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De que lixeira saiu esta cartilha de repressão ditatorial?

Vamos supor que você fique sabendo da existência de um manual para a intervenção das Forças Armadas em situações que não configuram, nem de longe, o enfrentamento de inimigos externos (a missão que a elas compete numa verdadeira democracia).
 Um manual que contenha tópicos como estes:
  • Operação de Garantia da Lei e da Ordem é uma operação militar conduzida pelas Forças Armadas, de forma episódica, em área previamente estabelecida e por tempo limitado, que tem por objetivo a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio…
  • Forças Oponentes são pessoas, grupos de pessoas ou organizações cuja atuação comprometa a preservação da ordem pública ou a incolumidade das pessoas e do patrimônio…
  • A decisão do emprego das Forças Armadas  na garantia da lei e da ordem compete exclusivamente ao Presidente da República, por iniciativa própria, ou em atendimento a pedido manifestado por quaisquer dos poderes constitucionais…

  • …pode-se encontrar, dentre outros, os seguintes agentes como Forças Oponentes: a) movimentos ou organizações; c) pessoas, grupos de pessoas ou organizações atuando na forma de segmentos autônomos ou infiltrados em movimentos, entidades, instituições, organizações… 
  • …podem-se relacionar os seguintes exemplos de situações a serem enfrentadas durante uma Operação de Garantia da Lei e da Ordem: c) bloqueio de vias públicas de circulação; d) depredação do patrimônio público e privado; e) distúrbios urbanos; f) invasão de propriedades e instalações rurais ou urbanas, públicas ou privadas; g) paralisação de atividades produtivas; h) paralisação de serviços críticos ou essenciais à população ou a setores produtivos do País; i) sabotagem nos locais de grandes eventos; e j) saques de estabelecimentos comerciais.
  • …podem-se relacionar as seguintes ações a serem executadas durante uma Operação de Garantia da Lei e da Ordem: c) controlar vias de circulação urbanas e rurais; d) controlar distúrbios; e) controlar o movimento da população; f) desbloquear vias de circulação; h) evacuar áreas ou instalações; l) impedir o bloqueio de vias vitais para a circulação de pessoas e cargas; m) interditar áreas ou instalações em risco de ocupação; n) manter ou restabelecer a ordem pública em situações de vandalismo, desordem ou tumultos; r) prover a segurança das instalações, material e pessoal envolvido ou participante de grandes eventos; restabelecer a lei e a ordem em áreas rurais; e v) vasculhar áreas.

Você, claro, pensará tratar-se de um documento encontrado entre as imundícies da lixeira da História, originário da Alemanha de Hitler, da Itália de Mussolini, do Chile de Pinochet ou, mesmo, do Brasil de Médici.
Difícil mesmo seria você adivinhar que ele foi publicado no site do Ministério da Defesa brasileiro, no apagar das luzes de 2013, com o aval e a assinatura do ministro incumbido de defender e preservar a democracia que o País tanto sofreu para reconquistar (um senhor chamado Celso Amorim).
Parece que a paúra que lhes inspiram os indignados e a garotada dos rolezinhos, neste ano de Copa do Mundo e de eleição presidencial, está transtornando nossos governantes a ponto de eles abdicarem da mais comezinha cautela (para não falarmos do próprio instinto de sobrevivência!).
Será que não passa pela cabeça desses obtusos burocratas a possibilidade de um futuro presidente da República fazer o pior uso possível de tal cartilha de repressão ditatorial?!
Os signatários do Ato Institucional nº 5, dentre eles o Delfim Netto e o Jarbas Passarinho, também supunham que aquelas medidas totalitárias serviriam mais como espantalho, para intimidar e dissuadir os resistentes, do que para serem neles hediondamente aplicadas. Serão amaldiçoados até o final dos tempos por causa dos horrores que decorreram de suas insensatas assinaturas. 
Ai de quem escancara os portões do inferno, Amorim!
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ESTARRECEDOR: DILMA OMITIU TOTALMENTE A BRUTALIDADE POLICIAL!

A mensagem da presidenta Dilma Rousseff ao povo brasileiro só me deixou uma dúvida: terá o Jarbas Passarinho sido o ghost writer?

 

Pois a diferenciação entre  manifestantes pacíficos  e minoria autoritária, quem fazia era a ditadura militar. Dilma deveria pagar-lhe direitos autorais.

 

De quem tem sua história de vida e integra um partido criado por perseguidos políticos, esperava-se um mínimo de equilíbrio e coerência: criticar não apenas os excessos cometido por manifestantes ou provocadores infiltrados entre eles, mas também, e principalmente (porque partida de quem deveria manter a ordem e não estuprá-la), a bestialidade policial que revoltou o Brasil e estarreceu o mundo.

 

E que dizer do comportamento imoral das polícias que facilitaram saques e depredações, retardando ao máximo o atendimento das ocorrências, porque sua verdadeira prioridade era retaliarem autoridades que os censuraram e/ou manipularem a opinião pública?! Isto caracteriza omissão no cumprimento do dever. Tanto quanto a brutalidade desnecessária, teria de ser rigorosamente apurada e punida.

 

E até quando vai ser ignorada a gravíssima denúncia do jornalista/historiador Elio Gaspari, de que duas dezenas de integrantes da tropa de choque foram os iniciadores deliberados do festival de agressões covardes do último dia 14 em São Paulo?

 

 

Gaspari foi muito claro sobre o que testemunhou: o ato transcorria na mais perfeita paz até que uns 20 brutamontes fardados, sem motivo nem aviso, começaram a atirar rojões e bombas de gás lacrimogêneo contra os manifestantes.

 

Ora, se policiais atuaram como agentes do caos, acendendo o estopim que faria explodir a violência descontrolada, isto também é muito pior do que a ação de qualquer depredador.

 

Nada disto foi lembrado pela presidenta, que nem sequer qualificou de bárbara uma polícia que praticou as mais flagrantes barbaridades. Quando a mesma PM vandalizou o Pinheirinho, Dilma, pelo menos, designou corretamente aquilo que havia ocorrido: fora, disse ela, um ato de barbárie. Desta vez, nem isto.

 

Quanto à defesa dos partidos, soaria bem mais sincera se não fosse o PT que os tivesse desmoralizado (e a si próprio) ao comprar o seu apoio com  uma farta distribuição de ministérios  y otras cositas más. Não seria melhor tentar fazer as suas posições prevalecerem pelos próprios méritos?

 

Já que optaram pela facilidade dos  acordos podres, os petistas não têm  motivos para se queixarem da péssima imagem das agremiações políticas. Depois de ver o Maluf, o Sarney, o Calheiros,  o Collor, o ACM e outros da mesma laia aos beijos e abraços com o Lula, o que mais o povo poderia concluir sobre os partidos e os políticos?


Precisamos de partidos, sim. Mas não desses que estão aí, vendendo-se no atacado e varejo e até leiloando seu voto nas questões importantes.

 

 

Nenhuma reforma política resolverá isto. O que é preciso, o Fernando Collor prometeu quando o entrevistei para a Agência Estado, logo no início da campanha presidencial de 1989: afirmou que, se medidas imprescindíveis estivessem sendo  embaçadas  pelo Congresso, ele iria pessoalmente explicá-las ao povo, exortando-o a pressionar os parlamentares.

 

Era a receita certa na boca do homem errado. Eleito, não fez nada disto.

 

E também se mostraram  presidentes  errados  o Itamar Franco, o FHC, o Lula e a Dilma. Nenhum deles teve a coragem de romper com as práticas fisiológicas, jogando o povo contra os congressistas, se necessário.

 

Estamos à espera de um presidente que, como os pequenos comerciantes dos filmes de Hollywood, ouse responder aos gangstêres que vêm cobrar-lhes por  proteção… contra eles mesmos: eu não pago!

 

O resto é conversa pra boi dormir. Se a Dilma  quiser algum dia coibir pra valer a ação dos corruptos, não precisará ir muito longe: vai encontrar boa parte deles abrigada na base aliada.

Recuos e capitulações não farão aflorar a verdade

Eles venceram o 1º round.
Quantos outros recuos haverá?

Como era esperado, a presidente Dilma Rousseff constituiu a Comissão da Verdade com os  notáveis  de sempre –aqueles que o sistema aceita como tais.

Como era esperado, vergou-se à pressão dos congressistas reacionários, que impuseram a condição de que nenhum antigo resistente integrasse o colegiado. O infame art. 2º, cuja inclusão eles exigiram para permitirem a aprovação da lei instituindo a Comissão, foi seguido ao pé da letra (o ex-ministro da Defesa Nelson Jobim garante ter sido acordada também a investigação de crimes atribuídos aos resistentes, será que a pusilaminidade chegou a tal ponto?!).

Como era esperado, os  compromissos da governabilidade  pesaram mais na decisão de Dilma do que a coerência com a própria história de vida: quem sempre afirmou que os militantes se igualavam aos verdugos (“ambos cometeram excessos”) é a pior direita que existe, a das  viúvas da ditadura.

 Ao aceitar o veto aos que arriscaram tudo e tudo sofreram para combater o despotismo, como contrapartida à não participação de militares, Dilma endossou a posição dos Passarinhos e Ustras da vida. É lamentável. Fico triste por mim,  pelos companheiros que morreram  e pelos que nunca mais foram os mesmos depois do calvário nos porões; e envergonhado por ela.

Que me desculpe aquela que conheci em outubro de 1969 como Vanda, mas nunca mais a tratarei novamente por companheira presidente. Quem fez jus a tal distinção foi Salvador Allende, que morreu em nome dos seus princípios… revolucionários!

Para mim, doravante, será sempre Vossa Excelência, tal qual o José Sarney e o Fernando Collor, dentre outros ocupantes do Palácio do Planalto.

UMA PALAVRA FINAL

Sinceramente, eu já adivinhava que a Dilma não se comportaria como uma  companheira presidente. Tudo me levava a crer que ela se tornara apenas uma tecnoburocrata do capitalismo, sem a mais remota aspiração atual de dar um fim à exploração do homem pelo homem. 

Agora está confirmado: é mais uma política que joga o jogo segundo as regra do sistema, não uma militante que entra no sistema para alavancar a revolução.

Apesar das minhas intuições, fiz tudo que podia para empurrá-la na direção dos ideais de outrora. É assim que sempre ajo. Não desisto enquanto a batalha não estiver definitivamente perdida.

Da mesma forma, quando a Comissão da Verdade foi aprovada a partir da capitulação diante da bancada direitista no Congresso, lutei até o fim contra tal ACORDO PODRE, INDIGNO E ALTAMENTE INSULTUOSO PARA NÓS, OS ANTIGOS RESISTENTES

Foi este o motivo de me haver proposto como anticandidato. Tratou-se apenas de uma tentativa de fazer com que a esquerda se unisse em torno da exigência de um representante das vítimas. 

Os algozes não poderiam mesmo estar representados, mas a igualação no veto só seria cabível em se tratando de grandezas equivalentes (aberração que só as   viúvas da ditadura  defendem, tentando encontrar uma atenuante para as atrocidades perpetradas). Ademais, aplicar a um processo de resgate histórico as regras de um tribunal é rematada tolice.

Sempre achei que o mais adequado para o papel fosse o Ivan Seixas, tanto que constantemente o indicava como uma ótima possibilidade.

Infelizmente, uma parte da esquerda preferiu desqualificar de fora a comissão, enquanto a outra parte, ou queria emplacar suas candidaturas (compatíveis com tal limitação), ou se alinha automaticamente com tudo que o governo faz.

 Eu lutei como pude, por menores que fossem as chances de mudar o que já estava pactuado; e, agora que o acinte se consumou, estou batendo pesado, como sempre faço.

 É travando todas as lutas até o último cartucho que conseguimos vencer alguma, mesmo se todas as condições são desfavoráveis, como no Caso Battisti.

 De resto, o cenário que se desenha é o do parto da montanha produzir um rato: os militantes já cansaram de proclamar a verdade e os militares não terão motivo nenhum para abdicar da mentira. 

A tendência é que  se sistematizem as versões já conhecidas sobre as execuções e demais atrocidades da ditadura, pouco se avançando na descoberta dos armários em que eles guardaram os esqueletos –salvo se a Comissão pudesse ao menos ordenar a prisão dos comprovadamente perjuros.

Mas, é óbvio que isto não ocorrerá.

Comissão da Verdade não pode igualar algozes e vítimas!!!

Deu na coluna Panorama Político do jornal O Globo, que geralmente acerta:

Comissão da Verdade – O ministro José Eduardo Cardozo (Justiça), por delegação da presidente Dilma, está fazendo consultas e convites para os sete integrantes da Comissão da Verdade. Já estão confirmados o ex-ministro Nilmário Miranda e o cardeal Dom Evaristo Arns. A comissão terá um tucano: José Gregori ou Paulo Sérgio Pinheiro. E um familiar de vítima da repressão pela ditadura militar: Clarisse Herzog, mulher de Wladimir Herzog, ou Vera Lucia Facciolla Paiva, filha do ex-deputado Rubens Paiva.

 Estão ainda em aberto as vagas destinadas a um historiador e a um jurista. (…). O sétimo nome será escolha pessoal da presidente Dilma.

Reitero minha afirmação de que é inaceitável o veto a quem pegou em armas contra a ditadura.

 Trata-se de mais uma pretensão das bancadas reacionárias do Congresso; já passou da hora de a presidente Dilma Rousseff mostrar a que veio, não cedendo a pressões e chantagens obscurantistas. A igualação das vítimas a seus algozes seria uma afronta para todos que sangramos na luta contra o despotismo e para todos os companheiros bestialmente assassinados durante a vigência do terrorismo do estado.

 

Não faria mesmo sentido nenhum termos um Jarbas Passarinho ou um Brilhante Ustra defendendo na Comissão os crimes e práticas hediondas pelos quais deveriam há muito ter sido condenados (um na condição de ministro da ditadura e signatário do AI-5, outro por haver comandado o pior centro de torturas da repressão, sendo o responsável último por cada sevícia e cada morte nele ocorridas).

Mas, fará todo sentido um Ivan Seixas, p. ex., estar presente para lutar pelo resgate integral da verdade, como lutou encarniçadamente para resgatar as ossadas de Perus.

 Se nós, que participamos da luta armada, formos tidos como desprovidos de legitimidade e isenção para ajudarmos a revelar a história do período, tal objeção deveria, evidentemente, ser estendida à própria escolha dos sete integrantes por parte da companheira Vanda. É simples assim.

 O que está em confronto são duas posições bem definidas:

  • a dos que resistimos à tirania e consideramos aberrante a comparação da luta quase suicida que travamos, em condições de extrema inferioridade de forças, com o genocídio e as atrocidades perpetrados pela ditadura e seus esbirros;
  • a dos culpados por tais genocídio e atrocidades, que tentam relativizar as chacinas impunes alegando que “excessos foram cometidos pelos dois lados”, de forma que o melhor seria passarmos uma borracha em cima de tudo.

Em nome de sua biografia e de tudo que sacrificamos para travar o bom combate, não cooneste esta infâmia, Presidente!!!

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O xís da questão é: a intimidação militar resultará ou não?

Se fizer concessões ao blefe de  pijamados
que não têm real influência nas tropas…

Quando a Comissão da Verdade se tornou lei, teria sido melhor definir seus integrantes e instalá-la de imediato “ou usar o largo prazo de 180 dias para compô-la, contando em enfraquecer com o tempo e a persuasão as reações dos temerosos ou contrários à veracidade histórica”?

A indagação é do veterano jornalista Janio de Freitas, na sua coluna desta 5ª feira (ver íntegra aqui).

Para ele, não há como saber, ainda, se o governo fez a melhor escolha ao optar pelo segundo caminho.

Na minha opinião, o Manifesto Interclubes e o  Manifesto Brilhante Ustra constituem prova evidente de que a opção foi desastrosa. Deu-se ao inimigo todo tempo do mundo para reagrupar suas forças e reagir, e o resultado aí está: pressões e intimidações cujo verdadeiro objetivo é torná-la inócua, ao arrepio do que o Executivo propôs e o Legislativo aprovou.

Agora, tudo leva a crer que acontecerá o que eu, desde o primeiro momento, temia: a indicação, para integrá-la, de sete personagens conciliatórios, palatáveis aos que têm esqueletos no armário e aos remanescentes/simpatizantes da ditadura, em geral.

Foi o que me levou, em setembro, a apresentar-me como anticandidato à Comissão da Verdade: evitar que o espaço fosse totalmente tomados por cidadãos com espinha flexível, dispostos a concessões em nome da famosa governabilidade (a justificativa para todas as incoerências e todos os recuos!).

Então, mais do que nunca, insisto: presidente Dilma, não adianta bom senso e jogo de cintura ao lidar com essa minoria de fanfarrões obcecados em evitar que sua imagem apareça no espelho da História como os Calibãs que foram e que ainda são.

…o governo, apesar das aparências,
terá perdido a verdadeira batalha.

[É um esforço inútil, claro. Independentemente do veredicto do Estado brasileiro, Brilhante Ustra será lembrado até o fim dos tempos como o comandante de um dos piores centros de tortura que já funcionaram no Brasil e Jarbas Passarinho, signatário do seu recente manifesto, como o ministro que afirmou estar mandando os escrúpulos às favas ao endossar outro documento igualmente hediondo, o que instaurou o AI-5.]

Ceder desta vez, explicita ou implicitamente, só os estimulará a ameaçarem com a velha desordem militar sempre que sentirem seus calos pisados. E os desafios vão se tornar cada vez mais explícitos e intoleráveis.

Então Jânio de Freitas está certíssimo quanto à forma de lidar com os dois manifestos “dessas criaturas da Guerra Fria, que elevaram o anticomunismo acima dos seus juramentos militares, da Constituição e da soberania nacional”: a presidente da República e o ministro da Defesa tem mesmo é de “cobrar, na forma da lei e dos regimentos militares, o respeito à sua autoridade impessoal e à Constituição”.

Como ele bem sintetizou: “aos fora da lei, a lei”.

Mas, não adiantará nada ambos manterem firmeza aparente e recuarem no que realmente importa.

O primeiro manifesto insubmisso exigia que Dilma desautorizasse suas ministras Eleonora Menicucci e Maria do Rosário, e foi o que Amorim implicitamente fez, ao garantir aos militares que a Comissão da Verdade vai respeitar a anistia que os verdugos concederam a si próprios, como um habeas corpus preventivo, em 1979.

Se Dilma, ademais, constituir a Comissão com sete figuras que não cheirarem nem federem; e se aceitar a exclusão de antigos combatentes contra a ditadura –o que equivalerá a endossar a velha tese do Brilhante Ustra & cia., da igualação dos torturadores e resistentes, dos carrascos e suas vítimas, de bestas-feras da tirania e defensores da liberdade–, então os oficiais de pijama terão, na verdade, vencido a parada, apesar das aparências.

E dias piores virão, com certeza.

Lula e a chantagem verde-oliva

O civil Nelson Jobim, fantasiado de soldado. Sonho de infância?

Em setembro de 2007, o alto comando do Exército lançou uma nota oficial para contestar a disposição do Governo Federal de abrir a caixa preta da ditadura de 1964/85, expressa em discursos e entrevistas de autoridades presentes no lançamento do livro Direito à Memória e à Verdade — um dossiê oficial sobre como foram assassinadas centenas de resistentes durante o regime militar.
A preocupação dos fardados era com a aventada possibilidade de revogação da Lei de Anistia.

Com razão, pois, concertada em plena ditadura, a anistia de 1979 embutiu um habeas-corpus preventivo para os torturadores, tendo esse sapo sido digerido porque era o preço para a libertação de presos políticos e permissão do retorno de exilados.

Minha avaliação, aliás, coincide com a do veterano analista político Jânio de Freitas, em sua coluna deste domingo (3) na Folha de S. Paulo:

“Foi uma concessão dos militares e da direita civil em proveito seu, por temor aos tribunais, e aceita pela esquerda e pela demais oposição para aplacar a sua ansiedade, bem brasileira, de ver os exilados e os presos de volta ao ninho”.

O Ministério discutiu em 2007 o assunto e a maioria dos ministros seguiu a posição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, considerando intocável aquela anistia que igualara as vítimas a seus carrascos.

Foi quando o ministro da Defesa Nelson Jobim, que até então tentava impor a autoridade do Governo sobre os comandantes militares, deu uma guinada de 180º, tornando-se porta-voz da caserna no seio do Governo.

Coerentemente com a decisão tomada naquela ocasião, sempre que é pedido um parecer da Advocacia Geral da União em processos abertos contra antigos torturadores, a AGU afirma que a anistia de 1979 impede a punição desses réus.

ACUMULAÇÃO DE FORÇAS

Os ministros Tarso Genro (Justiça) e Paulo Vannuchi (Direitos Humanos), impedidos temporariamente de levar adiante sua cruzada na esfera do Executivo, transferiram-na para o Judiciário, lançando a palavra-de-ordem de que os verdugos deveriam ser acusados de crimes comuns.

Com isto, a sociedade civil voltou a mobilizar-se, o interesse pelo tema foi reavivado e começaram a surgir novas (e escabrosas) revelações, principalmente sobre a política de extermínio dos resistentes já vencidos, implementada pela ditadura a partir de 1971.

Como também assinalou Jânio de Freitas, “ao passo que, por ocasião da Anistia, tudo era sabido das ações contra o poder militar, aos militares foi anistiado sobretudo o que deles não era sabido”.

Hoje, entretanto, já se conhece boa parte do festival de horrores por eles encenado, principalmente a partir do momento em que colocaram o Brasil inteiro sob lei marcial (pois esta é a essência do AI-5, embora eles tenham evitado dar nome aos bois).

Desde 2007, vem ocorrendo uma acumulação de forças no sentido de que seja, de uma vez por todas, revelado aos brasileiros o que eles têm todo direito de conhecer: as ações daqueles que (des)governaram o País em seu nome durante 21 longos anos, com o agravante de que os mandatos eram derivados das baionetas e não conquistados nas urnas.

Este ascenso se corporificou no compromisso, assumido pelo Governo, de criar uma Comissão da Verdade, principal avanço da terceira versão do Programa Nacional de Direitos Humanos, lançado no último dia 21.

Faz todo sentido que tenha novamente havido reação militar contra uma iniciativa de resgate histórico partida do Executivo. É rotina, como ironiza Elio Gaspari em sua coluna dominical:

“Os comandantes militares aborrecem-se sempre que se ilumina o porão das torturas e assassinatos mantido por seus antecessores nos anos 60 e 70. Pena, porque esse risco era inerente aos crimes que se praticavam”.

Então, embora os lances de bastidores tenham sido vazados para a mídia de forma obviamente orquestrada, é implausível a alegação de que tudo não passaria de invencionice da imprensa.

A primeira reação de Tarso Genro à reportagem de O Estado de S. Paulo, p. ex., não foi de negá-la por completo, mas sim de minimizá-la:

“Não há nenhum pedido de demissão e nenhuma controvérsia insanável [grifo meu] entre Defesa e Secretaria de Direitos Humanos. Isso o presidente vai resolver com a sua capacidade de mediação após as férias”.

Ou seja, admitiu que há mesmo uma controvérsia entre a sua Pasta e a de Jobim, a ser mediada por Lula.

Em seguida, entretanto, foi lançada uma Operação Panos Quentes, à qual até dediquei artigo.

É HORA DE BAIXAR A GUARDA?

Pior ainda foi quando se espalhou na internet que tudo não passara de uma conspiração da imprensa golpista, sem que Jobim e os comandantes militares manifestassem a mínima contrariedade com esse novo marco da luta pela transparência histórica.

Devemos crer que os lobos viraram cordeiros, apenas por ser uma versão menos constrangedora para o Governo?

E não será muito mais seguro manter a mobilização contra possíveis recuos, do que baixar a guarda? Às entidades, instituições e personalidades que estão manifestando seu apoio ao PNDH e rechaçando as pressões militares, devemos dizer-lhes “deixem pra lá”?

À vista dos lances anteriores dessa luta de bastidores entre os ministros progressistas e conservadores de Lula — que, inegavelmente, existe –, parece-me uma opção das mais arriscadas.

Houve até quem me acusasse de estar sendo ingênuo, por supostamente colaborar com uma armação da imprensa burguesa no sentido de criar áreas de atrito para o presidente.

A esses respondi que tudo depende da ótica de cada um.

Para quem tem como prioridade única a defesa da imagem do Governo, convém mesmo negar quaisquer crises e divisões internas. Claque é pra essas coisas.

Já para um ex-resistente como eu, o imperativo é que não se desvirtue a nova versão do PNDH.

Que haja mesmo uma Comissão da Verdade, incumbida de levantar o véu que ainda encobre muitas práticas hediondas da ditadura.

E que nem sequer se cogite a concessão da contrapartida que os militares estariam exigindo: a apuração simultânea dos excessos eventualmente cometidos pelos resistentes.

Pois há uma diferença fundamental entre o que fizeram agentes do Estado por determinação de um governo golpista e o que fizeram cidadãos no curso de uma luta de resistência à tirania, travada em condições dramáticas e de extrema desigualdade de forças.

Aliás, outro veterano analista, Clovis Rossi, considera que não passa de “desinformação ou má fé” a alegação de que se estaria, unilateralmente, pretendendo punir apenas os crimes cometidos pelos militares. Sua argumentação fulmina de vez essa falácia:

“Todos os abusos da esquerda armada foram punidos. Alguns, na forma da lei. Outros, muitos, à margem da lei, por meio de assassinatos, torturas, exílio, banimento, desaparecimentos. Já os abusos praticados pelo aparato repressivo não foram nem investigados, com pouquíssimas exceções”.

O certo é que essa pretensa isonomia vem sendo há muito reivindicada nos sites de extrema-direita como o Ternuma, A Verdade Sufocada e Mídia Sem Máscara; nas tribunas virtuais dos militares, tipo Coturno Noturno; pelos eternos conspiradores do Grupo Guararapes; pelos remanescentes da ditadura (Jarbas Passarinho), da repressão (Brilhante Ustra), etc.

No fundo, o que os comandantes militares estão querendo é munição propagandística para, contando com a conivência de setores da imprensa, tentarem diminuir o impacto das atrocidades da ditadura que deverão vir à tona.

Daí ser fundamental que o Governo rejeite cabalmente tal pretensão.

Se não houver recuo nenhum de Lula nos tópicos em que a imprensa lhe atribuiu intenção de apaziguar os militares, poderemos acreditar que as tais chantagens inexistiram ou que nosso presidente sabe manter a autoridade que lhe conferimos.

Mas, se recuar, não haverá enrolação no mundo que nos impeça de concluirmos que ele cedeu à chantagem verde-oliva.