, nação ou coletivo maior (humanidade) vir a ser quem é, sem quaisquer constrangimento ou restrição à sua própria natureza essencial.
Uma olhada pelas páginas da história nos mostra como esta busca é incessante.
Práticamente poderíamos dizer que a própria humanidade é uma busca da liberdade.
Mas que tipo de liberdade? O que é liberdade? É um sinônimo da libertação?
Muitos textos desta revista estão inspirados e motivados pela busca de uma humanidade autêntica.
O que é que isto significa?
Virmos a ser quem somos, essencialmente, realmente, concretamente.
Não importa qual seja a sua idade, nem onde você esteja a morar, ou em que país você tenha nascido, nem tampouco qual a sua classe social nem etnia ou religião.
Importa que você é uma pessoa única e irrepetível.
Isto faz com que a sua caminhada em busca de si mesma ou de si mesmo, constantemente a ponha frente a frente com normas e leis.
Qual o papel do indivíduo na história?
Hoje muito se fala em “liberdade”, entendendo como tal, fazer o que eu quero, sem ligar para os demais.
Isto é um bastardeamento da palavra. Um sucateamento do seu significado. Liberdade é ser quem eu sou, em todas as minhas dimensões, uma das quais é a da responsabilidade.
Uma outra dimensão humana é a da colaboração, reciprocidade, solidariedade.
Constantemente e em todo momento somos remetidos e remetidas a outras pessoas.
Cada pequena coisa que fazemos ou deixamos de fazer, está a nos relacionar com outras pessoas. Nada somos nem fazemos em solidão.
A sociabilidade, portanto, é uma outra dimensão essencial do ser humano.
Mas qual é a sociabilidade libertadora, e qual a alienante?
Vocês podem ter percebido que aqui temos mais perguntas do que respostas.
A intenção é a de mobilizar, movimentar, estimular o desenvolvimento de buscas pessoas e coletivas, grupais.
Não tentamos impor visões de mundo, embora tenhamos as nossas.
O nosso propósito é promover o desenvolvimento integral da pessoa humana em todas as suas dimensões.
Uma prática pedagógica e cotidiana libertadora é a que me faz saber da minha multiplicidade, a minha diversidade, a totalidade em movimento que eu sou.
Eu não caibo em nenhuma doutrina nem teoria ou dogma.
Posso criar, devo criar, se de fato quero me tornar uma pessoa humana plena e feliz, ativa e livre, formas pessoais de existência.
Olhar em volta e para dentro, sempre.
Faça-nos chegar as suas impressões e experiências! Somos um canal aberto para o crescimento!
Bibliografia:
José Comblin, Vocação para a liberdade
Erich Fromm, O medo à liberdade
Paulo Freire, A educação como prática da liberdade
Adalberto Barreto, Terapia Comunitária passo a passo
( 11a Semana Teológica Pe. José Comblin, em 2021. Texto provisório e certamente incompleto).
As Comunidades Cristãs.
Quanto às Comunidades Cristãs ou Grupos de Jesus entendemos e tomamos como primeira referência: o grupo dos apóstolos ( comunidade itinerante de Jesus), e o grupo das mulheres que também seguiam Jesus e ajudavam na manutenção e na sobrevivência do grupo itinerante e missionário.
Outras referências, ainda no tempo de Jesus, são: a comunidade que se reunia na casa de Pedro, em Cafarnaum e também a comunidade que se reunia na casa da líder e animadora Marta, em Betânia, nos arredores de Jerusalém.
Outra referência neste tema é a experiência das Comunidades ainda nos tempos apostólicos, comunidades anteriores ás igrejas, que nasceram e se espalharam na Síria e nas costas do mar Mediterrâneo, no período considerado aproximadamente do primeiro século, dos anos 30 até os anos 80 ou 90.
Uma outra referência, para este estudo sobre as comunidades cristãs, é a experiência, muito mais recente, nestes últimos 50 anos, das Comunidades Eclesiais de Base no Brasil e na América Latina.
Os corpos políticos.
E quando falamos em ‘Corpos Políticos` entendemos os grupos que na sociedade estruturada e dinâmica do capitalismo sofrem marginalização, discriminação e vulnerabilidade, mas que lutam pela liberdade e pela afirmação de sua identidade ou por políticas públicas alternativas e de integração social. São os grupos agregados aos movimentos sociais, grupos de Gênero e de Mulheres, etnias, comunidades de quilombolas e de afrodescendentes, comunidades de favelados, grupos de LGBT, mulheres vítimas da prostituição e do tráfico, grupos do povo de rua.
Como as Comunidades Cristãs vem se aproximando, hoje, a estes grupos que vivem numa situação de vulnerabilidade e são considerados, de modo injustificável, de pouca relevância sócio-política? Como estes grupos são incorporados ou não às comunidades cristãs? Como estes grupos, muitas vezes chamados de minorias, mas que na verdade às vezes são maiorias, importam para as comunidades das igrejas de hoje?
Corpos Políticos é uma formulação relativamente nova, juntando duas palavras antigas, corpo e política. Corpo como um conjunto de órgãos e membros que vivem uma unidade vital, e política que remete necessariamente ao conceito de poder. Portanto pensar logo como empoderar estes grupos socialmente fragilizados, como dialogar com eles, como valorizar e promover a capacidade de protagonismo destes grupos que na sociedade são considerados como inferiores, incapazes, e no final, muitas vezes, são contemplados como destinatários de ações meramente assistenciais?
A prática de Jesus.
Jesus quis formar “comunidade” exatamente com aqueles que eram excluídos da comunidade ou que eram desconsiderados do ponto de vista religioso. Na sua mensagem, e mais ainda na sua ação concreta, Jesus deixa claro que não reconhece delimitações e desclassificações de caráter religioso-social. O Reino de Deus não tolera classes e, em princípio, está aberto para todas as pessoas. Jesus se dirigia aos ricos e aos pobres, às pessoas cultas e às incultas, à população rural da Galiléia e à população urbana de Jerusalém, aos que tem saúde e aos doentes, aos justos e aos pecadores. Mas podemos afirmar que Jesus tomou partido em favor dos pobres, dos famintos, dos que choram, dos que estão sobrecarregados, dos doentes, dos pecadores, dos cobradores de impostos, das prostitutas, dos samaritanos, das mulheres, das crianças, e fez isso porque a sociedade do seu tempo negava a estes grupos a igualdade e até a convivência.
Na obra de José Comblin.
Nos ajuda nesta memória da mensagem e da prática de Jesus, a reflexão deste teólogo, sobretudo nas paginas de 251 a 260 do livro póstumo (O Espírito Santo e a Tradição de Jesus). A missão de Jesus refere-se fundamentalmente aos doentes e aos pecadores, diz Comblin. O Espírito Santo inspira Jesus a curar os doentes e a perdoar os pecados. Mas de que pecado se trata? Quem são todos estes pecadores que encontramos nos evangelhos?
Os “pecadores” eram párias sociais. As pessoas, que por qualquer motivo se desviasse da lei e dos costumes tradicionais da classe média (os educados e os virtuosos, os escribas e os fariseus), eram tratadas como inferiores, como classe baixa, como pecadores. No tempo de Jesus, os pecadores eram uma classe social bem definida, a classe social dos pobres no sentido amplo. Estavam incluídos aqueles que tinham profissões pecaminosas ou impuras: prostitutas, coletores de impostos (publicanos), ladrões, pastores de rebanhos, usurários e jogadores. A categoria dos pecadores incluía também os que não pagavam o dízimo aos sacerdotes e os que eram negligentes na observância do repouso do sábado e da pureza ritual.
Não havia praticamente saída alguma para o pecador e a pecadora. Na teoria a prostituta podia se tornar pura novamente por meio de um complicado processo de arrependimento, purificação e reparação. Mas isso custava dinheiro, e seu dinheiro mal ganho não podia ser usado para esse fim. Seu dinheiro era corrompido e impuro.
Diante deste quadro, Jesus perdoava. Perdoou à prostituta que regou seus pés com as lágrimas, perdoou ao paralítico curado da enfermidade. Substituiu a tradição religiosa eclesiástica com a Tradição evangélica. Denunciando toda forma de opressão e discriminação, Jesus entra em conflito com as autoridades religiosas do seu povo.
As Comunidades do Movimento, no primeiro século.
Neste período, sobretudo dos anos 30 aos anos 80, aparece a experiência originária e original das comunidades, fundadas na área do mar Mediterrâneo, nos territórios do império romano. Foram os apóstolos os grandes fundadores, mas também Paulo, Maria Madalena, Priscila, Timóteo, Febe, Tecla, Barnabé, e outros e outras. Nas comunidades encontrava-se gente pobre, trabalhadores , escravos, mulheres, pequenos comerciantes que se reuniam nas casas para a oração e a partilha do pão. Não faltavam pessoas de classe alta convertidas a Cristo, decididas de pertencer ao Movimento e que muitas vezes colocavam seus bens a serviço do grupo e dos pobres. Na cidade de Roma, capital do mundo de então, constituída por um luxuoso centro imperial rodeado de favelas e de habitações dos escravos, foi notável a experiência das Matronas romanas , mulheres da classe alta, convertidas a Cristo, que ajudavam os pobres e os acolhiam, em tempo de liberdade, em suas amplas casas para as reuniões de oração e para a celebração da partilha do Pão. Em tempos de perseguição, todos deviam frequentar (!) as catacumbas. Na comunidade de Corinto, na Grécia, prevaleciam representantes da classe trabalhadora que ganhavam o pão no trabalho pesado do porto. Em Filipos, um grupo de lavadeiras se reuniam para a oração na casa de Lídia, comerciante de tecidos.
O Movimento de Jesus não tolerava classes e era aberto a todos que na fé em Jesus optavam pela partilha no amor fraterno. Representantes da classe média, mestres e filósofos, tinham entrado nas comunidades do Movimento. Lembramos que já no grupo de Jesus estava Joana, esposa de um alto funcionário da corte do rei Herodes e que ajudava e acompanhava fielmente o grupo de Jesus. No período das comunidades dos primórdios, se destacava o romano intelectual Justino, que convertido se tornou um importante filosofo cristão. Nestas Comunidades dos primeiros tempos, não faltavam conflitos internos, discussões entre grupos de cultura e de classe diferentes. A famosa Comunidade de Corinto, que nas reuniões tolerava que gente abastada comesse bem e gente pobre comesse pouco ou nada, recebeu de Paulo uma dura e merecida repreensão!
“CEBs ontem e hoje”.
É este o título do relevante trabalho, publicado em livro, de Elenilson Delmiro Santos, de João Pessoa (PB). Ele acrescentou ao título: “ascensão, declínio e reinvenção”, para contar a história da CEBs nestes últimos 50 anos e para refletir sobre ela com pesquisa e aprofundamento acadêmico. Das CEBs dos anos de 1970 e começo dos anos de 1980, até a pergunta sobre a possibilidade do papa Francisco propor novamente uma Igreja de comunidades e na opção pelos pobres: é esta a trajetória do livro de Elenilson. Nos anos de 1970, as Comunidades Eclesiais de Base, Comunidades do primeiro amor!, se espalhavam e cresciam no meio popular, no campo e na cidade, com um bom acompanhamento de assessores/teólogos , com muita formação dos animadores e animadoras, e com o apoio de bispos como dom José Maria Pires que convidava a Igreja a caminhar “do centro para as margens”, como ele dizia. Era o tempo da aplicação ou melhor da reinvenção do Concílio Vaticano II em América Latina. “O conceito de Povo de Deus (definição surpreendente decidida naquele Concílio) fornecia a porta de entrada para uma Igreja dos pobres (na América Latina)…..e depois do Vaticano II, foram criadas as condições para que houvesse um florescimento das comunidades eclesiais de base (CEBs) tanto na África quanto na América Latina, com o apoio de Medellin” .(afirmação de José Comblin).
A leitura do livro de Elenilson acalma nossa sede de conhecimento profundo da saga das CEBs no Brasil, do seu crescimento, da crise e da oposição sofrida dentro da Igreja, como também da sua reinterpretação e sobrevivência até os dias de hoje.
Algumas conclusões.
É bom notar que nas Comunidades do tempo apostólico (primeiro século) não se tratava de buscar um diálogo com os grupos marginalizados e vulneráveis; não se tratava de diálogo, pois algo mais profundo e radical estava acontecendo. Os pobres se reuniam em comunidades que formavam o Movimento, ajudados por alguém que tinha mais possibilidade econômica e social, e que garantia alguma ajuda e proteção. As próprias Comunidades eram “ corpos políticos”, grupos às margens da sociedade, grupos vulneráveis e muitas vezes terrivelmente discriminados e perseguidos. Também não me parece que tenha sido, naquele tempo, uma experiência de um pauperismo radical ou de uma religião fundamentalista. Talvez a chave de leitura do Cristianismo originário vivido naquelas primeiras Comunidades seja a “marginalidade”, não a marginalização; marginalidade que levou aqueles grupos cristãos a imaginar novas práticas, novas relações, novas identidades e valores. Um estudo mais crítico do cristianismo das origens coloca sérios desafios ao nosso cristianismo de hoje.
Hoje, muitas igrejas e comunidades estão fechadas aos pobres, realizam cultos e cobram dízimos, e muitas aderem ao fundamentalismo político. A sociedade atual é profundamente desigual, e os corpos políticos, em quanto grupos vulneráveis, buscam direitos e respeito, sob o olhar irado das elites políticas.
Perguntas para as Comunidades e os grupos Cristãos de hoje.
– as Comunidades Cristãs são capazes, hoje, de dialogar com estes Corpos Políticos?
– as Comunidades e os Grupos Cristãos, perderam a capacidade de serem “fermento na massa”?
– estes grupos políticos vulneráveis, muitas vezes, carregam notáveis valores de humanidade, de solidariedade e de partilha do necessário. “Estão” no Caminho, pois vivenciam os valores do Reino.
– desejo ou sonho de muitos cristãos é de evangelizar ou cristianizar estes Corpos; ou será que são eles que devem se deixarem evangelizar por estes Corpos Políticos? A pergunta penetra fundo em nós: estamos falhando de ser cristãos?
Permitam-me compartilhar estas duas preciosidades:
1 – O texto mais recente, escrito por Eduardo Hoornaert, nos provoca profundamente, deixando-nos ante uma irrupção joelina, a nos interpelar e atiçar nosso ardor missionário, na perspectiva do Movimento de Jesus, chamando-nos a experienciar caminhos de “Pentecostalidade”.
2 – Um item do livro de José Comblin, “O Espírito Santo e a Tradição de Jesus”, da página 269 a 276, que vem sendo objeto de nossa reflexão semanal, no Grupo Kairós. Segue em anexo.
Com vocês, na esperança e na ação.
Alder
O pentecostalismo em perspectiva histórica.
Por Eduardo Hoornaert.
A descoberta do caráter pentecostal das origens cristãs vem a postular a construção de narrativas próprias. Como sabemos que a mensagem cristã se propaga mais por meio de narrativas que de doutrinas, surge diante de nós a seguinte pergunta: quais as narrativas, entre muitas que tratam das origens do cristianismo, capazes de abarcar a multiplicidade de formas pentecostais em que o cristianismo se reveste hoje? Trato aqui especificamente de três narrativas das origens, uma primeira centrada em Nazaré, uma segunda em Jerusalém e uma terceira em Corinto. Prossigo chamando a atenção para a particularidade da expressão ‘Espírito Santo’ e para a necessidade de se estudar a ‘tradição’. Termino dizendo algo sobre ‘pentecostalidade’.
Um Sopro ‘do Senhor’ em Nazaré.
O Evangelho de Lucas conta que Jesus, ao retornar à sua aldeia natal depois da experiência no Sul do país (na região do Jordão) com João Batista, vai, como de costume, à sinagoga no sábado. Como já é rabi, habilitado a ler e explicar a Bíblia, o servente lhe entrega um rolo que contém as profecias de Isaías. Ele escolhe dois trechos (Isaías 61, 1-2 e 58, 6):
Um Sopro do Senhor sobre mim.
Por Ele fiquei encarregado
De trazer uma boa mensagem aos pobres.
Ele me enviou, e por isso proclamo
liberdade aos presos, visão aos cegos, libertação aos oprimidos.
Proclamo publicamente um Ano de Favores (Lc 4, vv. 16-18).
Jesus entrega o rolo ao servente e se senta. Na sinagoga, todos os olhos o fixam. Ele começa: ‘como vocês veem, hoje essa Escritura se realiza’ (vv. 20-21). Eis a primeira manifestação do Sopro de Deus na vida de Jesus. Os aldeões se sentem atingidos, pois compreendem a alusão: ‘aqui – em Nazaré – não há boa mensagem para os pobres, nem liberdade para os presos, nem recuperação de visão para os cegos, nem libertação dos oprimidos, nem Ano de Favores’. ‘Vocês preferem seguir a Lei, não escutam o ‘vento’ que vem de Deus’. Para ainda agravar as coisas, Jesus dá dois exemplos de como a Escritura de Isaías se realiza: nos tempos de Elias, havia muitas viúvas em Israel e as pessoas passavam fome, por todo o país. Mesmo assim, não é para nenhuma (das viúvas de Israel) que Elias foi enviado, mas para uma viúva de Sarepta de Sidon (v. 25). Havia muitos leprosos em Israel. Mesmo assim, nenhum deles foi curado (por Eliseu), mas sim o sírio Naaman (v. 27). O sopro de Deus não considera um ‘povo eleito’ privilegiado.
É demais: todos na sinagoga se enchem de furor ao ouvir essas palavras (v. 28). Um violento sentimento de ódio se ampara da multidão, uma histeria coletiva. Eles o conduzem ao declive de uma colina sobre a qual a cidade está construída, para lançá-lo no precipício. Mas ele passa por meio deles e se afasta.
Jesus não é um ‘dos nossos’? ‘Então, que nos defenda, nos ampare, já que tem esses poderes todos’. Os aldeões vêm em Jesus um curandeiro milagreiro, como tantos outros que andam pelas aldeias da Galileia. Não percebem a ação do Sopro de Deus.
Na versão de Marcos se percebe a mesma perplexidade, por parte dos aldeões. Muitos dos que o escutam ficam confusos edizem: ‘Donde ele tira tudo isso? Donde lhe vem essa sabedoria? E os gestos fortes (milagres, gestos de poder) operados por suas mãos? Ele não é o carpinteiro, o filho de Maria, irmão de Tiago, José, Judas e Simão? Suas irmãs não vivem entre nós? Enfim, ficaram sem saber o que pensar (Mc 6, 1-6).
Mas, como na versão de Lucas, Jesus não recua. Ele vai em cima: um profeta só é desprezado em sua terra natal, em sua família, em sua casa. O Sopro de Deus nele provoca uma subversão dos valores que a aldeia cultiva: a família, a ordem, a convivência silenciosa com os que não conseguem se enquadrar na sociedade: doentes, mendigos, cegos, surdos, doidos. Jesus sente repulsa com o comportamento de seus antigos companheiros na aldeia: não pôde fazer aí nenhum milagre. E Marcos conclui: Jesus estranha a desconfiança dos aldeões.
Aparece aqui um homem que se distancia de seus ex-vizinhos aldeões. Para ele, o fato de provir de uma aldeia esquecida do mundo, dentro de uma família normal de camponeses, conhecido por serviços manuais, não lhe impede sentir o Sopro de Deus passando por sua vida. Pelo contrário, o ocultamento social demonstra quem é Deus e como Ele age no mundo.
Um Sopro de Deus em Jerusalém.
A segunda história é mais traumatizante. Mais decisiva também. Ela começa com os versículos 46 a 50 do capítulo 14 do Evangelho de Marcos: Quando os emissários do Grande Sacerdote puseram as mãos sobre Jesus e o prenderam, todos os seus discípulos o abandonaram e fugiram (Mc14, 46-50). Todos abandonam Jesus naquela fatídica semana que antecede a tradicional Festa da Páscoa judaica, por volta do ano 30, e que culmina com sua morte. Os discípulos deixam Jesus morrer só.Ele morre como um criminoso, executado segundo as leis estabelecidas. Seu corpo é jogado numa fossa comum. O Evangelho de João conta que o próprio Jesus previu esse desenlace: Vocês se dispersarão, cada um de seu lado, e me deixarão só (Jo 16, 32). Simão Pedro, que ainda teima em acompanhar de longe o drama, não aguenta nem umas palavras de suspeita por parte de uma servente do Grande Sacerdote: Não o conheço, não sei de que você está falando (Mc 14, 68). E acaba fugindo também. Retorna à região do lago de Genesaré, na companhia de alguns companheiros pescadores, igualmente ex-discípulos de Jesus. Ali resolve voltar à pescaria: ‘eu vou à pesca’. ‘Vamos como você’ dizem os outros (Jo 21, 3).
Mas nenhum deles consegue esquecer Jesus. Nem Simão, nem seu irmão André, nem Tiago e João, os filhos de Zebedeu. Mas o projeto acabou. Foi bonito, mas acabou. O que eles, pescadores iletrados, vão argumentar diante das mais altas autoridades, que tinham declarado que Jesus era um criminoso? Contudo, a memória persiste, inesquecível, fascinante. A figura de Jesus não os deixa em paz. A memória dele é alimentada a cada sábado por leituras feitas na sinagoga: leituras de Isaías, dos Salmos, dos Profetas, que falam em ‘servo sofridor’, ‘servo de Ihwh’, ‘elevado por Deus’, ‘feito Senhor’. Será Jesus um eleito de Deus enviado ao mundo? Martela a cabeça de Simão a palavra de Jesus, três vezes repetida: Simão, filho de João, se me amas, apascenta minhas ovelhas (Jo 21, 15-17). A situação angustiante dura meses, talvez mais de um ano. Voltar a Jerusalém? Nem pensar.
Até que aparece, no ano litúrgico judeu, uma festa tradicional, celebrada em outubro, que até supera a festa da Páscoa em termos de popularidade: o Sukkôt (que significa: tendas, cabanas), em que se misturam as mais variadas memórias: a colheita dos frutos do campo, a vida em tendas dos hebreus fugitivos do Egito, a chegada ao Monte Sinai após ‘cinquenta dias’ de caminhada após a escapada, ocasião em que Moisés recebe a Torá (Ex 15, 1).
No Sukkôt, Jerusalém se enche de peregrinos, muitos vindos de longe. O grupo dos apóstolos galileus pondera: ‘podemos nos aventurar, pois ficaremos despercebidos no meio de tanta gente. Aí podemos visitar os irmãos de Jerusalém’. Irmãos que ficaram na cidade hostil e se recolhem numa casa particular, com medo dos ‘judeus’.
Então acontece a famosa virada, descrita por Lucas em seus ‘Atos dos Apóstolos’, escritos por volta do ano 120 dC: Estavam todos reunidos no mesmo lugar, quando, de repente, um estrondo. Parecia a passagem de um vento violento a invadir a casa onde se encontravam. Eles viram uma espécie de línguas de fogo se repartir e se pousar sobre cada um. Nesse momento, todos, cheios do Sopro Santo, falavam o que o Sopro lhes dava a dizer, em línguas estrangeiras (Atos 2, 1-4).
Muita gente, ao ouvir o estrondo, corre ao local. Gente proveniente da diáspora judaica, falando línguas diferentes (todas de raiz semita), enquanto os apóstolos só falam o aramaico. Abre-se a porta, os apóstolos comentam o ocorrido, e todos entendem o que eles dizem. ’Como é, pois, que os ouvimos falar, cada um de nós, no próprio idioma em que nascemos? Partos, medos e elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judéia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egito e das regiões da Líbia próximas de Cirene; romanos que aqui residem, tanto judeus como prosélitos, cretenses e árabes, nós os ouvimos apregoar em nossas próprias línguas as maravilhas de Deus’. (Atos 2, 8-11). No versículo 14 se conta que Pedro se levantou com os onze e, com voz firme, se dirigiu à multidão presente. Uma fala contundente, acusadora mesmo: Esse mesmo Jesus, que vocês crucificaram, Deus, ele mesmo, o fez Senhor e Cristo (o termo, em aramaico, significa: ‘ungido’) (v. 36). E termina perguntando: O que fazer? Ele mesmo responde: Pensar de outro modo (em grego: metanoein, daí metanoia) (v. 37). Mais adiante, em 3, 19, Lucas escreve que precisa também agir de outro modo (em grego: epistrefein). Um pensar e um agir ‘diferente’.
O resultado é excepcional: dos 120 aderentes ao novo movimento, assinalados em Atos 1, 15, se pula de vez para 3 mil depois do discurso de Pedro em Pentecostes (2, 41) e para 5 mil logo depois (4, 4). Aderiram, no Senhor, multidões de homens e mulheres (5, 14); A multidão dos crentes era um só coração e uma só alma (4, 32); O número dos discípulos multiplicava-se enormemente em Jerusalém (6, 7). Sabemos que Lucas gosta de exagerar, mas, mesmo assim, se trata de uma considerável multidão (11, 24), que passa a ser chamada igreja, uma palavra grega equivalente a ‘sinagoga’ ou ‘assembleia’: As igrejas cresciam em número, de dia em dia (16, 5).
Não dá para negar o impulso do momento e a inquietação que o movimento, desde Pentecostes, provoca no seio do judaísmo ortodoxo. Aparece algo diferente da religião dos burocratas do templo, dos fariseus e saduceus, dos letrados e dos sacerdotes. Um Sopro Santo passa por camponeses, pescadores e publicanos, mulheres e crianças, ignorantes e pecadores. E isso inquieta os judeus bem pensantes.
No dia de Pentecostes, um Sopro Santo desce em ‘línguas de fogo’, confere força aos apóstolos no sentido de afirmar em praça pública a novidade de Jesus, um novo jeito de viver, fraternidade, acolhimento, atenção aos pequenos e rejeitados deste mundo, entusiasmo entre as camadas mais pobres, nas cidades e nos campos por onde o movimento se espalha. Pentecostes é irrupção avassaladora de Deus na vida. Não se trata de doutrina, código moral ou celebração ritual. Trata-se de um impacto contagiante que conduz a uma nova experiência de vida.
Hoje dizemos: a espiritualidade cristã é fundamentalmente pentecostal. Por meio dela, o movimento de Jesus aparece como experiência de vida, não como doutrina, rito ou pura liturgia. Os exageros de Lucas na apresentação do número de aderentes ao movimento de Jesus, que lemos nos Atos dos Apóstolos, são sintomáticos da exaltação com que os próprios militantes devem ter contado sua experiência. A mesma exaltação que percebemos em certos episódios dos Atos, como a narrativa do naufrágio de Paulo e dos diversos discursos que o acompanham (At 27, 13-44), a conversão às portas de Damasco (At 9, 1-22) e o discurso de Paulo no Areópago ateniense (At 17, 19-34). Tudo isso vem a significar: o judaísmo formal, hipócrita, sacerdotal e legalista não tem mais nada a oferecer. Nós somos o Novo Israel! (Pedro nos Atos 2, 14-36).
O judaísmo oficial rejeita o pentecostalismo, não consegue compreender o momento. Isso leva a um infeliz confronto entre as comunidades de seguidores de Jesus e o judaísmo oficial: as primeiras não se sentem mais ao abrigo nas instituições do rabinismo judaico tradicional e criam um novo rabinismo, expondo-se à eventualidade de uma intervenção por parte de lideranças organizadas dispostas a ‘pôr ordem na casa’.
Pentecostes é uma experiência de ordem mística. Mas não num sentido neo-platônico. A admiração que sentem os que se deixam atrair pelo movimento não se deve atribuir unicamente a pretensos fenômenos extraordinários (com os relatados em Atos, capítulo 2), mas também ao fato que as pessoas percebem, nos seguidores de Jesus, um novo jeito de se viver, um clima de fraternidade e acolhimento, uma atenção aos pequenos e rejeitados deste mundo. Lucas focaliza isso em diversos momentos. Isso deixa profunda impressão entre as camadas mais pobres da sociedade judaica, nas cidades e nos campos. Esse é o grande sinal do Sopro de Deus. Elenco aqui, de passagem, alguns desses sinais, colhidos em textos do Novo Testamento e da Tradição do segundo século: a atenção especial dada aos que sofrem e são rejeitados (1 Pedro 4, 12-13 e mais tarde a Carta a Diogneto), sobretudo os peregrinos e forasteiros (1 Pedro 2, 11), que são numerosos na periferia do sistema romano, a regra Entre vocês tem que ser diferente, quem quiser ser o maior se faça o menor (Lc 22, 26), a opção pelos pobres (Tiago, 2, 1-9), um ‘lar’ para quem não tem casa (as Cartas de Pedro), a elaboração de uma teologia de eleição dos excluídos nos planos de Deus (1 Pedro 2, 4-10; Tiago, 2, 5), a recusa de uma aliança com o pensamento filosófico da época (Justino, Ireneu), o martírio (Policarpo, Inácio de Antioquia), o amor e perdão ao inimigo, a não-violência ativa, a fé na ressurreição da carne como resposta à petulância das autoridades judaicas (At 2, 22-36), um novo relacionamento entre homem e mulher, a introdução do conceito de ‘adultério masculino’, desconhecido na cultura do império romano e mesmo no judaísmo (O Pastor de Hermas), a recusa do serviço militar como sendo contrário à ideia da única soberania de Deus (Tertuliano); a recusa do aborto e do abandono de crianças recém-nascidas, em nome do imperativo do respeito pela vida pessoal (Carta a Diogneto), a não-participação em jogos de circo e teatros (onde a dignidade do corpo humano é tripudiada), a comunidade eclesial de base (Paulo); etc.
Podemos alargar ainda mais o horizonte e enxergar paralelos entre essa experiência pentecostal judaica e o que acontece em diversas religiões pelo mundo afora. Por isso se pode dizer que o pentecostalismo, de certo modo, excede o cristianismo e se relaciona com momentos de inspiração, reavivamento (revival), reanimação, experiências extraordinárias de entusiasmo e de fé que encontramos em muitas religiões. Voltarei a esse ponto. De modo que não é tanto o caso concreto do Pentecostes judaico que retém nossa atenção, mas sim sua redundância histórica.
Conhecemos o resto da história. Depois de Pentecostes, o movimento de Jesus se espalha rapidamente pelo mundo. A perda do templo e da cidade de Jerusalém, por sucessivos golpes políticos, entre 70 dC e 135 dC, é um desastre para os judeus ortodoxos, mas não para o jovem movimento. Com a eliminação de Jerusalém enquanto centro religioso, as famílias sacerdotais hereditárias e a alta classe judaica se arruínam definitivamente. Mas ao mesmo tempo surge, entre 70 e 200 dC, um judaísmo rabínico que existe até hoje e que oferece sustento ao jovem movimento. O rabino toma o lugar do sacerdote. Em vez de ser o homem do templo, ele é o homem ‘do livro’, o ‘mestre’ (rav), conhecedor das letras da Torá e mais tarde do Talmud, o ‘sábio’ (chacham) da comunidade. Não é ‘líder’, nem detém poder além do poder da palavra que interpreta. Pois, na sinagoga, a Palavra de Deus reina soberana. O rabino não recebe pagamento por seu ensinamento, pois a palavra de Deus é gratuita. Ele tem de arranjar uma profissão para se sustentar. Enfim, o rabino é o homem do raciocínio, da palavra, não do rito. Não corresponde ao clérigo no cristianismo. É um leigo, sem maiores poderes do que os demais participantes da sinagoga.
É nesse novo modelo que o cristianismo nascente (do século II) se inspira, como verificamos em figuras como Hermas, Marcião, Valentino e Justino. Um cristianismo de mestres e discípulos, não de sacerdotes e fieis.
Com a destruição de Jerusalém como centro religioso, o movimento de Jesus mergulha, por assim dizer, no anonimato. Doravante aparecem textos menores, provenientes do mundo anônimo das comunidades como cartas, evangelhos apócrifos, atos dos apóstolos (igualmente apócrifos), apocalipses, visões, enfim, uma vasta literatura até hoje pouco conhecida. Essa literatura revela um movimento ligado à vida nas famílias, onde se aprende a falar menos e escutar mais, lutar para ganhar o pão de cada dia, preparar os alimentos, suportar o incômodo da convivência em ter familiares, respeitar a liberdade do outro (da outra), educar os filhos, socorrer o irmão necessitado. O movimento fica mais pragmático e procura harmonizar as exigências radicais de Jesus com a cotidianidade da vida. Repetitivos e lentos, os textos que nos chegam desse período não contêm grandes novidades, mas traduzem a seu modo a novidade cristã.
É desse modo que o pentecostalismo cristão entra na história.
Um Sopro de Deus em Corinto.
Há uma terceira narrativa que conta a irrupção do Sopro de Deus nos inícios do movimento cristão. Trata-se, inclusive, da primeira narrativa em termos cronológicos, pois é anterior aos evangelhos de Marcos (dos anos 70), de Lucas (dos anos 80-90) e dos Atos dos Apóstolos (dos anos 120), que acabamos de ler. Escrita apenas 20 anos após a morte de Jesus, no início dos anos 50, essa narrativa, escrita por Paulo Apóstolo, nos introduz numa reunião típica dos inícios do movimento de Jesus (1Cor 14), na cidade grega de Corinto. Ali nos surpreende o ambiente barulhento e agitado. Há pessoas que ‘falam em línguas’, emitem sons sem sentido aparente, que – mesmo assim – são acolhidos com exaltação. Os participantes parecem convencidos que esses sons expressam uma língua misteriosa de contato direto com Deus. Alguns entram em transe, outros gritam e gesticulam.
Em diversos tópicos de suas cartas, Paulo utiliza o termo ‘grito’ e, diante da importância por ele atribuída a esse vocábulo, vale a pena se perguntar o que pode significar um grito que emerge de um ambiente extático. O sacerdote psicólogo alemão Eugen Drewerman explica que gritos extáticos não são falsificações, mas formas naturais de transmissão de grandes temas e de verdades permanentes presentes nas camadas profundas da psique humana(Drewermann, E., Psychanalyse et Exégèse, 2, Seuil, Paris, 2001, p. 18).
Paulo faz questão de afirmar, sem constrangimento, que ele também ‘fala em línguas’, e mesmo melhor que qualquer um: Eu falo em línguas mais que qualquer um de vocês (1Cor 14, 18). Mas há um limite. Ele repete, o tempo todo, que o êxtase – por bom e louvável que seja – tem de obedecer ao regulamento superior da profecia (vv. 22-26) e que, sem profecia, não há encontro cristão. O que isso significa? Em meio à exaltação não se pode esquecer que os participantes têm o direito de entender o que se quer dizer. Não basta gritar e gesticular. Falar ‘em línguas’ é bom, argumenta Paulo, mas que tudo seja acompanhado de palavras que encorajem as pessoas (v. 31), fortaleçam o grupo (v. 12), ajudem os outros. Na assembleia, prefiro dizer cinco palavras inteligíveis para instruir os outros, que dez mil palavras em línguas (v. 19). Os momentos privilegiados do êxtase postulam uma adequada explicação. Se Deus se revela numa fala em línguas de uma forma que nem o próprio falante, nem os demais participantes entendam ao certo o significado, é preciso que alguém do grupo diga alguma palavra ‘inteligível’. Se todos começam a falar sem que haja quem explique (no texto original: ‘se comporte em profeta’), os de fora vão pensar que os cristãos são malucos (v. 23). A ‘profecia’ faz com que o êxtase se torne capaz de convencer os de fora: Imaginem que todos profetizam (explicam ‘línguas’). Entra então uma pessoa de fora. Ela é logo questionada por todos e o que seu coração oculta se torna patente. Então ela cai com a face na terra e adora Deus, gritando: ‘Sim, é verdade, Deus está no meio de vocês’ (1Cor 14, 24-25). Tudo que acontece durante o encontro, seja canto, ensino, revelação, fala ou gesto (v. 26), merece ser devidamente explicado: todos podem se expressar, mas um por um, para instruir a todos e encorajar a todos (v. 31). Pois Deus não é um Deus da desordem, mas da paz (v. 33). A insistência de Paulo no sentido que tudo se faça em ordem (v. 40) e que a êxtase seja acompanhada de uma palavra explicativa (exortativa, profética) assegura aos os grupos paulinos – a médio e longo prazo – a sobrevivência em comparação a outros grupos, liderados por apóstolos talvez mais entusiasmados, mais eloquentes, mais versados na oratória ou mais extasiados, mas que não têm o devido cuidado em controlar os possíveis excessos extáticos.
O clima extático, no capítulo 14 da Carta aos Coríntios, revela algo que não se encontra nos evangelhos: o modo ‘entusiasta’ em que a mensagem de Jesus é recebida no mundo mais amplo da diáspora judaica, fora da Palestina. O fariseu ‘encantado’ de Tarso (Atos 9, 1-9), arrasta consigo os ouvintes/leitores para o universo extático que ele mesmo vive. Daí gritos como ‘Jesus ressuscitou!’, Ele subiu ao céu!’, ‘Ele está sentado ao lado de Deus Pai!’, ‘nós vamos ressuscitar com ele!’. Um encantamento que faz com que esses grupos extáticos tomem distância diante dos preceitos da Lei, lutem pela abertura do movimento de Jesus a não-judeus e nunca percam a esperança no Reino de Deus que já cresce – qual planta selecionada, adubada, capinada e cuidadosamente cultivada – no seio de pequenos grupos espalhados pelo mundo.
O Espírito Santo.
O que dizer da expressão ‘Espírito Santo’, que hoje substitui o ‘Sopro Santo’ dos textos semitas? Sabemos que traduções sempre correm o perigo de se tornar ‘traições’. Sabemos que o leitor de um texto traduzido sempre tem de prestar atenção a possíveis armadilhas nele contidas, capazes de deturpar o sentido de uma expressão, ou pelo menos dificultar sua compreensão. Quando o ruah hebraico passa ao pneuma grego e quando esse, por sua vez, passa para o spiritus latim e nosso espírito português, anda-se a passos tão largos que a deturpação do sentido original é quase inevitável. Com a passagem de ‘ruah’ para ‘pneuma’, operada pelos ‘Setenta’ de Alexandria no século III aC, abandona-se o universo semita e penetra-se num universo de significados gregos. O termo perde em vigor, abandona os desertos do Levante e as finezas das expressões semitas e ganha ares mediterrâneos, helenísticos, mais suaves. E quando esse ‘pneuma’, por sua vez, passa para ‘spiritus’, na tradução latina feita por São Jerônimo no século IV dC (a ‘Vulgata’), modos romanos de se praticar a religião invadem a leitura das Escrituras e trazem um forte ingrediente de espiritualismo neo-platônico.
Pois o ruah dos primeiros textos bíblicos é forte, impetuoso e repentino. Deus age no mundo ‘soprando’. Em Gênesis 2, 7, o sopro de Deus insufla uma vida tão poderosa nas inertes narinas do Adão, que este se espalha rapidamente pela terra inteira, como relatam os primeiros capítulos do livro Gênesis com manifesta satisfação. Uma vida tão potente que os primeiros patriarcas alcançam idades incríveis. Matusalém chega aos 969 anos (Gn 5, 27) em meio de filhos, netos e bisnetos a não saber mais o número. O Adão é ao mesmo tempo ‘inspirado’ e frágil. É respirando que ele demonstra estar vivo, mas, de outro lado, ele não é mais que um sopro que passa e não volta mais (Sl 78, 39).
Mas não é só no Adão que o sopro de Deus se mostra poderoso. No princípio dos princípios, antes mesmo da luz, o sopro de Deus já movimenta o universo:
Terra vazia solidão
Escuridão sobre os abismos
Sopro de Deus
Movimentos sobre as águas (Gn 1, 2).
Movimentos também sobre os imensos desertos do Levante. Enfim, o ruah hebraico tem um amplo leque de significados, desde vento, ar respirado, fôlego de vida, até elementos mais psicológicos como ímpeto, dinamismo, ardor e vontade. Depois do dilúvio, recordando seu amigo Noé, Deus sopra sobre a terra e as águas um vento de paz (Gn 8, 1). O sopro de Deus apazigua as águas do dilúvio, abre passagem para os hebreus no Mar Vermelho, traz alimentos ao deserto, restaura ossos ressecados em povo vivo (Ez 37, 1-14). Um sopro de Ihwh deposita Ezequiel no meio de um vale repleto de ossos secos, e lhe manda dizer aos ossos: Vejam, eu lhes envio um Sopro. Vivam. Eu lhes dou nervos, carne e pele, eu lhes dou meu sopro. Vivam! (Ez 37, 6). E é esse mesmo Sopro Santo que nos traz Jesus: Um Sopro Santo virá sobre ti e uma força do Muito Alto te cobrirá com sua sombra (Lc 1, 35), diz o Anjo a Maria.
O Sopro de Deus anima os primeiros cristãos. Em meio a dificuldades, o Sopro se revela uma ‘força drástica’ (como escreve Paulo), ou seja, uma força que intervém nas horas do perigo. Ora, o perigo é a aliança dos líderes da igreja com os poderes deste mundo. Perigo grande aparece no século IV, quando o próprio Imperador Constantino convida os líderes cristãos a se reunir em Niceia, sua residência de verão, situada na Ásia Menor. Aí já dá para perceber o perigo. Os bispos começam a ter medo do Espírito Santo, como revela o Credo de Niceia, que evita pôr o Espírito em relevo e só lhe concede um lugar no fim do Credo. Nas entrelinhas desse Credo se esconde o receio de uma igreja por demais profética. Aliás, já no início do século III, Tertuliano tinha escrito com todas as letras que a igreja emergente expulsou os profetas, afugentou o Espírito (prophetiam expullit, Paracletum fugavit). A igreja católica herdou esse temor mal confessado do Espírito Santo e evitou se referir a ele ao longo de muitos séculos.
Mas, como sempre acontecem novidades na história, aparece uma defesa do Espírito Santo, muitos séculos após Niceia, onde menos se espera: na filosofia moderna, entre descrentes e críticos da religião. Diante da vitória da Revolução Francesa em Paris, o filósofo alemão Hegel elabora, na sua ‘Fenomenologia do Espírito’ (1807), uma teoria acerca da importância fundamental do que ele chama de ‘Espírito verdadeiro’, na construção da história humana. Outros filósofos da época, Kant e Diderot, o acompanham. Tomando emprestada de Diderot a imagem do tecelão, Hegel escreve que o Espírito ‘tece sua rede’ em silêncio, com paciência e perseverança. Diderot ainda usa outra imagem, a de um tecido totalmente impregnado por algum líquido. Quando um corpo social se encontra totalmente impregnado de ideias novas, a revolução factual é fácil. Ela pode até acontecer sem derramamento de sangue. Escrevo o termo ‘Espírito’ com maiúscula, pois se trata aqui deveras do Espírito Santo. O velho sistema cai por si mesmo, como um vestido que não serve mais. No silêncio de inúmeras ações inovadoras, realizadas no dia-a-dia da vida, o Espírito vai abrindo espaço para que – no momento apropriado – sua dinâmica se manifeste e provoque uma efetiva mudança na sociedade como um todo. Segundo Hegel, a revolução factual é uma decorrência natural da reforma espiritual. Kant diz mais ou menos o mesmo quando usa a imagem de um motor que unifica e propulsiona os mais diversos elementos que se encontram dispersos na realidade da vida. A pessoa ‘espiritualmente unificada’ não se deixa distrair, ela só se interessa pelo ‘Espírito’, ou seja, pelo que realmente importa.
Estamos aqui, no final do século XVIII, época da Revolução Francesa, diante de um inesperado reencontro entre a intelectualidade ocidental e o espírito profundo da Bíblia, que desde as narrativas patriarcais usa a imagem do espírito (ruah, sopro) para significar ações silenciosas, cotidianas, unificadoras e impulsionadoras, capazes de mudar o mundo. O âmago da revolução, portanto, não reside no movimento violento e estrondoso das armas (embora essas sejam por vezes indispensáveis para confirmar o processo), mas na ação silenciosa e tenaz do Espírito no íntimo das pessoas. O reencontro entre Bíblia e pensamento moderno, operado por Hegel e consortes, põe fim à leitura platônica da obra do espírito, que durante longos séculos predominou na literatura cristã. No pensamento platônico, como sabemos, a ‘espiritualidade’ não tem nada a ver com a vida dos corpos com seus problemas ‘materiais’. Mas, inesperadamente, filósofos modernos da envergadura de Hegel, Kant e Diderot fornecem aos cristãos de hoje uma senha de acesso aos documentos de sua própria tradição. O mesmo se diga de um filósofo do século XX, o marxista Ernst Bloch, que, em seu ‘Princípio Esperança’ (‘Das Prinzip Hoffnung‘, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1949) escreve que Jesus ‘incorpora’ o Espírito Santo, vive o ‘sonho diurno’ de um ‘mundo diferente’, e assim acumula energias em prol da mudança, em contraste com o conformismo inerente às religiões hierarquizadas.
A tradição.
Essas pinceladas apelam para a seguinte reflexão: ao longo desses dois mil anos de história cristã, o Pentecostes foi vivido nos mais variados contextos e teve nomes e protagonistas diferentes. Isso nos traz a seguinte reflexão: ao querer falar do pentecostalismo, não se pula direto do segundo capítulo dos Atos dos Apóstolos aos nossos dias. Há de se passar pela ‘tradição’. Uma tradição nos deu um Paulo de Tarso, um Bento de Núrsia, um Joaquim di Fiori, um Francisco de Assis, um Lutero, um Calvino, um Zwingli, um Inácio de Loyola, um Domingos de Guzmán, um Armínio, um John Wesley, uma Hildegarde de Bingen, um Mestre Eckhart, uma Teresa de Ávila, um João da Cruz, um Antônio Conselheiro. Uma tradição tão diversificada que o estudioso pentecostal Samuel Pereira Valério, numa entrevista que captei na Internet, declara: existem profundas diferenças entre os grupos que se dizem pentecostais. No que se costuma chamar ‘pentecostalismo’ (em singular) atuam na realidade complexos e diferenciados cruzamentos entre arminianos, calvinistas, batistas, presbiterianos, metodistas, quakers. Há como detectar mesmo mútuas influências entre grupos pentecostais e participantes de movimentos carismáticos católicos.
Ao escrever estas linhas, sinto-me de repente como navegando numa imensidão oceânica. Enxergo no horizonte longínquo a imagem da ‘Iluminação’ de Buda, recordo a Visita do Anjo Gabriel a Maomé, relembro o Livro dos Aforismos de Confúcio, entrevejo a Satyagraha de Gandhi. Imagens e mais imagens da atuação de ‘Sopros de Deus’ sobre a vastidão do mundo. Aí me volta a frase de Jesus: O vento sopra onde quer, você entende sua voz sem saber donde vem nem para onde vai. Assim vai todo homem nascido do Sopro (Jo 3, 8).Um Sopro de Deus em Nazaré, Jerusalém e Corinto, mas também em Nepal, em Meca, na China, no Brasil.
Não posso deixar de dizer aqui, dentro do tema ‘tradição’, umas palavras sobre o catolicismo, religião em que nasci e me criei. Durante longos séculos, o catolicismo foi a instituição mais poderosa das sociedades ocidentais, com seu papado no topo, suas dioceses espalhadas pelo mundo, suas paróquias a marcar as horas, os dias, as semanas, os anos e os momentos das vidas das pessoas, ou seja, a acompanhá-las do nascimento à morte, por meio de ritos, pregações, sacramentos, regras de conduta, principalmente pela criação de um impressionante imaginário. Igrejas no centro das aldeias, e no meio das cidades a catedral. Mitras, batinas, estolas. A época gloriosa do catolicismo se situa na Idade Média, quando – ao lado de retumbantes sucessos – se cometeram erros gigantescos. A hierárquica eclesiástica da época incorreu no erro fatal de construir uma cristandade sem praticamente nenhuma referência à irrupção do Espírito de Deus no mundo. Um impressionante imaginário de poder e glória ocultou a ação do Espírito.
Esse desvio gigantesco deixa hoje não poucos católicos perplexos. Cresce o número dos que se dão conta que resgatar o sentido original do cristianismo é coisa difícil para os católicos. Difícil abandonar a postura psicológica, a mentalidade de quem foi educado dentro da ideia de uma instituição eclesiástica eterna e imutável, na ilusão de uma sociedade ‘cristã’ transmitida por ‘osmose’, pela simples transmissão da cultura na sucessão das gerações.
Esse catolicismo ‘sem Espírito’ facilitou o surgimento da atual religião, mundial e exclusivista, do mercado. Se, durante séculos, se disse: ‘extra ecclesiam nulla salus’ (fora da igreja não há salvação), agora se diz ‘there is no alternative’ à religião do mercado. O mercado regula tudo, como um Deus. Distribui, equilibra, põe ordem nas coisas. Na realidade cria ricos extremamente ricos e pobres extremamente pobres. Por causa do background católico absolutista, foi relativamente fácil, para os pregadores da religião do mercado, convencer as pessoas do poder absoluto do mercado. Na vida cotidiana, as regras não sofreram muita alteração e muitos nem sentiram a transição.
A ‘pentecostalidade’.
Como tencionei mostrar neste texto, a atual apropriação política do pentecostalismo não esgota nem de longe as potencialidades desse modo de se confessar o cristianismo. Existe, no pentecostalismo, muita riqueza que escapa a essa apropriação.
Eis o ponto que chamou a atenção de alguns dos bispos católicos que participaram do Concílio Vaticano II, realizado em Roma entre 1962 e 1965. Ali despontou, embora de modo velado, sem nome nem qualificação, o tema do pentecostalismo. Aliás, foi no contexto desse despertar que nasceu o neologismo ‘pentecostalidade’.
Isso se deu por ocasião de uma discussão, na Aula Conciliar, sobre o ‘carisma’ (veja o verbete ‘Carisma’ no ‘Dicionário do Concílio Vaticano II’, editado por Paulinas e Paulus, São Paulo, 2015 [cuja coordenação coube, em parte, a Wagner Sanchez Lopes], pp. 78-80). Apresentaram-se duas posturas frente ao ‘carisma, dom do Espírito Santo’. Uma, defendida pelo Cardeal italiano Rufini, representou a doutrina clássica: o carisma é um dom ‘extraordinário’, a ser exercido em submissão à autoridade eclesiástica. Outra, representada pelo Cardeal belga Suenens, sustentou que o carisma é um dom ‘ordinário’ do Espírito Santo, ou seja, livre e independente de ordenamentos eclesiásticos, embora sempre ‘ordenado ao bem da comunidade’. Enfim, uma adaptação da frase de São Paulo que já comentei acima: A cada qual se concede a manifestação do Espírito, sempre ordenado ao bem da comunidade (1Cor 12, 7). A Assembleia se posicionou do lado de Suenens e o tema da liberdade no Espírito apareceu em dois documentos conciliares: ‘Lumen Gentium’ (4, 7 e 12) e ‘De Ecclesia’. Mas, pelo resto, houve pouco interesse. O assunto passou quase despercebido, sem comentários. Como já escrevi, o termo ‘pentecostalismo’ nem chegou a ser mencionado. Acontece que o frade dominicano Yves Congar, um dos melhores teólogos participantes do Concílio, demonstrou interesse pelo tema e chegou a lançar o termo pentecostalidade (Dicionário, p. 80). Isso em diversos comentários seus, que aparecem no verbete acima mencionado do Dicionário do Concílio Vaticano II e particularmente no livro ‘A Palavra e o Espírito’, traduzido em português e editado pela Loyola, São Paulo, em 1989. A tese de Congar: uma pentecostalidade permeia toda a tradição cristã. O Espírito de Deus, que se revelou em Jerusalém a discípulos amedrontados, continua se revelando. Ele toma sempre a iniciativa, mas não segura o discípulo pela mão, não obriga, não dirige. Respeita nossa liberdade. Ele ‘sopra’.
Para terminar escrevo algumas orientações de leitura que me parecem condizer com uma compreensão ‘pentecostal’ do cristianismo:
* Aprender a ler a Bíblia segundo o modo em que os antigos judeus a leram, ou seja, seguir o modo ‘midrash’ dos antigos rabinos: contar as histórias com forte ingrediente imaginativo.
* Abandonar uma leitura exclusivamente linear dos textos a favor de uma leitura mais condizente com as circunstâncias concretas da vida vivida. Isso implica em ver nos textos disponíveis peças de um ‘quebra-cabeça’ a ser montado pelo leitor atual. Operação delicada, decerto, que consiste, por exemplo, em retirar o tema pascal do foco e focar o tema pentecostal, ou seja, relacionar a narrativa sobre a ressurreição de Jesus ao evento pentecostal e não ao evento pascal. Pois a ‘semana santa’ é a semana da derrota (aparente) do movimento. Ela termina com o abandono dos discípulos, que deixam Jesus só. Pentecostes, pelo contrário, realça a recuperação da coragem por parte desses discípulos, após meses (ou anos? quem sabe?) de insegurança, abatimento e vontade de abandonar o projeto de Jesus.
* Recolocar narrativas esparsas, como se fossem peças do um quebra-cabeça, numa grande narrativa de recuperação do movimento de Jesus após o trauma da crucifixão, como fiz na apresentação do item 2 deste texto, ao ler a narrativa da paixão de Jesus e do abandono dos discípulos numa perspectiva pentecostal. Quer me parecer que essa narrativa esteja mais próxima do realmente vivido. Mas, claro, é assunto para discussão.
* Termino com o versículo 46 do segundo capítulo dos Atos dos Apóstolos:
(após Pentecostes) cada dia, com constância e unanimidade, eles se dirigiam ao Templo, dividiam o pão em suas casas e se alimentavam com alegria e de coração simples. O povo inteiro os olhava com simpatia. Não importa que o templo seja budista ou umbandista, católico ou pentecostal. O que importa é que se divida o pão com os que não o têm.
Recomendo a leitura do artigo ‘Hermenêutica Bíblica: refazendo caminhos’, de José Ademar Kaefer (jademarkaefer@gmail.com), publicado na revista Estudos de Religião, vol. 28, n.1. São Bernardo do Campo: UMESP, 2014, p.115-134. O artigo aborda alguns temas que só abordei por cima neste meu texto, como, por exemplo, o das tradições orais na transmissão da Bíblia, ou o método ‘midrash’ dos antigos rabinos, etc. Kaefer se diz devedor de biblistas pioneiros na América Latina e cita Milton Schwantes, Severino Croatto, Gilberto Gorgulho, José Comblin, Carlos Mesters, Jorge Pixley e Ana Flora Anderson.
2. O Espírito Santo e a Tradição de Jesus, por José Comblin ( pp 269 – 276)
Proponho-me a comentar aqui escritos menos conhecidos de José Comblin, principalmente os que ele elaborou ainda na Bélgica antes de viajar ao Brasil (1950-1958) ou nos primeiros anos do Brasil, quando ele ainda escreveu em francês (1958-1965). Penso em juntar também um comentário aos dois volumes de sua Teologia da Revolução, igualmente escritos em francês e publicados no início dos anos 1970. A intenção é de realçar a figura intelectual de Comblin, um aspecto talvez menos conhecido de sua personalidade.
Vamos aos seus primeiros escritos, elaborados em torno de sua Tese de Doutorado em Teologia na Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica, no início da década de 1950.
Bem jovem, Joseph Comblin (1923-2011, ainda não José) entra no seminário católico de Malinas, na Bélgica, e, se revelando bom nos estudos, é enviado à Universidade de Lovaina para estudar teologia.
Por que o estudante escolhe, para a difícil prova do Doutoramento em Teologia, trabalhar sobre o Apocalipse de São João? Curvado sobre o texto, no silêncio de seu quarto de estudos, lendo as primeiras palavras do Apocalipse: Desvelamento de Jesus Cristo, ele se sente atraído pela poderosa mística que emana do texto. Assim imagino. A mística que fez com que Mateus, em seu Evangelho, escevesse: nada que é velado deixará de ser desvelado, nada que é escondido ficará desconhecido. O que lhes digo na escuridão, repitam à luz do meio dia, o que se lhes sussurra na orelha, gritem em cima dos telhados (10, 26-27). Urge revelar Jesus Cristo o mais depressa possível, pois Jesus fica escondido por demasiado tempo. Há de se gritar em cima dos telhados o que se sussurra na orelha. Urge mostrar o que se deve mostrar, o mais depressa possível (Apoc. 1, 1). Nos textos do Novo Testamento se encontram nada menos de cem exortações acerca do que ‘deve’ acontecer, do que ‘deve’ ser anunciado: O Filho do Homem deve sofrer e morrer (Mt 8, 31), eu devo ocupar-me das coisas de meu Pai (Lc 2, 49), O Filho do Homem deve ser elevado da terra (Jo 3, 14). Tudo isso urgentemente, o mais depressa possível. Para João, o místico judeu que escreve setenta anos após a morte de Jesus, não há mais tempo a perder. Jesus Cristo tem de ser revelado logo:
Feliz quem lê e os que escutam
As palavras da profecia
E que guardam as coisas nelas expressas
Pois o momento, sim, urge (Apoc. 1, 3).
Como ressoam essas palavras na alma de um estudante, que cursa numa Universidade conhecida e estimada por procurar alcançar ‘ideias claras e precisas’ sobre o que vai escrito? Onde textos considerados obscuros e enigmáticos, permeados de imagens de difícil interpretação, costumam ser deixados de lado?
Aqui já temos uma primeira imagem do intelectual Joseph Comblin. Em meio a um ambiente intelectual impregnado de ‘cartesianismo’, ele se abre a um texto místico, cuja leitura postula, antes de tudo, o exercício de uma inteligência intuitiva, aquela inteligência que consiste em ver Deus nas coisas, como escreve Spinoza em sua ‘Ética’. Joseph não tropeça sobre imagens como a da luta entre a ‘Besta’ e os seguidores do ‘Cordeiro imolado’, do ‘Cavaleiro montado num cavalo branco’, do ‘Filho do homem’ a segurar sete estrelas na mão direita e uma espada afiada (que corta de dois lados) saindo da boca, etc. Ele não fica assustado com o turbilhão de imagens do Apocalipse, pois capta a inspiração geradora dessas imagens, dos símbolos, sugestões e evocações fortes e impactantes.
Penso que a opção do estudante Joseph Comblin, no sentido de escolher trabalhar em cima do Apocalipse, diz muito, não só sobre seu perfil intelectual, mas também sobre seu temperamento. Ao longo de sua vida posterior, ele vai demonstrar que vem para ‘desvelar’, ‘revelar’, provocar, desafiar a inteligência de seus ouvintes, leitores e interlocutores.
O estudante Joseph se sente atraído pelo visionário judeu João, que ‘descobre’ Jesus Cristo, retira o véu da incompreensão, por meio de uma compreensão intuitiva de sua figura. Sua poderosa prosa, ‘obra de furor e paz, sangue e luz’, não amedronta o estudante, que resolve fazer sua Tese de Doutoramento em Teologia em cima de uma leitura do penúltimo capítulo do Apocalipse, o capítulo 21, acrescido dos primeiros 5 versículos do capítulo 22, à qual dá o título La Liturgie de la Nouvelle Jérusalem (Apoc 21,1-22,5). No referido capítulo surge a esplendorosa visão da Nova Jerusalém, finalmente vencedora da Babilônia, onde reina a ‘Besta’ com seus lacaios. A Nova Jerusalém desce do céu num fulgor de luz e de paz. O jovem teólogo capta por que João opõe Jerusalém a Babilônia.E, logo após a conclusão de seu Doutorado, ele resolve retrabalhar o texto, alargar o tema e abarcar uma leitura do Apocalipse inteiro. Assim sai à luz seu primeiro livro: Le Christ dans l’ Apocalypse (Bruxelles, Desclée, 1965).
O livro, editado 56 anos atrás, ainda hoje merece ser lido. Consta do acervo de livros que Comblin, alguns anos antes da morte, doou para a Biblioteca da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Como sou feliz possuidor de um exemplar, dou aqui um breve comentário.
Não é à toa que Joseph retoma pacientemente a longa lista de comentários do texto, que cobrem dois mil anos (como você pode conferir por meio do verbete ‘Apocalipse’ no ‘Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs’, editado pela Vozes em 2002, pp. 126-127). Mas, enquanto muitos desses comentários, ao longo dos tempos, se atêm a estranhezas (o número 616; as sete trombetas e as sete taças, os quatro cavaleiros, a espada que corta de dois lados, os candelabros etc.), Comblin focaliza logo o cerne da questão: Babilônia e Jerusalém. A Babilônia, ‘a grande prostituta’ (19, 2), a ‘moradia dos demônios’ (18, 2), hospeda a Besta ‘que só abre a boca para proferir blasfêmias contra Deus’ (13, 6).Ela simboliza sucessivas dolorosas histórias, vividas pelo povo judeu, como o exílio babilônico do século IV aC, por exemplo. A história mais dolorosa se refere à corrupção própria Jerusalém, que decide, por meio de seu Sinédrio, crucificar Jesus. Eis o ponto fundamental, em torno do qual tudo gira. No momento em que Jerusalém condena Jesus, ela se torna cúmplice de Roma, a Babilônia. Mais: ao ‘matar o profeta de Deus’ (11, 8), Jerusalém vira uma nova Babilônia, domínio do Satã (11, 7-8) e executora dos profetas. Ao se alinhar com Roma, ela não é mais o ponto de convergência dos povos. Nasce uma Nova Jerusalém entre os cristãos, seguidores do mártir Jesus. Relacionando o drama de Jerusalém ao drama de Jesus, o Apocalipse projeta esse último num cenário mundial. Roma significa a mundialização da profecia de Jesus. Aqui vale a pena ler (para os que estão em condição!) a longa nota 2 das páginas 88-89 do livro que estou comentando, e que não cito aqui por falta de espaço.
A derrota política de Jerusalém no ano 70 dC (movimento dos zelotes) confirma a visão de João. A cidade histórica deixe de ser referência. Os cristãos fogem da cidade para Pella e aí se tornam o ‘resto espiritual de Sião’. Carregam consigo a Jerusalém espiritual. Como Jesus foi condenado em Jerusalém por Roma, os cristãos fogem de Jerusalém e de Roma. A Nova Jerusalém é irredutível a Roma. No momento em que Roma reivindica a supremacia sobre o mundo, ela entra em conflito com Jesus (veja pp. 190-191).
Embora seu primeiro livro seja um primor, Joseph não se dá por satisfeito, pois sabe que esse livro nunca será lido por um público não versado em teologia. Então resolve retrabalhar o tema de modo menos acadêmico, em forma de ensaio, deixando de lado o pesado aparelho bibliográfico e mesmo a referência ao Apocalipse. Assim aparece em 1959 um novo livro, intitulado La réssurrection de Jésus Christ. Essai (Paris, Éditions Universitaires, 1959) e logo traduzido em neerlandês Hij is verrezen. Essay (‘Ele ressuscitou. Ensaio’; s’ Gravenhage, Pax, 1963). O livro é bem acolhido, ganha um elogio do professor holandês Grossouw, na época uma referência no mundo teológico e pastoral de língua neerlandesa: ‘Comblin é legível por um leigo não especializado, mas não é superficial. Não procura sensação por teses ousadas. Ele é um verdadeiro ensaísta. Paira um ar de liberdade. O leitor se sente bem, pois o autor não se exibe conhecimentos e conduz o leitor pela mão, como um guia. Ele é um autor ‘profano’, ou seja, dialoga com o mundo profano. Critica a teologia medieval que não entende a ressurreição, pois vive encapsulada na cristandade e não tem perspectiva de futuro diferente, democrático e secular. Mostra-se a favor da secularização e da democracia’ (edição neerlandesa, pp. 9-11).
Esses elogios fazem pensar em algo que permeia toda obra teológica de Comblin: ele não está empenhado em provar que ‘entende do assunto’, mas quer dialogar com seu leitor, sua leitora. Escreve em tom ‘ensaístico’, não ‘dogmático’, e nisso acompanha diversos bons teólogos da época, como Michel de Certeau, que não se refugiam numa ‘especialidade’, mas transitam livre e competentemente por diversos campos de conhecimento. Teólogos que não têm medo de enfrentar os grandes temas do cristianismo, acima das controvérsias, não se perdem em minúcias, não apresentam erudição, não entram em discussões e controvérsias, não discutem pormenores, mas só tratam de dados primários e fundamentais. Comblin não se exibe, vai direto ao assunto e pressupõe, por exemplo, que seu leitor seja bastante inteligente para captar que, em seu livro ‘A ressurreição de Jesus Cristo’, por exemplo, ele se move em campo místico, não definidor nem doutrinador. O autor nada mais pretende que apresentar uma síntese, provocar uma conversa com o leitor e, ao mesmo tempo, instigar a reflexão.
Desde esses primeiros livros, ao comentar o Apocalipse e o Evangelho de João, escritos considerados difíceis pelos exegetas, ele revela a humildade e sinceridade de um grande intelectual. Não pretende dizer a última palavra, não se refugia atrás de seu título de ‘Doutor em Teologia’, não se exibe como exegeta, conversa com seu leitor, sua leitora, está interessado em fazer com que se reflita. Enquanto os exegetas têm medo de comentar o Apocalipse, dizendo que não dominam a complexa literatura apocalíptica judaica da época, Joseph avança e depura o que está ‘por trás das palavras’ desse texto em muitos pontos enigmático. Permanece ‘provisório’, ‘incompleto’, consciente da provisoriedade de qualquer interpretação de textos tão complexos como são os textos atribuídos a João Evangelista.
Acrescento aqui um dado importante. Joseph vê no Apocalipse a chave de compreensão do quarto Evangelho. Uma fértil intuição, embora não aceita por todos os especialistas. Comblin enxerga no Evangelho a mesma poderosa prosa que ele encontrou no Apocalipse. João é alguém que parece dizer, a cada momento: como foi possível aparecer no mundo uma figura humana como Jesus! Ele eleva a figura de Jesus ao mais alto dos céus, ao mundo sublime de Deus, à própria convivência divina. O que atrai no texto de João é a mais viva emoção que transparece a cada momento: a Verdade, a Luz e a Glória alcançam nosso mundo na pessoa de Jesus de Nazaré! Uma obra de excepcional inteligência intuitiva. Embora provavelmente poucos episódios narrados por João tenham a ver com acontecimentos reais, ocorridos na vida de Jesus, eles (as conversas com Nicodemos e com a mulher samaritana, a ressurreição de Lázaro, etc.) captam maravilhosamente o espírito de Jesus e do primeiro cristianismo.
Hoje temos o ‘best seller’ ‘The fourth Gospel’ (O quarto Evangelho, Harper One, 2013), do exegeta e bispo norte-americano (da igreja episcopal) John Shelby Spong. Mas quando lemos esse livro, verificamos – não sem surpresa – que, no fundo, o Comblin de 1959 combina com o Spong de 2013. Claro, o primeiro não dispõe do instrumental de análise linguística do segundo (escreve numa antecedência de mais de 50 anos), mas é interessante verificar que ambos concordam no essencial: a obra de João Evangelista e a obra de um místico judeu do final do século I dC, dotado de grandes habilidades literárias, de uma inteligência intuitiva excepcional.
Gostaria, para terminar, de comentar a impressão que o teólogo francês Yves Congar teve dos primeiros trabalhos de Comblin, especificamente dos dois volumes da sua Théologie de la Paix (Principes, editado emBruxelles, Éditions Universitaires, em 1960, e Applications, pela mesma editora, em 1963), que Joseph – por sinal – redigiu a pedido do Cardeal Léon Suenens, da Bélgica. Congar escreve que esses livros são um peu touffus (‘um pouco espessos’, ou seja, sobrecarregados de detalhes).
É verdade. Mas há como argumentar que esses detalhes e essas frequentes anotações ao pé das páginas revelam algo que, com os anos, desaparecerá dos livros de Comblin: a preocupação em fundamentar a teologia na história concreta dos homens. Ao longo de toda a sua produção intelectual, José aborda sempre seus temas teológicos por meio de considerações históricas, e isso exige entrar em pormenores, escrever longas páginas para apresentar temas que, para muitos, pertencem a um passado morto. Acontece que o passado não está morto, mas vive no presente. ‘Quem desconhece o passado está condenado a repeti-lo’, diz o ditado. Ao longo de sua vida de intelectual, Comblin se distingue de muitos de seus colegas teólogos por nunca omitir a dimensão histórica do estudo teológico de não ‘pular’ em cima da história e evocar simplesmente a vida dos primeiros cristãos para apresentar experiências de hoje (na apresentação das Comunidades Eclesiais de Base [CEBs], por exemplo). José nunca passa diretamente da Bíblia ou dos primeiros tempos cristãos para a situação atual. Sempre considera a ‘tradição’, ou seja, a mediação dos dois mil anos de cristianismo. Assim ele não fala em CEBs sem falar da paróquia. Convencido que ‘o passado vive em nós’, não é nunca página virada. Negligenciado, pode se vingar, de modo inesperado.
Concluindo. Nos primeiros livros de Joseph Comblin, ainda dos anos 1950, que acabei de comentar acima, encontramos um estudante em teologia que consegue ver claro num turbilhão de imagens e símbolos, muitos deles enigmáticos para nós hoje. Um estudante capaz de superar a condição de ‘inteligência confusa’ e dizer as coisas com clareza meridiana. Uma clareza que – à primeira vista – se apresenta como ousadia, mas que na realidade é uma clarificação do pensamento (embora a muitos se apresente como provocação). Nesse sentido, o ‘Desvelamento (a apocalipse) de Jesus’ é o desvelamento da história do mundo, simbolizada pela transformação da Antiga Jerusalém, vergonhosamente humilhada pela Babilônia e que acabou se submetendo ao poder da ‘Besta’, em uma Nova Jerusalém, espiritual, que desce do céu e liberta os habitantes dos poderes imperiais deste mundo. Encontramos aqui outra poderosa imagem metafórica, a do Reino de Deus, que subjaz às falas de Jesus de Nazaré.
Sua produção teológica e os projetos pastorais foram construídos a partir de uma apurada crítica aos sistemas políticos, econômicos e sociais que lhe eram contemporâneos. Tal crítica, associada não poucas vezes à ação da própria Igreja, tinha por intuito mostrar a contradição desses sistemas com a dimensão ético-social e eclesial mais profunda do Evangelho: o cuidado com os pobres. Esse cuidado, impulsionado pelos valores do Evangelho e pela força do Espírito presente e atuante na história, foi a marca da vida, da fé e das obras do eminente teólogo.
Nesse sentido, é figura simbólica para muitos cristãos e cidadãos espalhados pelo mundo, sobretudo na América Latina e no Nordeste brasileiro. Um dos grandes colaboradores da Teologia Latino-Americana da Libertação, com uma produção privilegiada em que se contam centenas de artigos e mais de setenta livros. Comblin foi um apaixonado pela causa libertária dos pobres, na perspectiva do seguimento de Jesus, o que abre perspectivas para reflexões sobre a identidade da fé cristã como também sobre critérios para o diálogo inter-religioso.
A diversidade e a amplitude dos temas analisados por Comblin, articulados de forma contextualizada com as diferentes áreas do saber (Filosofia, Antropologia, Sociologia, Psicologia, Economia e Ciências da Religião), nos permitem sistematizar sua reflexão a partir do diálogo entre Teologia Fundamental e as demais áreas da Teologia (Teologia Sistemática, Revelação na Sagrada Escritura e na Tradição cristã e a Teologia Prática). Trata-se de uma produção teológica relevante que oferece fundamentos não só para o trabalho pastoral, mas também para a produção teológica que privilegia a relação entre fé e vida, texto e contexto, Igreja e sociedade. A produção de teológica de Comblin é densa e contextualizada. E é essa segunda característica que nos permite falar de sua pertinência para os dias atuais. Comblin escrevia e refletia em seus escritos aquilo que vivia pessoalmente e que os destinatários de sua teologia, os pobres, viviam ou pudessem viver.