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Ideologia, dialética e pensamento único

É antiga e intrigante a história das idéias, porém ainda mais intrigante o que poderíamos chamar de a história da relação entre os homens e as ideias, com implicações bastante significativas para o campo das ciências sociais. Desde que este tema se tornou importante para os grupos sociais, suas relações e seus embates políticos, muito se especulou sobre a pertinência, importância e essencialidade do conceito de “ideologia”.

Os primeiros teóricos, como Destutt de Tracy à frente, partiram de uma ideia naturalizante de ideologia, afirmando que trata-se do “estudo científico das ideias”, que por sua vez seriam “resultado da interação entre o organismo vivo e a natureza”. Napoleão argumentará, também no século XIV, que ideólogos são “metafísicos”, vivendo em um “mundo especulativo”. Conforme Marx, alguns anos mais tarde, os que “ignoram a realidade”. A ideologia equivale, aqui, à falsa consciência, a uma concepção idealista, de uma realidade invertida. Para Marx, como exposto em Ideologia Alemã, ideologia tem esse caráter negativo e generalizante: “(…) as idéias das classes dominantes são as ideologias dominantes na sociedade” – o que implica em conceber, por dedução, a “classe dominante” como una.

Lenin readapta o conceito, à luz de Marx: a ideologia passa a ser qualquer concepção da realidade social ou política de uma determinada classe social (e necessariamente a partir de uma posição de classe). Uma das tentativas de conceituação mais lembradas é, no entanto, a de Karl Mannheim, no livro Ideologia e Utopia. Ideologia numa concepção negativa, de legitimação e reprodução da ordem estabelecida, resguardando um certo caráter conservador. Utopias, ao contrário, aspiram uma outra realidade, ainda inexistente, cuja dimensão crítica em relação à ordem social estabelecida é a mais notável. Tem uma função subversiva e, de acordo com o momento histórico, revolucionária. Os distintos grupos sociais, vinculados a classes, determinarão seu caráter ideológico ou utópico.

Este quadro remete às concepções negativa (crítica) ou neutra (casos de Marx, Althusser e Habermas, por ex.), em contraste com a concepção positiva ou positivista (Geertz, por ex, e Condorcet, Saint-Simon, Comte, no segundo caso) de ideologia. Todas estas tentativas de conceituação do termo – e, no limite do argumento, de “resolução” das problemáticas relacionadas às disputas ideológicas – formam, na perspectiva de Michael Löwy, as “visões sociais de mundo”, uma espécie de meio termo de ouro entre Ideologia e Utopia.

A partir de uma interpretação das ideias de Hegel, com uma contribuição original à época, Karl Marx desenvolve seu próprio método dialético, praticamente sepultando o caráter naturalizante dos conceitos de ideologia; as concepções que argumentavam que as ideias eram a base das relações sociais; ou, inversamente, as concepções pragmáticas que sustentavam que as mudanças sociais se dariam a partir de… mudanças sociais, ficando as ideias relegadas a um segundo plano em um quadro de transformação social de uma determinada sociedade.

Está aqui a importância do método dialético pensado por Hegel e desenvolvido, a posteriori, por Marx: sua transitoriedade. A transformação permanente de todas as coisas. Nada é eterno, fixo ou absoluto. As ideologias são, portanto, produtos sociais.

Estes conceitos parecem ser importantes em uma época (de Hegel e Marx, por ex.) em que, em todo o canto, o Divino é uma força que parece paralisar as transformações sociais. E, mesmo no campos das ciências sociais, a força do povo é permanentemente relegada a um segundo plano, visto que são poucos os cientistas sociais (ou, mais tarde, “sociólogos”) que acreditam que a própria população possa tomar a rédea do processo político.

Mas não deixam de ser importantes também hoje, em pleno século XXI, em que forças políticas interessadas em manter uma estrutura de poder cada vez mais ameaçada apelam para o discurso do “fim das ideologias”, ou mesmo o “fim da História”. Tentam, portanto, retomar a ideia secular de que não é a práxis humana que determina os rumos de uma determinada sociedade; procuram deslegitimar a própria ideia da política como ação transformadora; e, por fim, retomam a ideia, sob uma nova roupagem, de que um ente divino – neste caso, o Deus-mercado – já teria resolvido todas as contradições existentes entre as distintas classes e grupos sociais.

Aqui fica claro que a ideologia nunca se fez tão necessária, para pôr fim às ideologias anacrônicas, naturalizantes e dogmáticas.

Bibliografia:

Michael Löwy, “Ideologias e Ciência Social” (São Paulo, Cortez, 2008)